Crítica - O Dublê (The Fall Guy, 2024)
A epítome de um dublê.
Antigamente, havia um seriado muito famoso na televisão chamado "Duro na Queda", ou "The Fall Guy" no idioma original, o qual falava sobre um dublê chamado Colt Seavers (interpretado por Lee Majors), que era enviado em missões para salvar pessoas e caçar criminosos. Fez muito sucesso em vários lugares do mundo, aqui no Brasil sendo exibida na Globo durante as tardes de domingo de 1983 a 1989, e posteriormente reprisada na Record e na TV fechada na FX. Como tudo no mundo, Hollywood não pode deixar quieto, então decidiu fazer um remake para os cinemas. Porém, a esperança veio por ser um projeto de David Leitch, um monstro do cinema de ação atual, tendo feito ótimas obras que mesclam o gênero com comédia, como "Deadpool 2" (2018) e "Trem-Bala" (2022), esse último sendo espetacular, eu gosto muito (e também é a crítica mais curtida da página até hoje). Aqui, Leitch faz um team-up com Ryan Gosling, que vem no momento perfeito para ele, já que é um dos maiores astros do mundo após "Barbie" (2023) e sua indicação ao Oscar, além da performance musical histórica na premiação. Sem contar Emily Blunt, também estando numa das maiores altas de sua carreira após sua pequena e, inexplicavelmente aclamada, participação em "Oppenheimer" (2023), também com um trabalho indicado ao último Oscar. Nomes fortes no elenco e por trás das câmeras, ótima base e temática. Não tinha como dar ruim, é mais um acerto do Leitch.
Colt Seavers (Ryan Gosling) é um dublê experiente de Hollywood, sendo o stunt do grande astro de ação Tom Ryder (Aaron Taylor-Johnson). Seavers é apaixonado pela assistente de produção Jody Moreno (Emily Blunt), a qual sonha em ter uma oportunidade como diretora. Quando Colt sofre um acidente gravíssimo, acaba se isolando e se aposentando parcialmente, terminando mal a relação com Jody. A renomada produtora Gail Meyer (Hannah Waddingham) dá a chance para Jody realizar seus sonhos, e acaba pondo Ryder como a estrela do longa. Colt retorna para fazer as cenas de ação, mesmo sem aval de Jody. Porém, tudo muda quando Gail revela ao dublê que Ryder sumiu, o colocando em uma jornada atrás do astro, onde passa por muitas confusões, explosões, lutas e, principalmente, uma grande história de amor e redenção. É um filme para falar sobre essa ala subvalorizada da indústria, que está aí desde o início da arte, os verdadeiros heróis que se sacrificam em cenas difíceis e impossíveis para que a magia do cinema aconteça em nossas frentes. Desde o cinema mudo com Charlie Chaplin e Buster Keaton até os dias atuais em franquias como "John Wick" e o próprio MCU, onde a utilização dessa galera é primordial para o funcionamento de qualquer cena.
Recentemente, está havendo um movimento em Hollywood para que haja esse reconhecimento, já que muitos atores e diretores estão dando visibilidade para essa galera, que também tem muitos que estão virando atores e diretores. David Leitch e seu parceiro Chad Stahelski foram os pioneiros ao realizar "John Wick - De Volta ao Jogo" (2014), que foi um sucesso, posteriormente com Stahelski dando sequência à franquia e Leitch indo fazer outros projetos, porém influenciando outros a tomar o mesmo rumo nessa nova era do cinema de ação, como Sam Hargrave, que começou sua franquia "Resgate" na Netflix. Outro muito presente nessa causa é Quentin Tarantino, que deu o papel de protagonista para uma dublê em "À Prova de Morte" (2007) e colocando um dos protagonistas de "Era uma Vez em Hollywood" (2019), Cliff Booth, sendo o dublê do outro principal, Rick Dalton. O ápice dessa movimentação vem quando na última edição do Oscar foi apresentado um vídeo fazendo uma reverência à profissão, cujo o objetivo é ter a criação de uma ala na academia e, posteriormente, sua própria categoria. Esse filme então vem na hora certa para esse movimento, já que tem mensagens ali meio discretas pedindo a fundação do prêmio, além de mostrar a complexidade, a dificuldade, os riscos que os profissionais da área correm durante o trabalho, vem como uma homenagem e até como conscientização de uma profissão não tão reconhecida.
