Crítica - Coringa (Joker, 2019)

Uma história de um homem problemático disfarçado em um contexto de quadrinhos (Taxi Driver DC edition)

O Coringa é um dos maiores vilões da cultura pop, decerto o antagonista mais famoso dos quadrinhos. Sua rivalidade com o Batman, sua loucura e sua ambiguidade geraram grandes histórias para seu maior inimigo, mas também para ele, como "A Piada Mortal", que mostrou a origem canônica do personagem pela primeira vez, onde constava que ele era Joseph Kerr, um comediante fracassado e desempregado que entrou para pequenos bicos no crime para sustentar sua esposa grávida. No entanto, Kerr, em uma missão com sua gangue, é interceptado pelo Batman e acaba caindo num tanque de tonéis químicos, ficando com a cara e a pele deformada, adotando o nome de Coringa. Foi aí onde nasceu sua filosofia que anda de mãos dadas com o personagem desde então: "basta apenas um dia ruim para arruinar um homem bom". Originalmente, aqui veríamos um longa sobre a versão de Jared Leto do personagem, no entanto, devido à sua recepção fracassada entre público e crítica, alteraram o projeto e deram nas mãos de Todd Phillips, diretor de comédias besteirol, como "Se Beber, Não Case" (2009) e "Cães de Guerra" (2016), e ele transformou em algo mais artístico e diferente do que tivemos nessa grande era dos heróis na década passada. No entanto, bom, não é tão original quanto parece, as comparações com obras clássicas de Martin Scorsese são inevitáveis, mas, será isso o suficiente para rebaixar o projeto? Ou será que é bom ainda após cinco anos?

Na caótica Gotham dos anos 70, o jovem Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) trabalha como animador se vestindo como palhaço. Ele vive uma vida bem pobre, cujo cuida de sua mãe doente, precisa lidar com seus problemas psicológicos, especialmente o seu distúrbio mental que o faz dar risada quando está nervoso, e tem um sonho de ser comediante, bem inspirado pelo seu ídolo, o apresentador Murray Franklin (Robert De Niro). Quando é demitido, Arthur começa a enlouquecer, matando três homens engravatados num trem, e ficando conhecido como um palhaço misterioso. Arthur, percebendo que vive em uma sociedade corrompida, decide deixar seus pensamentos intrusivos tomarem conta, e assume a alcunha de Coringa. Como vocês podem perceber, a história que eu contei no parágrafo anterior foi a base principal para o longa, já pegando algo existente no universo do Batman e transformando em algo mais verossímil, dando uma visão mais pé no chão e trágica para algo que já é trágico. Ele pega vários contextos dos anos 70 nos Estados Unidos, uma época traumatizada, e transfere para esta Gotham City diferente de tudo que vemos, é uma adaptação clara de Nova York daquele tempo, tendo greve dos lixeiros e coisas do tipo.

Mas outras "semelhanças" (para dizer o mínimo) vem de dois clássicos de Martin Scorsese: "Taxi Driver - Motorista de Táxi" (1976) e "O Rei da Comédia" (1983). Sobre Rei da Comédia, as inspirações começam quando Arthur tem uma obsessão por um apresentador de televisão, sonha em ser comediante, fantasia cenários dentro de sua mente interagindo com seu ídolo, indo no programa dele, mora com a mãe (easter egg disso quando o Murray fala que morava com a mãe antes da fama, inclusive). Sobre Taxi Driver, o Arthur na sequência inicial utiliza a mesma roupa que o Travis Bickle (como easter egg, acredito, mas não deixa de ser uma semelhança), ele é obcecado por uma mulher e persegue ela da mesma forma que o Bickle, e esta moça por sua vez faz o mesmo sinal da arminha na cabeça (👉😐) que o Travis faz no final do clássico (também apenas como referência, creio eu, mas os sinais estão na nossa cara), ele tem raiva de um candidato à prefeito e em Taxi Driver o Travis tem raiva de um candidato à presidência, sem contar a ambientação de Gotham nos anos 70, que é literalmente a Nova York que o Scorsese retrata lá. Isso deixa este filme ruim? Certamente não, continua sendo bom, muito por conta da direção, da imersão e do inevitável choque que essas duas causam no espectador ao longo da exibição. No entanto, perde bastante com isto, vendo que o seu diferente na realidade é uma divergência dentro de um subgênero, não em um escopo geral como as pessoas tentam pintar.

