Crítica - Furiosa: Uma Saga Mad Max (Furiosa: A Mad Max Saga, 2024)
A saga épica continua.
George Miller foi considerado um visionário ao realizar a franquia Mad Max. Com o primeiro filme, estrelado por Mel Gibson em 1979, alcançou repercussão mundial por ter efeitos e cenas tão boas para aquela época e com pouco dinheiro, com uma ficção científica que surpreendia por sua tamanha qualidade. Tivemos mais duas adições lá nos anos 80, e, depois de um hiato de trinta anos, Miller voltou com um novo capítulo entitulado "Mad Max: Estrada da Fúria", em 2015, que é amplamente considerado não só o melhor da franquia, como um ponto de virada e uma revolução no gênero de ação e de sua mescla com o sci-fi, tendo conquistado seis estatuetas do Oscar. Desse quarto longa, surgiu Furiosa, uma personagem excelente, que roubou o protagonismo do próprio Max, contando com uma atuação absurda de Charlize Theron no papel, liderando um dos grandes filmes da última década. Um filme focado só nela era o que muita gente pedia, e conseguiram, porém Miller decide contar a história da jovem Furiosa, agora interpretada por Anya Taylor-Joy, para mostrar o que houve com ela até chegar à Estrada da Fúria. Mas, o que faz essa franquia ser tão adorada? Bom, porque na camada superficial com explosão, carros turbinados, deserto e guitarra soltando fogo já é absolutamente perfeito, porém tem algo mais que o Miller quer falar ali. A franquia original surge em um contexto de Crise de Combustível no Oriente Médio, e em 2015 ele retorna falando sobre recursos naturais, a importância incontestável da natureza e como o consumo descontrolado pode levar ao que vimos neste mundo. Então é algo que parece muito mais do que é e acaba criando esse fascínio, seja na camada superficial ou na mais profunda. E com Furiosa, eu tinha medo de ser o pior da franquia porque o trailer não me deixou tão animado, Fury Road é um dos meus filmes favoritos e eu fiquei com um pezinho atrás, mas em Miller eu confio e olha... É bom.
Quando o mundo vai para o cacete e as gangues dominam e destroem o que vêem pela frente, cria-se um desespero muito grande em busca de terras e recursos no meio do grande Deserto que tornou-se o planeta. Furiosa (interpretada por Alyla Browne em sua versão infantil) é uma garota que vivia com sua mãe (Charlee Fraser) no Vale Verde das Muitas Mães, um local de abundância de água e natureza. Porém, um dia, a jovem é sequestra pela gangue de motoqueiros, liderada por Dementus (Chris Hemsworth), que não só a leva com ele, como tira a vida de sua mãe. O grupo atravessa pela Wasteland (Deserto é uma tradução muito simplória, o nome original é mais legal), e acaba encontrando a Citadela, presidida por Immortan Joe (Lachy Hulme), onde o líder decide ficar com ela em troca de recursos. Após fugas e mudanças de rota dentro do local, Furiosa acaba entrando para o exército do local, onde, em sua jornada pessoal, ela busca vingança por sua mãe e pelo seu passado. Bom, é realmente uma saga, vai contando toda a jornada da personagem desde o início, tanto que na primeira hora de filme ela é quase coadjuvante para o Hemsworth (que rouba a cena, já falo mais sobre), demora muito para aparecer a Anya interpretando-a.
Miller aqui faz uma subversão que me confundiu um pouco em primeira mão, mas depois eu percebi, que ele pega o que aparenta ser um épico de ação e transforma em uma jornada de sobrevivência. Eu já começo falando que a existência de Estrada da Fúria é o maior problema desse filme, já que são comparações inevitáveis. Enquanto o de 2015 é amplamente considerado uma das maiores obras do cinema de ação, este fica abaixo, já que há uma queda em qualidade, apesar da equipe ser praticamente a mesma. O que justifica isso? Não sei, talvez pressa do estúdio, ou impaciência com o diretor gastando mais do que foi dado nas gravações e não sobrando para pós-produção. A queda mais considerável é em relação aos efeitos visuais, já que é uma franquia conhecida pela utilização de efeitos práticos com poucos recursos, gravações em locação e tudo mais, enquanto aqui é nitidamente em estúdio com muita tela verde, e não só isso, como também é ruim, chega a ser feio. Pode soar como bobagem minha, pode ser um pouco de mau costume, mas isso faz com que perca a essência de ser um Mad Max, o que foi o que eu senti, não tinha a mesma essência que os quatro anteriores tinham.