Sobre o filme em si, eu posso dizer que eu gostei de quase tudo que envolve aqui, foi um ótimo tempo assistindo, é extremamente divertido, engraçado, ação sensacional, farofada, bons personagens e tudo mais. Foi feito com o objetivo de ser um blockbuster pipoca e cumpre perfeitamente com o propósito. Eu tive apenas dois problemas e já vou começar falando deles para ter uma boa sequência de elogios. A principal coisa que eu não gostei foi o excesso de metalinguagem, tipo, durante a primeira metade da exibição existem múltiplas piadas e sacadas para remeter aos bastidores de um filme real nos sets de um filme falso, que funciona inicialmente, eles fazendo algumas piadas tipo: "ah, e se a gente colocar que estamos tendo problemas com o terceiro ato no início porque realmente estamos tendo problemas com o final?", umas piadas bestas assim, mas que são engraçadas. Porém, tem um momento que são tantas em tão pouco tempo que enjoa, dá uma saturada, tanto que depois da metade o Leitch pisa no freio enquanto a isso, simplesmente dá uma parada para não saturar mais. Outra coisa que eu não curti muito foi a reutilização excessiva de "I Was Made for Lovin' You", do KISS, que é uma música muito legal e tal, é a grande música-tema do longa, mas tocam tantas versões que também dá uma leve saturada, tem versão normal, instrumental, eletrônica, até versão emo. Mas pelo menos é uma boa música e que combina perfeitamente com o casal principal, justificando esse uso aí tranquilamente, contornando o problema. O pior dessa trilha sonora, que dá uma pequena arruinada, é tocar Taylor Swift em uma cena, ali eu já tirei meio ponto da nota final.
Leitch cria uma dinâmica muito agradável, é um dinamismo maleável o qual nunca perde ritmo ou energia, sendo uma daquelas aventuras legais de se acompanhar. Ele é ótimo em fazer várias storylines na tela ao mesmo tempo sem deixar confuso, contando com uma edição sensacional de Elísabet Ronáldsdóttir (a mesma editora do primeiro John Wick e dos demais trabalhos do diretor), que o auxilia em equilibrar vários momentos que estão acontecendo na tela ao mesmo tempo de maneira natural que dê para acompanhar tudo com clareza. O realizador cria uma vibe de comédia de ação gostosa de se acompanhar, ainda com o trunfo do stealth, onde há uma trama de investigação que prende você à tela, que vai te investindo cada vez mais na trama. É muito bem pensado, já que cada momento é encaixado perfeitamente aonde deveria estar, dando essa equiparada na questão de ação, comédia, mistério e romance, com até as quebras de ritmo sendo bem colocadas para que haja um momento de respiro entre uma loucura e outra. O segundo e o terceiro ato do filme são repletos desses momentos investigativos e frenéticos, no qual hão dois breaks para dar um respiro na trama, mas estes também acabam levando a história à frente, um deles sendo dramático e revelador, e o outro sendo cômico e preparativo. Com um plot twist que eu confesso ser inesperado, a revelação do real vilão e seus motivos e, olha, é tão louco que surpreende pela excentricidade.
Outro trunfo que Leitch tem na carreira é o elenco, mas especialmente o protagonista, que é sempre carismático e legal de acompanhar. Passando por Charlize Theron, Ryan Reynolds, Brad Pitt e até mesmo The Rock, agora o diretor conta com Ryan Gosling como principal. Lembro que havia uma época que Gosling era zoado na internet por não ter expressões graças aos seus papéis interpretando personagens quietos que são idolatrados por incels, mas todos precisamos assumir que ele é um ator de comédia excepcional. Desde as comédias românticas como "Amor a Toda Prova" (2011), como outra comédia de ação "Dois Caras Legais" (2016), até sua performance aclamada e roubadora de cena como Ken em "Barbie", Gosling já demonstrou várias facetas diferentes no gênero. Aqui ele faz esse dublê experiente, que adora o emprego, apaixonado, que passa por um momento conturbado, tem uma queda (emocional e literalmente), mas que gosta do que faz e busca se reerguer. O Colt tem a chama do negócio, ele tem o amor ao trabalho. Gosling no seu carisma instiga para que acompanhemos sua trajetória de Seavers brincando de detetive até torcemos por ele em seus confrontos durante a exibição. Você gosta dele, é um personagem muito bacana, que carrega essa história por mais de duas horas sem dar cansaço, ele está presente em 99% das cenas do longa e você compra totalmente aquele cara, é um carisma adorável que eleva o longa em qualidade.
