Crítica - A Substância (The Substance, 2024)

O filme mais polêmico do ano.

Todo ano tem que ter seu filme divisível, aquele que causa briga nos grupos de cinema ao redor do mundo, cujo muitos irão amar, outros irão odiar, e outros ficarão em cima do muro. Geralmente é um filme de suspense, ou terror, as vezes mesclado com ficção científica, com uma crítica social pesada ou um estilo que o diferencie dos demais, temas diversificados, mas que impactam de alguma forma na sociedade. Já tivemos "Titane" (2021), de Julia Ducournau, e ano passado tivemos o poçante "Saltburn" (2023), de Emerald Fennell. Este ano, parece que o posto fica para este que estou falando agora, pois retrata vários pontos sobre a busca pelo corpo perfeito, a objetificação do corpo feminino, a busca pela juventude em um rejuvenescimento e a apelação para remédios para chegar num padrão estabelecido impossível de se alcançar. Basicamente, é um longa que satiriza o Ozempic. Brincadeiras à parte, é um longa produzido com quase nada, menos de US$18 milhões investidos, provavelmente grande parte desse dinheiro foi para o elenco, e mesmo assim conseguiu seu espaço, furou a bolha e está sendo o grande longa em repercussão em 2024, seja para o lado positivo ou negativo, mas, majoritariamente, as pessoas estão gostando, apesar das divisões.

Acompanhamos a história de Elisabeth Sparkle (Demi Moore), uma atriz famosa, com estrela na calçada da fama, uma carreira longeva, que está em decadência, tem um programa matinal numa rede de televisão sobre malhação, mas que é considerada muito velha e é descartada pela emissora. Quando lhe aparece a oportunidade de utilizar uma droga do mercado negro, chamada de A Substância, que cria uma espécie de clone mais jovem dela mesma por sete dias, Elisabeth aceita o desafio. Assim, surge Sue (Margaret Qualley), sua versão mais jovem, mais bonita, mais sexualmente apelativa e que se torna mais bem sucedida. No entanto, quando tempo demais começa a ser utilizado, a Matrix (como é denominada a versão de Moore) e o seu Outro Eu (a denominação de Qualley) precisam encontrar um equilíbrio, pois isso trará consequências pesadas para os dois lados. A responsável pela direção é Coralie Fargeat, que também escreveu o roteiro, produziu e editou (braba), e eu, confesso, não conhecia seu trabalho, ela só havia feito um longa previamente, mas ela tem várias qualidades, a principal delas: autoralidade. Ela consegue dar um estilo próprio à narrativa, criando um universo bem interessante com um conceito muito bem estabelecido, imprimindo algo que pode não ser objetivamente agradável, mas é instigante.

Este é o famigerado body horror, o terror corporal, em tradução literal, onde é aquele subgênero do terror em que vemos a exploração dos corpos, degradação, tudo gira em torno de um maneirismo ao redor do corpo humano. Aqui, há uma boa exploração quanto ao corpo feminino, pois desde o início somos apresentados e familiarizados de que este é um filme que explorará inúmeras facetas neste quesito. Começa nos mostrando o corpo de Elisabeth, uma moça já nos seus cinquenta anos, com um corpo já mais flácido, envelhecido, pouco chamativo para o público em geral, que é o maior problema desse filme, porque a Demi Moore passa longe de não ser mais atraente como é pintado, mas segue o jogo. Quando ela toma a substância e acaba surgindo a Sue, sua versão mais jovem, ela é gostosa, peituda, bunduda, pernuda, atlética, flexível, está numa faixa etária de auge físico e facial para chamar atenção. A forma como somos induzidos a ver como as pessoas naquele universo tratam as duas é através da cinematografia, onde quando vemos Elisabeth é sempre por um ângulo superior, apequenando ela em uma versão inferior, onde ela se sente pequena, onde ela é forçada a se sentir pequena, na realidade. Enquanto Sue é gravada em planos inferiores, olhando ela por baixo, onde vemos ela como uma figura endeusada, quase divina, a perfeição em forma de mulher. Os closes no corpo dela são assediadores, a câmera engole a Margaret Qualley de uma forma que quase te obriga a achar ela como uma deusa.

