Crítica - Bebê Rena (Baby Reindeer, 2024)

Obsessão, traumas e transformações em um surpreendente fenômeno da Netflix.

A Netflix investe muito em divulgação de vários filmes e séries, sempre com grandes atores e diretores por trás, que viram assuntos do momento por uma ou duas semanas e depois somem do mapa, pois não se sustentam tanto por si. Os maiores fenômenos da Netflix vem justamente dos que você menos espera algum tipo de sucesso, como "A Sociedade da Neve" (2023), "O Mundo Depois de Nós" (2023), "O Poço" (2020) ou no caso de séries são até mais comuns, como "Stranger Things" (2016-) e "Bridgerton" (2019-), que se tornaram fenômenos culturais dos tempos recentes. Aqui surge mais um fenômeno inesperado, que vem lá do Reino Unido, onde um artista desconhecido e comediante fracassado decide contar sobre sua história real, através de pseudônimo e da ficcionalização de eventos, sobre quando ele foi perseguido por uma mulher maluca que infernizou a vida dele. No caso, este é Richard Gadd, que adapta sua peça autobiográfica homônima que fala sobre assuntos muito delicados: abuso sexual, assédio, abuso de drogas, obsessão, sociopatia, perseguição, dependência emocional, só para ter uma noção - mas, o principal, é a perseguição e o entendimento do que levou até tudo isso.

A série acompanha Donny Dunn (Richard Gadd), um artista, roteirista, formado em teatro e com a ambição de tornar-se um grande comediante, mas que vive uma vida pacata, trabalhando como barman e morando com a ex-sogra em Londres. Tudo muda um dia quando uma mulher chamada Martha (Jessica Gunning) entra em seu trabalho sem dinheiro, e em um ato de gentileza, Donny oferece um chá por conta da casa. No entanto, Donny acaba desencadeando uma obsessão dela por ele, com a moça transformando a vida dele em um inferno, perseguindo ele na rua, stalkeando nas redes sociais, correndo atrás dele em locais públicos, irritando familiares e amigos, e fazendo até pior, como assediar o rapaz mental e sexualmente. Ao longo da série, vamos vendo o quanto ele é traumatizado, os traumas que o enlouqueceram, as muitas coisas que ele passou com tão pouca idade, e que no final ele e sua admiradora não são tão diferentes quanto parece. Richard Gadd é relativamente desconhecido, não fez grandes papéis de destaque ao longo da carreira, esse é o seu primeiro trabalho de destaque, e o cara faz tudo: atua, é o showrunner, escreve, produz - é uma dedicação incrível à obra, cujo existem dois principais objetivos: alertar sobre casos reais enquanto ao que ocorre ao longo dos episódios e fazer uma terapia em si mesmo através da arte.

Primeiro eu devo falar da qualidade, porque é extremamente bem feita, desde o primeiro episódio. Não tem um orçamento gigante, pessoas de renome e nem uma história grandiosa ou difícil de se contar devido às proporções de produção. É simples, contido e redondo, com a trama iniciando-se e encerrando-se nesses sete episódios. O primeiro episódio já é perfeito ao vislumbrar perfeitamente o que será abordado durante os outros episódios. A cena inicial já consegue mostrar o tema principal com maestria, com você já entendendo sobre o que se trata rapidamente. Entretanto, essa simplicidade inicial vai ganhando forma, desenvolvimento e complexidade ao ganhar rumos inesperados, novos personagens e surpreendendo ao abordar temas sensíveis de maneira impactante e com múltiplas facetas. A perseguição é só o ponto de partida para algo muito mais complicado. Essa parte de stalking é construída de maneira exímia nesses primeiros três episódios, onde vemos a Martha sendo uma pessoa claramente com uns vinte parafusos a menos, ela é mais do que maluca, ela é manipuladora, patológica, preconceituosa, assediadora, é um retrato de terror muito bem construído, uma espécie de "antagonista" que realmente assusta quando aparece em cena, é como se fosse o Tubarão no filme do Spielberg, quando o Donny sai na rua, há a tensão de que ela pode estar em qualquer lugar atazanando ele. 

O personagem de Donny é bastante complexo, são tantas facetas que vão contribuindo para seu desenvolvimento. Nos primeiros três episódios você ele como um bananão, como alguém sem atitude de ir lá e denunciar para qualquer um o que está acontecendo, mas tem o equilíbrio que é que ele se sente tão fracassado que ter essa mulher perseguindo ele faz com que ele se sinta relevante de alguma forma. Quando vem o quarto episódio, tem um ponto de virada, onde é descoberto que ele foi abusado por um roteirista que havia o prometido a fama, não só sexualmente, aquele cara fazia o protagonista de capacho, em uma relação tóxica de superioridade onde fez Donny se sentir um lixo por muito tempo. Mas, Gadd como roteirista e ator, ao invés de ir lá e contar a história para sentirem pena dele, ele na verdade vai lá e se coloca como uma "vítima imperfeita", como alguém que foi totalmente mudado pelos traumas, que virou uma pessoa totalmente diferente, que não conseguia mais se ver do mesmo jeito que antes, ele tinha um brilho que foi perdido. A mensagem que Gadd quer passar é que nenhuma vítima é culpada, que ninguém se coloca numa situação dessas de propósito, que não existem vítimas perfeitas, todas tem imperfeições, mas que não é por isso que deixam de serem vítimas, que seus sentimentos são anulados.