Por outro lado, é impossível dizer que é ruim também, porque uma coisa que o George Miller sabe fazer muito bem é contar qualquer história e envolver o espectador, moldando sempre à forma na qual ele vê tal trama. Aqui, é a história de sobrevivência, é essa jovem vivendo em meio ao mundo de caos, onde a vêem como produto e como uma espécie de figura idealizada no início, já que ela seria a sobrevivente de um local de abundância, uma vida pura, nunca tocada por um homem ou doença, como é dito. Nisso, ela é primariamente enviada para ser uma das esposas do Immortan Joe quando crescer, mas ela foge e consegue se esconder em meio à Citadela se passando por um jovem mudo que consegue a vaga de operário e, posteriormente, sendo uma Pretoriana. Esse fingimento em busca da persistência e a tentativa de retorno para casa é o que move Furiosa, que, como sabemos, não cumpre seu objetivo por aqui, já que é uma prequel de outro longa que já vimos, porém é empolgante, a forma como o Miller conta cria uma torcida genuína por ela, e ser um background de uma personagem tão querida ajuda bastante nesse quesito, já que quem vai ir assistir é quem gostou dela no anterior, isso é fato.
A personagem passa por poucas e boas, tem toda essa busca por fazer justiça com as próprias mãos, peitando o próprio Immortan Joe quanto à isso. E aqui é como a gente entende como chegou naquele ponto onde estava a versão da Charlize Theron, há uma exploração dela com a mãe, que é bem breve, mas é onde já dá para ver de onde saiu tanta bravura e coragem dela, é a relação que mais funciona. Porém, tem dois problemas que eu acho que o Miller verdadeiramente vacilou em questão narrativa. O primeiro é que, do nada, aceitaram ela como Pretoriana, sendo que não havia nenhuma outra mulher no exército do Joe e ela aparece ali, teoricamente, do nada e aceitam de boa... Olha, poderia ter sido bem melhor explorado isso aí. Assim como o segundo, que é o relacionamento amoroso dela, colocam um par dela com outro Pretoriano, o Jack (Tom Burke), que é um personagem ruim, qualquer coisa, onde ele aparece para ser meio que uma fortaleza emocional para a versão adolescente dela, porém a presença ou ausência dele não muda praticamente nada na narrativa, apenas é um acréscimo para uma motivação que já era suficientemente convincente, a participação dele poderia ser cortada que talvez minha nota seria até maior.
Sobre outros coadjuvantes, tem os personagens de Estrada da Fúria, não só o próprio Joe, como os personagens que os servem, que retornam, como seus filhos. O Immortan Joe teve uma mudança de intérprete, já que o nosso querido Hugh Keays-Byrne veio a falecer algum tempo atrás, mas trocaram ele por Lachy Hulme, um cara que já participou de vários filmes famosos, que manda bem até, emula bem o que o Byrne fazia, apesar de nitidamente aparentar ser bem mais jovem mesmo com maquiagem. Porém, o grande destaque é Chris Hemsworth como Dementus, ele rouba a cena toda para ele. Ele é um daqueles líderes disfuncionais, é um ditador de uma gangue de motoqueiros, que surge após a anarquia tomar conta do mundo e esse lado extremista, onde ele toma posse prometendo o melhor futuro para uma galera, porém nem ele mesmo sabe como. É extremamente arrogante, egoísta, não consegue se ver como alguém errado em nenhuma situação. Ele cria essa relação inicial com a Furiosa por ele ter sido pai e ter perdido os filhos quando o mundo vai para a vala, ele até anda o filme inteiro com uma pelúcia e tem esse background bem interessante. O Hemsworth ele faz um antagonista extremamente carismático, apesar dos inúmeros defeitos, ele faz aquele líder que é um desgraçado, mas pelo carisma ele cativa todo um pessoal que o segue fervorosamente (o que, bom, não está tão longe da realidade do mundo real, infelizmente).