Essa crítica é muito pertinente, pois como nós não vemos, até na própria indústria, mulheres mais velhas sofrendo para se manterem relevantes, conseguirem papéis, etc. Não é incomum vermos uma atriz dos anos 80 e 90 aparecendo em algum longa recente toda recheada de botox, procedimentos estéticos, em uma tentativa de rejuvenescimento forçado para que crie uma realidade que não deveria existir, basicamente Hollywood não deixa as pessoas envelhecerem. É o caso da Kim Basinger, por exemplo, que hoje é uma idosa de setenta anos toda plastificada, cheia de cirurgias para aparentar ser mais jovem e acaba que fica esquisita, mas foi o que deixou ela relevante. É uma coisa muito no universo feminino mesmo, pois atores mais velhos como Russell Crowe, Tom Hanks, Denzel Washington, Michael Douglas, que são da mesma época, por exemplo, eles não penam para conseguir papéis, pelo contrário, eles escolhem no que querem atuar. É uma crítica à objetificação dos corpos, à utilização das aparências e como isso afeta muito mais as mulheres do que os homens. Querendo ou não, é um longa que entra naquela esfera de filmes dirigidos por mulheres e para mulheres, nós homens, claro, podemos curtir, acharmos a nota que quisermos, mas jamais teremos o mesmo impacto assistindo do que uma mulher.

Fargeat conduz muito bem sua narrativa, ela estabelece bem a trama ao nos mostrar Elisabeth Sparkle como uma estrela ultrapassada, em uma cena de abertura brilhante mostrando uma estrela na calçada da fama, sendo lapidada, colocada, festejada, fotografada, depois sendo ignorada, deixada de lado e até sujeira é derramada por cima dela sem que ninguém dê a mínima, até a última cena, onde esse arco é encerrado, com ela sendo limpada de vez. É um paralelo perfeito à carreira de muitas atrizes por aí, e um jeito bem inteligente de apresentar e resumir quem é nossa protagonista. Nós vamos acompanhando a progressão dessa jornada de queda, e quando vai para Sue, vemos uma jornada de ascensão, totalmente oposta ao que Elisabeth estava passando, mas também semelhante ao que ela, provavelmente já passou no passado. Os rumos que a trama vai tomando, a forma como ela vai sendo consumida pela luxúria, pela ganância, como ela quer cada vez mais e mais viver como uma jovem, viver inconsequentemente, ser amada, desejada, colocada em um pedestal tão alto por tudo e todos, como isso consume ela e a leva a sua inevitável ruína, ao final criando algo tão assombroso e tenebroso que torna-se difícil de olhar para a tela.

Essa ótica feminina é bem apresentada também no ponto da participação masculina na trama, já que todos os homens aqui são arquétipos bem típicos e que representam bem a vida real na maioria das vezes. Temos Harvey (Dennis Quaid), que é o produtor de TV, o caça-níquel, que é um misógino padrão de cinquenta anos de idade que vê e objetifica as mulheres com o simples e único objetivo de lucro, ele vê o corpo e o rosto feminino apenas como uma fonte fácil de renda. E esse personagem do Dennis Quaid é irritante, muito irritante, propositalmente, creio eu. Ele é caricato ao extremo, dá vontade de sair no soco com ele, mas o Quaid não é um ator tão bom também, convenhamos, ele é mais carismático do que propriamente bom, e aqui é só para ser chato mesmo, de uma forma nojenta e que praticamente assedia tanto Sue (por sua beleza e juventude), quanto Elisabeth (pela sua idade e seu tempo já ter passado). Tem a figura do ex-colega de Elisabeth, o qual ainda a acha incrível mesmo depois de tantos anos terem passado, o que é uma pequena faísca de autoestima que a personagem tem no longa. Tem o vizinho e o motoqueiro, que ambos tem uma paixão platônica por Sue, mas que destratam Elisabeth sem dó. Essa participação masculina enfatiza, não só a maneira a qual a sociedade vê as mulheres, mas também mostra como o público vê as figuras femininas na indústria, como é mais fácil de renovar um panteão de atrizes do que de atores, e se não for alguém como a Meryl Streep, não vai ter vida longa na indústria.

É preciso ressaltar as atuações da personagem principal, ou das personagens, porque é uma personagem que, na realidade, são duas, mas que são uma só, é realmente confuso, só assistindo para entender. Essa, definitivamente, é a melhor performance da carreira da Demi Moore. Ela é uma atriz famosa, fez vários filmes, mas sofreu do mesmo mal da personagem, que é o envelhecimento, à medida que o tempo foi passando, ela foi sendo esquecida, chegou ao ponto de ser mãe em comédia romântica, que é quando você percebe que um ator está velho. E aqui, essa moça entrega de uma maneira absurda. Ela entrega sem falar, só olhando no rosto dela você sente o desgaste, o quanto ela se sente subestimada, desvalorizada, e só no olhar você sente a dor dela. À medida que o longa passa, o quão mais consumida pela Substância ela vai ficando, ela vai enlouquecendo, envelhecendo pela imprudência de sua "outra eu", tornando-se realmente uma monstra, deformada, careca, manca, chega a ser tenebroso, funcionando no body horror. A cena dela cozinhando enquanto assiste e enlouquece e envelhece com a entrevista de Sue é sensacional, é a cena para passar no Oscar (tomara que entre, porque merece).

