Crítica - Vivo ou Morto: Um Mistério Knives Out (Wake Up Dead Man: A Knives Out Mystery, 2025)
Uma das melhores trilogias da atualidade?
Uma das franquias recentes que eu mais gosto, cá estamos para mais um capítulo de Benoit Blanc em Knives Out. Após o excelente "Entre Facas e Segredos" (2019), um dos melhores filmes de seu ano (que foi um dos melhores anos da história do cinema), o acordo multimilionário da Netflix pela franquia, o sucesso estrondoso que teve "Glass Onion: Um Mistério Knives Out" (2022), agora, temos o retorno de Rian Johnson e Daniel Craig para esta entrada na franquia, que talvez seja a última, pelo menos é a última que a Netflix pagou para ter em seu catálogo naquele acordo que transformou Craig no ator mais bem pago de Hollywood por um valor astronômico de quase 300 milhões de dólares. É uma das franquias recentes que mais curto justamente pelo gênero, pela brincadeira com o subgênero do whodunit?, inspirado pelos livros de Agatha Christie, e como o Rian Johnson subverte isso de diferentes maneiras nos dois anteriores, que eu já trouxe crítica para cá, então tem minha opinião detalhada sobre ambos mostrando o quanto eu gosto dos dois filmes, apesar do segundo ser um pouquinho mais abaixo que o primeiro. Agora, será que esse terceiro caiu na tal da maldição do terceiro filme? Ou deu uma recuperada e conseguiu chegar ao nível do primeiro? Com mais uma vez o gênero tendo uma subversão interessante pela visão de Johnson, eu confirmo que achei este melhor que o segundo e quase pau a pau com o primeiro.
Jud (Josh O'Connor) é um ex-boxeador que matou um adversário no ringue e agora está buscando perdão ao entrar para a Igreja Católica e tornar-se padre. Após um episódio de violência, ele é enviado para uma igreja de uma cidade pacata no interior do estado de Nova York, em um local que só há uma igreja, liderada pelo Monsenhor Jefferson Wicks (Josh Brolin), que tem este local como herança de seu avô, que tornou-se padre após o nascimento de sua filha, que no futuro virou uma rebelde que destruiu a igreja por não ter direito à herança, sendo conhecida na atualidade como a "vadia safada". Nos dias atuais, Wicks é um líder religioso questionável, agindo mais como um manipulador do que como um sacerdote, reunindo um grupo de fiéis que acreditam cegamente em suas palavras, incluindo Martha (Glenn Close), uma pupila de seu avô; Samson (Thomas Haden Church), o faz-tudo da igreja; Dr. Nat (Jeremy Renner), o médico da cidade que foi abandonado pela esposa; Vera (Kerry Washington), uma advogada filha de um grande amigo de Wicks; Cy (Daryl McCormack), o filho adotivo de Vera e um político fracassado; Lee (Andrew Scott), um autor best-seller de ficção científica em decadência; e Simone (Cailee Spaeny), uma violoncelista que desenvolveu dor crônica e acredita que Wicks pode curá-la. Quando Wicks misteriosamente morre dentro da igreja, Benoit Blanc (Daniel Craig) surge para resolver mais um caso, mas dessa vez é o crime perfeito, o qual talvez nem ele consiga resolver.
Nos demais filmes, Rian Johnson se destacava pela subversão de convenções do gênero para criar algo próprio, com o primeiro sendo um filme que você já sabe a resposta do caso antes da parte da investigação, e o segundo é uma história que para no meio para resignificar o caso e mudar a visão que estávamos acompanhando. Neste, tem diversas dessas ressignificações, algumas são spoilers, mas uma dessas é pela primeira vez não juntar o Blanc com alguma mulher de uma minoria como dupla principal, dessa vez é um homem branco católico, o Padre Jud, que é, de certa forma o grande protagonista do filme. Esse é o filme que o Blanc tem menos destaque dentre os três que saíram até agora, ele nunca teve, ele não tem desenvolvimento de personagem, ele é o cara que chega, procura e resolve, quem tem desenvolvimento são os personagens que ele observa na volta dele como o excelente detetive que ele é. Aqui, o principal destes é o Jud, que é esse cara que tem um passado sombrio, que ele tem um ódio no coração e busca na religião um escape, um perdão, algo que faça ele esquecer de quem ele realmente é, mas ele ainda tem lampejos de sua vida antiga, de raiva, de violência, ele tem um pavio curto, e isso o põe num papel focal dentro da narrativa, mas ao mesmo tempo ele é um dos suspeitos, e você acredita que ele possa ser o culpado diversas vezes. Existe muito dessa construção, não só nele, mas nos demais personagens, de quem é o possível culpado, acho que os únicos que são envolvidos e não passam pela suspeita são o Andrew Scott e a Cailee Spaeny, mas aqui é muito bem construído nesse caso, aparentemente, impossível.