Dunn vai carregando essa "culpa" nele por muito tempo, como isso vai atrapalhando na sua vida, como acabou com dois relacionamentos dele. Ele vai contendo, vai contendo, contendo, até que... BOOM! Ele não aguenta mais, e em uma das cenas-chave da série, durante um show de comédia, ele decide desabafar sobre tudo, em um dos melhores monólogos que eu já vi no audiovisual. É uma libertação pessoal, onde ele finalmente tira tudo isso que o incomoda da cabeça dele. No final, você percebe que ele não é uma pessoa tão boa, que ele teve situações que fizeram com que ele ficasse assim, e que justificam ele não ter denunciado sua perseguidora antes, pois ali ele se sentia útil de alguma forma. No final, a série está aí para alertar sobre Marthas e Darriens do mundo, sobre pessoas que vão te fazer mal de alguma forma, falsas promessas e ações inocentes que podem desencadear algo ruim na sua vida. Porém, a cena final mostra que fazer uma boa ação genuinamente não é errado, que ser gentil não faz mal, que ajudar uma pessoa em uma situação de fragilidade é ter empatia, que é algo que está faltando nas pessoas ultimamente.

Em questão de atuação, é preciso ressaltar a performance do Richard Gadd, pois é algo terapêutico para ele, transportar sua própria história para o audiovisual, trazer uma mensagem sobre assuntos pesados de maneira tão sútil. Não tem nada que atinja mais forte o espectador do que quando um comediante decide fazer um papel dramático, e olha, eu vi o vídeo do stand-up dele e realmente ele era péssimo, as piadas são horríveis, mas no drama o cara deu um show. É passada tanta honestidade que causa até um incômodo, é a destreza que ele sente enfim sendo passada, tem tantas cenas dele que impactam, acho que as duas principais foram o monólogo no show de comédia e a conversa com os pais - essa última sendo uma aula de abordar assuntos sensíveis de maneira delicada, sem criar uma dramatização novelesca, trazendo veracidade à situação. A emoção que ele passa em múltiplas cenas é genuína, é como se ele vivesse tudo de novo tendo o entendimento real das situações e percebendo que ele era um sobrevivente. Provavelmente ele deve concorrer ao Emmy, não sei se deve ganhar porque não tem tanto nome quanto outros possíveis concorrentes, mas vou torcer para ele.

Outros destaques ficam para Jessica Gunning como Martha, uma antagonista muito bem construída e muito por parte da atriz. A mudança de emoção dela é muito genuína, é típica de pessoas mentalmente problemáticas e mentirosas patológicas na vida real, e cara, é uma atuação que está muito no ponto que deveria estar. Não exagera ao ponto de ser overacting (até porque a personagem é surtada mesmo) e não se esconde ao ponto de ser caricata, é uma personagem de múltiplas facetas, que tem um sorriso sádico, uma presença mesmo quando não está fisicamente em tela e uma figura antagônica que se entrelaça bem com o protagonista. Outra que gostei é Nava Mau, que interpreta Teri, o interesse romântico do Donny, uma mulher transsexual que entra nesse relacionamento com ele, onde ele vacila muitas vezes com ela, acaba transformando seus problemas em problemas dela e realmente não era uma relação tão saudável assim. Ela faz esse contraponto, de uma lucidez em meio ao caos, onde os traumas dele vão afetando o namoro e faz com que desencadeie as inseguranças pessoais dela. Foi uma boa personagem também.

Uma surpresa, "Bebê Rena" foi uma das poucas modinhas que eu resolvi assistir. Literalmente está todo mundo falando sobre, não tem ninguém relevante à frente ou atrás das câmeras, então só pode ser genuinamente boa, e olha, não me arrependo, uma série excelente, que são sete episódios relativamente curtos que te prendem. Não é fácil de assistir, especialmente do quarto episódio em diante, são temas sensíveis e extremamente pesados, mas que precisam ser retratados. Filmes e séries são usados por muitos (inclusive por este que vos fala) como válvula de escape da realidade, mas é preciso ter temáticas como essas sendo retratadas e faladas para justamente existir o alerta de que isso é real, que acontece e que não é denunciado o suficiente. Um verdadeiro ato de coragem Richard Gadd fazer essa série e contar sobre sua própria história sem se pôr numa posição de bonzinho, mas sem se esquecer de que foi uma vítima. É realmente tudo perfeitamente trabalhado, questão de direção, história, roteiro, atuação, trilha, é excepcional.

Nota - 9,0/10

Postagens mais visitadas