Crítica - Coringa: Delírio à Dois (Joker: Folie à Deux, 2024)
Desgraça à dois.
Eu falei sobre o primeiro "Coringa" (2019) por aqui recentemente, e lá no texto eu já expliquei sobre o fenômeno que tornou-se a versão de Todd Phillips quanto ao clássico vilão. E era óbvio que, tendo arrecadado mais de US$1 bilhão em bilheteria (tendo custado menos de US$70 milhões) e mais o fato do sucesso na temporada de premiações, tendo vencido dois Oscars em 2020, incluindo o de Melhor Ator para Joaquin Phoenix, e com uma empresa como a Warner Bros. por trás, com uma franquia tão gigantesca que é DC, e principalmente o universo do Batman, uma sequência viria em breve. A ideia para uma continuação de Joker não é ruim, se bem explorada poderia se tornar um filmaço. Já que Phillips queria focar na vivência do manicômio e no clímax do tribunal, como ele já copiou descaradamente "O Rei da Comédia" (1982) e "Taxi Driver" (1976) no anterior, aqui o que não faltavam eram clássicos para serem copiados. Poderíamos ter algo semelhante ao grandioso "Um Estranho no Ninho" (1975), ou na parte do julgamento, algo mais puxado para "As Duas Faces de um Crime" (1996). No entanto, o que acontece é que o verdadeiro Coringa se demonstrou ser não Arthur Fleck e nem Joaquin Phoenix, mas sim o próprio diretor Todd Phillips, que, de maneira anarquista e até mimada, decidiu fazer um projeto ambicioso que envolve ser um musical, colocando Phoenix para cantar lado a lado com a cantora e atriz Lady Gaga no papel de Arlequina. A ideia era pretensiosa, parecia que poderia render algo, mas, somado a vários e vários fatores, acaba que é uma experiência maçante e sem qualquer objetivo.
Dois anos após causar o caos em Gotham, Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), o Coringa, está preso no Asilo Arkham, aguardando o julgamento, esperando para ver se irá pegar perpétua ou pena de morte. Entretanto, tudo muda quando ele conhece Lee, ou melhor, Harleen Quinzell (Lady Gaga), uma outra paciente do sanatório, que participa da atividade musical do lugar. A aproximação dos dois se dá devido a música, que une-os desde o princípio, com Arthur revelando ser um grande fã de cantar, ou pelo menos de se fantasiar cantando. Entre realidade e alucinações, Fleck precisará lidar com este amor louco enquanto passa pela corte do seu caso sendo transmitida ao vivo na televisão e com a convivência dentro do presídio, mas, agora, precisando desvencilhar a ficção da verdade quando necessário. Esse filme foi simplesmente massacrado por tudo e todos desde seu lançamento, não à toa, já está disponível para aluguel e vazou na internet em menos de um mês após seu pífio lançamento nos cinemas, que rendeu menos dinheiro que "Napoleão" e "As Marvels" ano passado, por ora. E eu gostaria de lembrar que eu fiquei dois anos avisando que seria um filme ruim, meu primeiro post falando que era uma péssima ideia foi em junho de 2022, então, eu simplesmente não me surpreendi em nada com a qualidade questionável e com a repercussão negativa.
O lado bom é que se escapa, não chega a ser um filme que você questiona a qualidade técnica dele em si, não é como "Madame Teia" (2024) que é ruim, todo mundo sabe que é ruim e é completamente ausente de quaisquer qualidades, aqui existem coisas boas. Design de produção, figurino, maquiagem, fotografia, não há como reclamar disso. Claramente há uma visão artística em todos os pontos que compõem a narrativa visualmente, os números musicais são bem coreografados. No entanto, tudo isso para quê? Não há propósito aqui, acaba que essa falta de algo grandioso é o que transforma a visão artística de interessante em pedante. Você não se empolga com nada, porque não existe trama, nada acontece, é só um bando de coisas jogadas em meio aos números musicais mais desconjuntados que eu já vi em um musical. São mais de duas horas que você sente como perdidas, como se uma parte da sua vida em que você poderia estar jogando um videogame, estando numa call com seus amigos, batendo uma, ouvindo música, passeando num shopping, como se esse filme sugasse esse tempo e não te devolvesse. É totalmente vazio, não há sentimento algum, e isso, em parte, falta para ser um bom produto do gênero (seja das adaptações de quadrinhos ou de musicais), mas, principalmente, um bom produto.
Nada aqui realmente funciona na questão narrativa, você vai acompanhando uma história que poderia ser resolvida em oitenta minutos, entretanto, o diretor prefere ficar enchendo linguiça colocando números musicais sem propósito algum. Não me levem a mal, eu não sou hater de musicais. Não sou fã, mas recentemente venho elogiando bastante obras do gênero por aqui, elegendo até o musical "Amor, Sublime Amor" (2021) como o melhor filme de seu ano. No entanto, o que torna um musical bom? É quando a música colabora com a história, ajuda a desenvolver os personagens e faz com que um caminho seja traçado para o restante da exibição. Aqui o que acontece são simplesmente cantorias sem sentido o tempo todo, os personagens cantam músicas aleatórias que não ajudam em nada a desenvolvê-los, é só encheção por encheção mesmo, acaba que isso cansa o espectador, que chega ao final do longa esgotado pelo tamanho número de apresentações que ele foi obrigado a acompanhar nas últimas duas horas que não levaram a absolutamente nada. É um poço de vazio, é uma obra oca, que parece que faz eco quando cada personagem fala qualquer coisa. Dá para contar nos dedos os bons números, eu gostei apenas do primeiro, onde Fleck canta para seus companheiros detentos, no entanto, é apenas uma alucinação que também não gera nada.