Acho que isto é o grande chamariz desse longa, é o que eu mais gostei, que é o caso ser praticamente impossível, as peças não se encaixam apesar de tudo, tem coisas que são apresentadas, que terão um callback e você nota isso desde que existe alguma explicação no que eles falam, mas são coisas que soam mais desconexas do que conectadas na maior parte do tempo. A direção do Rian Johnson é sensacional, já que ele vai dando diversos nós que fica cada vez mais difícil de solucionar o caso, existem diversas possibilidades, diversos acontecimentos e tentar buscar uma resposta definitiva vira quase uma dor de cabeça, porque você não consegue ver chegando o que vai ser, mas sim diversas possibilidades em que você vai acreditando em diversas coisas, mas que nenhuma delas realmente faz sentido para a investigação, e quando vem a revelação final é justamente uma dessas possibilidades, mas dentro dela tem coisas que você nem imagina. Cara, é muito bem construído, realmente é um daqueles quebra-cabeças que vai te pegando, e não é um filme que se faz de confuso para parecer inteligente, ele se faz de confuso para gerar entretenimento, para gerar engajamento do público com a narrativa e funciona excepcionalmente, eu fiquei muito satisfeito com isso, até como diversas dúvidas são colocadas dentro disso, como: será que eles vão pôr o sobrenatural mesmo dentro desse universo? Será que existem forças acima que geram algo maior do que a gente está vendo na tela? Será que tem mesmo um assassino? É muito legal.
Rian Johnson traz aqui uma mensagem que é bem pertinente atualmente, algo atual, na realidade ele faz isso nos três, no primeiro era a questão familiar quanto à herança, a ganância envolvida em relações artificiais motivadas pelos bens; no segundo era também ligado a esta questão da riqueza, da megalomania do que as pessoas ricas fazem com dinheiro, de quanto isso move o ódio dentro de alguém. Aqui é relacionado com religião, mas não diria só isso, é quase político, como um líder cativa um certo público a acreditar em promessas vazias e ideias falsas. Wicks é um padre daqueles quase cultistas, pois ele tem uma pregação muito da manipuladora, ele é amedrontador e tenta convencer as pessoas a segui-lo por medo, ou por devoção, ele faz as pessoas crerem em seus discursos, quando ele mesmo sabe que está mentindo. É uma metáfora para como a igreja tenta fazer o povo seguir suas crenças e seus costumes na base do medo do inferno e da promessa do paraíso. É isso que faz alguém como a Simone seguir ele e pagar o dízimo todo mês, ela teve prometida a cura de sua doença, mas só recebeu golpes financeiros de um pilantra que estava a enganando. É legal quando vem esse contraste do Jud, alguém que, apesar de ter diversos problemas, é um cara que veio de fora, que não está acostumado àquele método de doutrina religiosa, apesar de ser da mesma religião. Ele nota que todos que caem na lábia de Wicks são extremamente frágeis, com uma fé movida pelo jeito influenciador do Monsenhor, onde tem aqueles que seguem cegamente o que ele prega, e aqueles que o seguem por medo do passado e do futuro.