E é um filme muito bem dirigido, isso não dá para negar. O Todd Phillips cria uma baita imersão desde o início, onde você já fica atento àquela história na primeira cena, vendo o que eles estão prestes a fazer, que é trazer uma nova visão sobre um personagem e um conceito já consagrado há muitas décadas. Eu gosto bastante desse conceito mais verossímil dessas histórias, não só neste, como nas outras adaptações do Batman, como a trilogia de Christopher Nolan e o universo de Matt Reeves que chegaria posteriormente. Eu adoro, por exemplo, a risada, o motivo dele rir, que nos quadrinhos é só insanidade, é gostar de ser maldoso, aqui acaba sendo retratado como um distúrbio mental que ele tem quando fica nervoso, isso é muito legal. Essa ambientação também acaba sendo fundamental para este fator, onde Gotham torna-se um retrato da desesperança, da depressão e do desespero, com ruas cinzas, cheias de lixo, um clima sempre opressivo, seja da população ou do próprio tempo da cidade, você sente em cada passo, cada figurante, cada interação, que ali parecia ser o fim do mundo. Não à toa, a famosa frase dita por Arthur: "sou só eu, ou o mundo tá ficando mais louco?", se encaixa perfeitamente neste contexto, e fica cada vez mais claro a cada segundo de filme a sua razão em pensar isso.

Porém, honestamente, eu não compro esse coitadismo. Uma coisa é desenvolver bem o personagem, colocar ele como uma vítima, mas tem limite também, e parece que o Todd Phillips não sabe disso. Esse negócio de "a culpa é da sociedade", honestamente, não me desce muito, até porque soa muito forçado quando algo parecido sai da boca do próprio personagem, porém, acaba sendo bem construído quando eles querem (falo mais disso em um próximo parágrafo). Mas, honestamente, usar o artifício do Arthur ser uma vítima, chega a um ponto que torna-se indefensável. No primeiro delito, no trem, dá para entender, dá para compreender, porém, depois não dá mais, fica muito vitimista. A ambiguidade é um conceito essencial do personagem, creio eu que o Todd queria fazer exatamente isso, deixar bem cinzento, não definir nada, mas, no entanto, acaba sendo muito parcial para o lado do protagonista, parece que querem dar um tom heróico para o protagonista, especialmente no final, onde temos o realizador vangloriando de uma maneira que causa um incômodo depois de tudo que nós vimos ele fazer em cena. Eu não consigo comprar isso, no final esse lado dúbio não deveria mais existir.

No entanto, o mesmo final acaba sendo extremamente desconfortável, e isto é um dos grandes acertos do longa. O desconforto é essencial desde o início, desde a primeira cena onde vemos Arthur apanhando indefeso para um grupo de adolescentes delinquentes. E a vergonha alheia toma conta do filme por muitos momentos propositalmente, como a cena dele deixando sua arma cair dentro de um hospital pediátrico, ou a cena dele se apresentando num clube de comédia, ou a cena dele no ônibus brincando com uma criança e tendo um ataque de risada devido à sua condição. Ele causa um desconforto tão grande, mas que é necessário para o andar da trama e para o desenvolvimento do personagem protagonista, e também demonstra o quanto o diretor sabe manipular as emoções dos espectadores. Ele consegue fazer com que fiquemos inquietos vendo o que ocorre com Arthur, sendo ele sofrendo injusta ou merecidamente. Alguns momentos me dão vontade de tentar inverter a minha pele, como ele apanhando injustamente na rua, ou as inúmeras humilhações que ele sofre de seu chefe, e outras que ele merece mais para o final do longa, como ser perseguido, ser preso.