E Margaret Qualley, meu mano, que delícia. Não só no sentido carnal da palavra, mas é um deleite ver essa moça atuando. A atriz é explorada ao máximo em todos os quesitos, existe uma fascinação por ela, pelo corpo dela, como eu falei, a Fargeat traz ela como uma divindade. A atuação dela traz, perfeitamente, esse ar de juventude, ela exala essa vida jovem, uma feminilidade, uma utilização palpável, que você sente ela sendo quase um objeto, manipulado nas mãos da indústria, nas mãos de qualquer homem que passe por sua vida. É, no mínimo, corajoso ela fazer esse papel, ela se expõe de uma forma inacreditável, onde o espectador é praticamente obrigado a assediá-la, a maneira que a câmera vai passando pelo corpo dela, pelas partes íntimas, é assustador nos dias de hoje, ela mesma assumiu que foi difícil para ela fazer, e que é difícil para ela assistir e se ver como o retrato da perfeição. E não vai contra a mensagem, pelo contrário, é favorável, pois ela não existe, é uma idealização de uma moça perfeita, mas ela não é real naquele universo na sua essência, ela é uma versão totalmente idealizada, um padrão inalcançável, que ninguém nunca vai alcançar, nem a própria Margaret consegue pois não é tudo dela no corpo que vimos, tem próteses ali. É ótimo, é chocante, é bizarro.

O trabalho técnico também é excelente e precisa ser ressaltado, o nível técnico é absurdo. A direção também ajuda muito, sua autoralidade faz com que a fotografia e os cenários tornem-se bem melhores por conta do contexto. O design de produção é bem interessante, e como a direção de fotografia brinca com os cenários e com suas dimensões, sendo mais aberto ou mais fechados quanto ao contexto da cena. A construção da casa da Elisabeth, o corredor meio arredondado, o banheiro com uma cor branca que enlouquece, o laranja do corredor da emissora, como as cores fortes corroboram com as loucuras das personagens. A trilha sonora também é excelente, que ajuda nesse clima assustador, dramático, que acaba entrando na maluquice do sci-fi, vai criando um clima imerso por ali, e é muito bem feito, só não curti muito do nada a inserção de um metalzão do nada durante o ato final. Mas o grande destaque é a maquiagem e os efeitos dela. A maquiagem mais padrão, um envelhecimento da Demi Moore, isso já é excelente. Próteses no corpo da Margaret Qualley também são muito bem feitas, parecem reais. E se destaca muito por isso, por não ser só maquiagem de rosto, por levar o corpo inteiro nessa loucura técnica, abraçando de vez o body horror. Ao final, temos a personagem tornando-se uma figura monstruosa e depois evoluindo para algo ainda mais monstruoso e feio, e a maquiagem envolve o corpo inteiro, criando uma criatura inacreditável, algo bisonho, diferenciado, que cria um final tenso e apoteótico. Devo falar: se não vem Oscar, pode fechar a premiação.

Encerro por aqui meu comentário sobre "A Substância", deve ter mais coisa para falar, mas creio não ser a pessoa certa para isso. É um filme simples, não tem tanta complicação quanto parece, ele é bem explicado, não chega a ser expositivo, é uma trama bem comum, essa coisa de troca de corpos, de substituição, a chegada da nova geração e a obsolescência obrigada da geração antiga. O que diferencia aqui é o storytelling, a forma como é contada, e a autoralidade no texto e na direção de Coralie Fargeat, que traz uma imersão incrível, um jogo de câmeras sensacional envolvendo os cenários, as atrizes, um design de produção absurdo e diferenciado que mexe com a mente do espectador. Contando com atuações espetaculares de Demi Moore, que entrega a performance de sua carreira, trazendo uma personagem complexa em uma situação deplorável que é uma das mais comuns em Hollywood, infelizmente (como eu disse, se não for a Meryl Streep, é cortada fora), e também de Margaret Qualley trazendo um contraponto perfeito em um papel inacreditável, que nem ela alcança o padrão que o papel pede. Sem contar a maquiagem, os efeitos especiais e a trilha sonora. Cara, que baita filme, realmente marcante e que merece uma boa recepção. Não é um filme para todo mundo, fato, no entanto, é extremamente funcional no que se propõe e vale a pena ver, independente do que você vai achar.

Nota - 8,5/10

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