Querendo ou não, acaba sendo uma comédia romântica, a qual ele tenta reconquistar um amor perdido, que no caso é Jody, a assistente que virou diretora. Leitch faz um esforço admirável para não deixar a personagem cair no estereótipo de ser apenas o par romântico do Colt, mas sim de ter uma personalidade própria e que dividisse tão bem o protagonismo em tela. E olha, devo dizer que David tratou a Emily Blunt com mais dignidade que o Nolan, porque a personagem dela aqui é muito legal. Ela faz esse papel da aspirante à cineasta, que tem um sonho alto que ela está realizando, que está feliz com isso, mas que teve o coração partido e que quer o melhor para si mesma após isso. O arco dela não depende da figura masculina para funcionar, seria ótimo mesmo se não houvesse um romance, mas já que tem, Blunt e Gosling fazem questão de ter mais química que em toda cena de ciência do "Oppenheimer". É um casal particularmente inesperado, mas que funciona tão bem em tela. Desde o início você vai torcendo pelos dois, pois eles se dão tão bem em tela, a troca de olhares e sorrisos soa tão genuína que é impossível não torcer. As situações que eles vão passando durante a exibição vão contribuindo para a torcida, e as cenas com eles juntos são maravilhosas, honestamente dá vontade de namorar também.
Outros personagens também são muito legais, há essa mitologia bem criada entorno dessa equipe. Tem o tal Tom Ryder, o maior astro de ação do mundo, que é uma mescla de todas as principais estrelas de ação do mundo real, criando essa figura baseada em estereótipos que eles recebem (com certeza é baseado em alguém assim, mas invés de mostrar ao mundo quem essa pessoa é, colocam essa insinuação num filme, o que já aconteceu outras vezes). Ryder mistura a excentricidade de um artista com a vida agitada repleta de boates, mulheres peitudas, música eletrônica, álcool e drogas, em um mashup que convence bem na atuação do Aaron Taylor-Johnson (se eu falar mais, acaba sendo spoiler). Outro estereótipo é da Hannah Waddingham como Gail, a produtora, que é quem manda e desmanda no set, fingindo dar liberdade aos diretores (cof... cof... Kevin Feige... cof...cof...), mas que protege suas estrelas e as enfia em qualquer projeto até saturar a imagem. Ela tem essa vibe de chefona, que tem um poder maior do que o esperado, que pode fazer o que bem entender, que não se pode bater de frente. Ela tem o estilo do terninho e a bebida alcoólica sempre em mãos para reforçar um arquétipo bem criado pelo Leitch. Tem também o cãozinho Jean-Claude, que só recebe comandos em francês (olha as ideias dos caras, isso é maravilhoso) e co-protagoniza bons momentos do longa tanto cômicos quanto de ação. E, por fim, o Dan Tucker, personagem do Winston Duke, que é dito como o maior coordenador de dublês de Hollywood, e o trabalho do Duke é sensacional, muitas vezes servindo como um buddy cop para o Colt e sendo um brucutu nos momentos de ação, tendo uma parte interessante explorada na comédia.
Eu gostaria de ter falado mais, porque tem tanto conteúdo para ser falado que é triste ter que vir aqui me limitar a nove parágrafos por conta do Instagram. Mas, acho que nessa limitação já deu para entender o quanto eu adorei "O Dublê", uma comédia romântica de ação e espionagem sensacional, super divertido e com um fator replay incrível, eu poderia assistir uma vez por semana que não seria enjoativo. A comédia é bem trabalhada, tem essa questão metalinguística e crítica que convence bem no início, tem comédia física, situacional e que agrada vários tipos de público. Cenas de ação e um trabalho de dublês sensacional, colocando o Ryan Gosling nos mais variados conflitos, indo de cena neon com o personagem drogado até uma grande set piece que atravessa toda uma cidade famosa ao redor do mundo (aqui, no caso, Sydney). Parte de mistério espetacular que culmina em um plot twist surpreendente e um terceiro ato maluco e excêntrico em todos os pontos. Não só isso, como também conscientiza sobre a importância do dublê na concepção de uma obra, sobre os riscos da profissão e como são pessoas que, literalmente, dão a vida pelo cinema, pela arte, e que não recebem o devido valor, sequer são reconhecidos pela Academia em mais de 96 anos de história. É um filme com vários motivos para assistí-lo e, com certeza, lá no início do ano que vem estará, no mínimo, nas menções honrosas da lista de melhores do ano.
Nota - 8,0/10