O desenvolvimento de personagem torna-se o seu grande triunfo e o grande diferencial, ao fazer uma história de queda e ascensão, que na realidade o protagonista vai de mal a pior, ele pode ter crescido em sua própria visão, mas saiu de um homem justo para um psicopata convicto. Arthur era um homem simples, pobre, tinha um emprego comum que ele estava para sobreviver, cuidava de sua mãe doente, ele era um homem bom, ainda tendo de lidar com tudo isso sendo mentalmente problemático, sua condição envolvendo a risada, precisando tomar várias medicações, e sofrendo com injustiças. Ele é estabelecido como perturbado da cabeça desde o início, não era um santo, mas a própria cinematografia, através das cores mais frias, mostrava que ele estava se esforçando em ser um homem bom, a cena da escadaria é um exemplo perfeito disso, pois no início ele sobe, cabisbaixo, céu anoitecendo, música triste, e ao final, quando ele desce para ir ao programa do Murray, está ensolarado, ele está dançando, sorridente, sendo consumido pela sua própria loucura. Para ele, foi mais fácil assumir seu lado sombrio, do que manter sua integridade, e a forma como isso é desenvolvido ao longo da exibição é o grande primor do longa.

Termina que o grande destaque cai sobre Joaquin Phoenix, e ele É o filme, ele está em 99% das cenas, ele carrega o longa e tem uma atuação, no mínimo, impactante. Foi algo tão chocante na época que acabou rendendo um Oscar de melhor ator para Phoenix, o primeiro de sua carreira - o que é um absurdo, visto o tanto de atuações sensacionais que ele havia entregado antes, e também, não era a melhor daquele ano, tínhamos melhores, como Adam Driver e Leonardo DiCaprio, mas este não é o assunto, vamos voltando ao que interessa. Phoenix encorpa esta adaptação do personagem, ele traz a originalidade dessa versão mesclada com conceitos do personagem clássico. A integridade, a tentativa de bondade, ser um sonhador, ter sua ilusão de sucesso como comediante, é tudo que ele queria, e isso sendo corrompido aos poucos, transformando ele em um perturbado, um louco, um assassino, só comprova que a filosofia intrínseca do Coringa sobre um dia ruim está lá. O Phoenix tem excelentes cenas, e muito versáteis, indo desde ele dançando desengonçado no banheiro após matar engravatados, até cenas dele perdendo totalmente a cabeça, com raiva de tudo, mas principalmente do que o rebaixa, como a cena com o Thomas Wayne no banheiro e a icônica cena da entrevista do Murray, que a partir da entrada dele, vira uma excelente versão do personagem, mostrando toda sua insanidade pela comicidade. Sem contar a entrega física, com ele extremamente magro para o papel, é um esforço que merece ser elogiado, que merece ser reconhecido.

O resto do elenco não está à altura de Phoenix por aqui, mas é justificável devido a nenhum dos personagens ter algum tipo de destaque além dele. Eu gosto do anão, do Gary (Leigh Gill), que aparece muito pouco, em duas cenas apenas, mas que acaba sendo o que presencia Arthur coringando pela primeira vez, ele mata uma pessoa na frente dele, e a atuação dos dois neste momento é de esfriar a espinha. A Zazie Beetz, que é o suposto par romântico do Arthur, é muito apagada, literalmente não há nada que faça nós nos apegarmos a ela, servindo apenas para ter um momento impactante no final ao ter um pequeno plot twist ao revelar que ela não conhece e nem é atraída pelo principal. A Frances Conroy como a mãe dele é a melhorzinha, tem mais destaque, e consegue ser tão perturbada quanto o filho, tendo uma ambiguidade muito interessante sobre ela e a relação dela com a família Wayne (falarei mais sobre isso em um próximo parágrafo). E o outro que tem um destaque mínimo é o lendário Robert De Niro como o apresentador Murray, que é bem coadjuvante, quase terciário, é apenas um apresentador de televisão, que serve como um callback para Rei da Comédia, mas acaba que a cena que ele tem com Arthur ao final é excelente, também devida performance dele ali também, mostrando ele ficando menos seguro a cada segundo durante a conversa com Fleck.