Apesar de eu já ter falado como ele não aparece tanto nesse quanto nos outros, eu gostei muito do Blanc nesse filme. Achei muito legal como ele entra no caso e a parceria que ele cria com o Jud, como ele é o único que realmente acredita no personagem do Josh O'Connor quando até o próprio começa a questionar se ele mesmo fez alguma coisa em meio aos plot twists que vão acontecendo adoidados do segundo para o terceiro ato por aqui. Ele tem uma fixação pelo caso em que ele se sente inseguro, ele tenta encaixar peças do que parece ser o crime perfeito e nem ele consegue em diversos pontos, é um caso que lhe traz dificuldade, mas obviamente, com o poder de detetive genial (protagonismo) ele dá um jeito de desvendar no final, de um jeito que eu achei bem bacana como é construído. O Daniel Craig é sensacional nesse papel, apesar dele ser o James Bond, de ter os filmes mais bem elogiados de 007, talvez esse aqui seja o melhor papel da carreira dele, pelo menos em atuação, porque ele encarna o personagem com uma convicção que te traz para dentro de qualquer caso que ele esteja, ele tem essa personalidade investigativa, excêntrica e honesta que é muito cativante. Tem uma cena que ele começa a falar o que sente em relação à igreja e religião que é um baita monólogo, conversando bem com a mensagem que falei no parágrafo anterior.
Mas, o grande destaque acaba mesmo por ser o Josh O'Connor, esse cara brilhou demais aqui, carregou o filme. Lá no site do For Your Consideration da Netflix, eles colocaram o O'Connor em campanha para coadjuvante, faz sentido se você for ver pela visão de que o protagonista é o Blanc e ele é aquele personagem que é para ser o cara em que as informações giram no redor dele e não ao redor dele, mas quem carrega a narrativa por diversas vezes, praticamente toda a primeira meia-hora de filme, é o O'Connor. A atuação dele é brilhante, ele traz essas diversas facetas do personagem e cria uma figura doce, porém ambígua, as vezes questionável, alguém que tenta mudar, mas que você enxerga uma fagulha de que não foi uma mudança total, já que ele tem uns problemas de raiva, ele perde a cabeça algumas vezes, isso é mostrado desde a primeira cena dele, e como isso se correlaciona a sua relação com Deus e o Cristianismo, já que ele não se vê como alguém que está passando as palavras d'Ele, mas sim que está em dívida pelos erros dele do passado e tentando se redimir dessa forma. Gosto de como nas cenas ele se esconde nessa persona frágil e instável, pois é isso que ele quer tentar ser, ele quer ser alguém tranquilo que inspira as pessoas a não ser como ele foi. Ele tem uma personalidade forte, você sente isso pelas atitudes que ele toma ao longo do filme todo, visualmente com as tatuagens que ele tem, como a discernição dele de certo e errado não é definitiva, ele tem um pensamento mais flexível devido ao seu passado. Uma excelente performance, é quase tão bom quanto a Ana de Armas no original.
Existem demais personagens que também são muito bons, é o charme da franquia, o grande chamariz, ver esses grandes atores reunidos, aí se divide entre atores lendários, grandes atores consagrados, atores com apelo popular (pelo menos tem um Vingador em cada filme), estrelas em ascensão e o Daniel Craig como o núcleo central em que estes rodam ao redor. Aqui tem a Glenn Close, num papel sensacional. Ela faz a Martha, a pupila do avô do Padre Wicks, então é uma personagem extremamente centrada, fria e religiosa, não é uma freira nem uma madre, mas dedicou a vida inteira à Igreja e à devoção que ela tem, não só a Deus, mas ao seu mentor, e essa personagem dela é construída de um jeito que convém muito bem com a história e que torna-se interessante de acompanhar, de vez em quando ela está até no canto, mas é nisso que ela vai se construindo, pois ela foi sempre o apoio, a que fica de escanteio, é o cerne de sua personagem. O Josh Brolin como Padre Wicks é ótimo, é um papel que ele sai da persona de Josh Brolin e funciona bem. Existe um quê de absurdo no que ele fala, há muita comicidade através deste personagem, mas é mais pelo choque do por ser realmente engraçado. Eu falei da mensagem, que ele é um líder manipulador, que ele usa de sua lábia para enganar um bando de trouxa, e ele é extremamente convincente, ele traz muita convicção no que ele fala, nisso ele sai um pouco da zona de conforto e faz um personagem extremamente detestável.