Agora, falando da performance da personagem principal, a Charlize jogou o sarrafo lá em cima quando fez a Furiosa, revolucionando para sempre o protagonismo feminino em filmes de ação e/ou obras mainstream mais puxadas para esse lado, sendo considerada uma figura importantíssima para o girl power e para essa investida de personagens femininas bad-ass colocadas em tela, e ela eu creio que seja o maior exemplo justamente por ser genuíno, já que ela não é a protagonista oficial do filme, ela seria mais como uma sidekick do Max originalmente, porém, nessa atuação tão grandiosa, é o Tom Hardy que vira quase secundário ao lado dela. Aqui, temos duas atrizes para interpretá-la. Eu tenho que ressaltar o trabalho da Alyla Browne, que faz a versão mirim dela, e cara, ela passa emoção sem falar nada, você sente na cara daquela criança o medo, a confusão, a incerteza e o trauma que lhe foi causado, ela tem um olho muito expressivo que consegue trazer à tona o sentimento para suas cenas, é um trabalho bastante interessante de uma atriz que pode ser promissora. Agora, a Anya Taylor-Joy emula a Theron, mas de uma forma bem menos experiente, ainda não é aquela versão mais moldada, é um prenúncio do que viria, e aqui é como a gente vê essa argila pegando forma, como ela obtém essa personalidade braba, como ela perdeu o braço, a motivação completa dela é entendida aqui. Anya tem duas cenas de destaque, uma que é logo depois dela voltar de uma missão falha e peitar o Immortan Joe, botando respeito nele com uma frase, e a outra é o duelo final com o Dementus, que é uma demonstração de superioridade cênica sensacional.
Na parte técnica, retorna basicamente todo mundo do anterior. Foram seis Oscars ganhos pela equipe técnica: edição de som, mixagem de som, design de produção, maquiagem e cabelo, figurino e montagem, e praticamente todos os vencedores retornam aqui. A editora é Margaret Sixel, parceira do Miller de longa data no cinema e na vida (ela é esposa dele, são casados há 29 anos), e a montagem aqui é boa no que se propõe, não existe a ânsia e nem a pressa do anterior, mas você fica investido, tem ali uma certa assinatura da franquia que se mantém, como os cortes rápidos, os zooms nos motoristas, a busca pelo plano que vai espetacularizar mais o que está acontecendo. Há um fascínio visual e artístico perfeito, com figurinos de Jenny Beavan (também retornando, inclusive recebeu seu Oscar por esse filme com jaqueta de couro e cachecol da Grifinória mesmo trabalhando com moda) e dos cenários idealizados e produzidos por Colin Gibson (ele retorna, mas sua parceria Lisa Thompson é substituída por Katie Sharrock) e, olha, se não fossem os efeitos computadorizados zoados, seria um deleite visual maior do que o Fury Road, porque potencial para isso tinha. A fotografia tem momentos belíssimos quando é só isso, puramente boa finalização e composição visual, trabalho ótimo do Simon Duggan (substituindo John Seale) e cara, tem cenas absurdas visualmente, como a mãe da Furiosa de moto na tempestade de areia, aquela é sensacional, ou o momento da explosão do "sangue do céu" por cima do Dementus, são esses momentos que você olha para a tela e pensa: "F@D4!". Por fim, o trabalho sonoro é inacreditável, ver isso aqui no cinema é uma experiência sonora absurda, toda vez que ronca um motor (80% do filme) as cadeiras tremem, há a imersão, que é mais trazida em áudio do que em visual. O nosso querido Junkie XL, ou Tom Holkenborg, também traz uma trilha sonora não tão presente, porém arrepiante quando surge na obra, e traz essa empolgação de forma que sem ela não surgiria nem ferrando.
O maior problema de "Furiosa: Uma Saga Mad Max" é justamente ser um filme dessa franquia, já que quando Miller faz Estrada da Fúria ele eleva muito o teto qualitativo da série, e este sendo um longa que é diretamente correlacionado, terminando até de onde começa o de 2015, havendo uma recapitulação durante os créditos e um pós-créditos referenciando um dos personagens icônicos daquela obra, acaba com que as comparações sejam inevitáveis. Faltou muito capricho técnico na parte computadorizada, não coloco nem a culpa no diretor, talvez tenha sido pressa do estúdio por prazo que acabou sendo prejudicial na pós-produção e terminou com algumas coisas que eram para ser espetaculares e criativas, sendo feias e desagradáveis de olhar, que não consegue nem ser compensado com um trabalho incrível de figurino, direção de arte, maquiagem e som. Na questão narrativa, é mais uma história muito bem contada e empolgante que o Miller traz para as telonas, contando com um elenco ótimo, especialmente as duas intérpretes da personagem-título e Chris Hemsworth, este último roubando totalmente a cena, e também com a sua segunda camada atacando novamente. Não é apenas um filme de ação, um sci-fi com explosões massas de se ver e carrões, é uma jornada de sobrevivência que é muito bem trabalhada, apesar de pedregulhos narrativos desnecessários. Vale muito a pena assistir.
Nota - 8,0/10