Contudo, creio eu que uma das coisas que atrasa o filme seja justamente suas relações com o universo do Batman. Sejamos honestos, ser um filme do Coringa é só para chamar atenção e criar marketing encima, pois se fosse independente de quadrinhos e de precisar ficar fazendo referências, acabaria que seria muito melhor. Parece que existe uma necessidade forçada em referenciar às HQs e demais obras sobre o homem-morcego, e algumas acabam sendo até demais. Ter uma cena dele com o Bruce Wayne criança já é um pouco demais, mas pelo menos funciona para demostrar a humanidade que ainda existe dentro de Arthur. Ele quase matar o Alfred na frente do Bruce já é zoado, já é querer inventar muito. Agora, toda aquela questão dele ser filho do Thomas Wayne é querer se amostrar ao máximo como algo do universo DC, eles constroem bem a ambiguidade quanto à isto, mas eu creio veementemente que sim, Fleck é irmão do Batman. Primeiro que dizer que a mãe dele é maluca, que inventou tudo isso porque é doente da cabeça, é justamente comprovar a crítica do filme de que as pessoas sempre tendem a ficar do lado dos ricos e poderosos enquanto deixam os pobres para se ferrarem. Segundo que, é praticamente isso que eu acabei de falar que o Thomas Wayne faz, o protagonista é impedido de olhar o histórico de sua mãe em Arkham, por exemplo, ou o próprio Thomas chama ele e sua mãe de malucos e oportunistas e, na minha visão, é justamente isto que o longa critica. E tem de novo essa bobagem de tentarem dizer que "o Coringa criou o Batman", com um dos seguidores dele sendo responsável pelo crime com os pais de Bruce, e isso é um conceito tão batido que nem dá vontade de falar sobre.


Na parte técnica, é quase perfeito. Eu não curto muito essa caracterização do Coringa, essa maquiagem com uns negócios azuis no rosto, honestamente não me agrada, mas a maquiagem tem toda uma simbologia e tal tal tal, que eu não me importo, para ser sincero, acho que vocês já devem ter percebido vendo o filme ou lendo o texto. A fotografia é muito boa, feita pelo Lawrence Sher, e é muito boa em dar o tom que o longa precisa, algo mais triste, desesperançoso, caminhando à loucura, usando cores mais escuras, mais frias, dias sempre nublados, você sente as ruas lotadas de lixo, poças d'água, pobreza, todo mundo cansado de uma vida triste e medíocre, e a mesma cinematografia muda após Arthur se assumir como um psicopata, como Coringa, ficando mais clara, até aparece um dia ensolarado, é algo mais saturado, bonito, claro, tem uma mensagem ali que eu já expliquei. Combina muito com uma direção de arte, que passa esse ar de sujeira, de podre, ao mesmo tempo que temos bons cenários, como o set do talk show, o corredor do metrô e o apartamento dos Fleck, são muito bem feitos. E a melhor parte desse trabalho técnico é a trilha sonora, que diferente dos demais filmes, aqui o longa se constitui à partir da música, composta pela boa Hildur Guðnadóttir, que também venceu o Oscar, e é uma trilha icônica, querendo ou não, a música marca, especialmente a cena do banheiro, que é uma das grandes OSTs dos últimos anos.

Podemos dizer que "Coringa" acerta em várias coisas, mas também erra em algumas. É um filme perfeito? Não, passa longe inclusive, o pessoal supervalorizou muito na época, porque era algo totalmente não convencional dentro de seu gênero, mas ser diferente não é ser uma qualidade, especialmente hoje em dia quando olhamos o tanto de tentativas de ser diferente dentro do gênero que deram errado (claro que nenhuma de forma tão radical quanto aqui, talvez a sequência seja, mas eu ainda não tive a oportunidade de assistir enquanto estou escrevendo). É uma cópia barata de filmes do Scorsese? Sim, é uma cópia, é barato (custou pouquíssimo) e traz elementos de Taxi Driver e Rei da Comédia que copiam tanto, mas tanto, que quem nega é cego ou é maluco, chega a ser inacreditável na hora inicial de filme, até a mesma roupa do Travis Bickle ele usa - mas, como disse, não torna-o ruim. Ótima atuação por Joaquin Phoenix, que encarna o personagem, traz uma versão totalmente diferente em uma visão mais verossímil da história do personagem, é algo bem construído que torna-se um estudo de personagem bem impactante. Tem várias coisas que eu curto, várias que não, definitivamente gosto menos hoje do que quando vi pela primeira vez, mas gosto mais do que gostei em algum ponto. É bom, ainda, se salva.

Nota - 7,5/10

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