Os demais personagens creio não ter muito a ser dito, mas vale a pena mencionar. Eu achei interessante as questões envolvendo a Simone, personagem da Cailee Spaeny, que é uma pessoa doente que cria fé na cura de seu problema através das palavras vazias do Wicks, nisso acaba usando praticamente tudo o que tem para dar de dízimo, eu fiquei com muita pena dessa menina pelo o tanto que ela é feita de trouxa, ela pode vir ser consolada na minha cama se ela quiser, tadinha. O Jeremy Renner está num modo automático, eu acredito que ele tenha sido cortado de alguma forma devido às polêmicas recentes, porque é um papel muito pequeno para a importância que ele tem na trama, mas, tretas à parte, ele também não está lá grandes coisas, é um personagem meio dane-se que ele fez no modo dinheiro fácil. Eu achei interessante a personagem da Kerry Washington, ela é a única desse grupinho que tem uma noção do que acontece ali, ela só está ali por meio que uma obrigação, por uma coisa envolvendo a relação dela com o pai e com a história da igreja, então é algo que ela não gosta, não está confortável e vive numa vida que ela considera miserável, eu achei isso bem explorado para uma personagem secundária. O filho adotivo dela funciona bem também, como esse influencer que foi um político fracassado e agora tenta viralizar de qualquer jeito, é um bom retrato do jovem que tenta achar um espaço na política atual, um cara um pouco mais puxado para o Partido Republicano, daquele que finge se importar, mas tenta fazer tudo ser sobre ele mesmo, é uma parte surpreendente do longa, eu diria, geralmente não funcionaria.
O resto do elenco nem vale tão a pena falar, já que não existe tanto desenvolvimento quanto estes mencionados no último parágrafo, mas uma coisa que vale a pena mencionar é a estética e como a cada filme o Rian Johnson consegue se reinventar e trazer algo novo nesse quesito. No primeiro é algo mais puxado para o vintage, algo que lembra mesmo Agatha Christie, o segundo traz uma estética mais moderna, algo puxado para o luxo da riqueza moderna, tanto na arquitetura dos cenários quanto nas roupas mais luxuosas, Prada, Louis Vitton e coisas do tipo. Aqui, este tem a estética do catolicismo gótico do século XVIII, se fosse um filme de época, eu ia acreditar sem duvidar nenhum pouco, pois toda a construção visual da Igreja e de todo o ambiente religioso, de toda a fachada da cidade, até nas roupas, no próprio visual do Blanc nesse filme, com o cabelão e a barba, o terno bege, remetendo a um detetive do final da década de 1880, funciona muito bem. Os figurinos estão belíssimos, trazendo o lado gótico para a contemporaneidade, a mescla do moderno com o clássico é excelente. Inclusive, acho que seria legal fazer um filme de época situado nesse universo, inventa que o Blanc é imortal ou sei lá e põe ele em 1888 investigando Jack o Estripador ou algo do tipo, seria sensacional, é uma franquia que merece a continuidade, filmes episódicos, é sempre muito bacana.
Mais uma baita entrada na franquia, "Vivo ou Morto: Um Mistério Knives Out" cumpre bem o objetivo e entrega um belo whodunit num, pode-se dizer, "blockbuster de streaming", foi um grande acerto da Netflix investir nessa franquia e deixar ela rolar, já que são filmes que combinam bem com a proposta de streaming, apesar de que eu acredito que se daria bem no cinema também, já que o primeiro pela Lionsgate arrecadou mais de U$300 milhões de receita. Mas, enfim, mais uma bela jornada, muito bem dirigida e escrita pelo Rian Johnson e mais uma vez que o Daniel Craig brilha como esse personagem, o Benoit Blanc é sensacional, a cada participação dele, ele fica mais legal, ele ganha mais escopo, mas quem ele se junta também precisa sempre ser muito bom, e aqui vira o show do Josh O'Connor, que traz um dos melhores personagens da franquia numa atuação sensacional. Um baita elenco, que gera uma experiência legal, divertida e que estabelece bem a franquia nos dias de hoje.
Nota - 8,5/10