O conflito do longa é inexistente, existe até uma tentativa de fazer desta parte do tribunal o denominado "Julgamento do Século" (sendo que se passa no século XX, onde teve literalmente o Julgamento de Nuremberg, mas o palhaço foi mais traumatizante para a humanidade, pelo visto), porém, tudo que acontece parece só um respiro antes de entrar mais cantoria novamente. Essas partes sem musical, na realidade, são as piores, porque não tem realmente nada, NADA, o Arthur Fleck fala qualquer coisa e soa como se tivesse aquele macaco batendo prato na cabeça do espectador, pois chega um ponto que nem prestar mais atenção nas falas você presta, pois é tanta coisa dita e que não leva a nada, que é só melhor parar de encher o cérebro de informação inútil dada sem motivo algum. Pouquíssimas são realmente úteis para a trama ou para desenvolver os personagens, e estas acabam sendo extremamente expositivas, porque o próprio roteiro não dá oportunidade dessas informações serem construídas organicamente para criar um arco de personagem, precisa vir um coadjuvante literalmente explicando na sua cara que é isso, que é aquilo, e acaba com a ambiguidade, que é um ponto altíssimo do original.
A ambiguidade que não só aqui é mal feita, como ainda arruina o mesmo ponto no original, já que aqui são respondidas perguntas que ficaram em aberto propositalmente no anterior e saber realmente o que acontece meio que estraga uma parte boa do longa. Temos a resposta de que ele não matou a psicóloga no final do longa, ela sequer é citada, ou o fato dele ter tido uma psicóloga, mas é citado que ele é julgado por cinco assassinatos, que seriam os três engravatados do trem, o colega de trabalho dele e o Murray, sem contar a mãe que ele também foi o responsável. Outra morte que ele poderia ter cometido, mas que aqui é respondida que não, é a da Sophie, personagem da atriz Zazie Beetz, que aparece aqui para simplesmente humilhar o Arthur em rede nacional, dizendo que a mãe dele dizia que ele era sem graça, que construiu a vida em torno de mentiras e que, provavelmente, era virgem. Isso foi o que mais me irritou no longa, pegaram o personagem e tacaram ele na lama, fizeram dele um saco de pancadas. Ele é humilhado várias vezes, todo mundo fala mal dele, sofre humilhação pública, foi espancado, abusado sexualmente (Phillips tenta deixar isso ambíguo, mas, novamente, o diálogo que tenta ser metafórico, na realidade, é altamente expositivo), abandonado, corno, esfaqueado e morto. Simplesmente pegaram o maior vilão da DC, talvez da Warner, e fizeram dele a própria piada, manchando a imagem do personagem por um tempo indeterminado.
Eu entendo o que o Todd Phillips quis fazer aqui, mas nesse caso, só a ideia disso já está errada. Phillips tenta tirar sarro do fã, ou por se identificar com o Coringa, postar frases que ele nunca disse nos stories, se dizer literalmente ele e nunca ter tocado em uma mulher na vida, ou dos fãs da própria editora, pegando tudo que havia sobre o personagem e simplesmente jogando no lixo. A ideia de zoar o fã é justa, existe um pessoal que merece a zoação, merece a humilhação, mas aqui, meu irmão, você está lidando com a continuação de um longa bilionário, e o brilhante diretor tem a ideia de escrotizar aqueles que deram o bilhão numa continuação, que, como resultado, gerou US$204 milhões, quase um bilhão a menos que o outro. Então, está aí a sua resposta, Todd Phillips, tentou se pagar de artista, de anarquista, e se ferrou bonito. Não só estragou uma franquia, manchou a imagem do personagem, como também detonou a própria carreira. Na moral, parece sabotagem, porque não é possível que tanta coisa colabore para um resultado tão pífio. Além disso, somos obrigados a ler declarações deste ARROMBADO cagando regra sobre a obra, dizendo que as pessoas que não entenderam, que precisa ser inteligente para gostar, que seu personagem nunca foi o Coringa. Mas olha, se o Sr. Diretor é tão inteligente para construir uma obra tão complexa, como foi tão BURRO ao ponto de humilhar o personagem e todas as tribos de seus fãs, causando um dos maiores fracassos da história da DC? Me responde essa aí, seu babaca!
E o pior é que, o que ele faz com o personagem-título, mancha mais uma boa entrega do Joaquin Phoenix. A entrega física dele, o emagrecimento, isso não é novidade. A atuação dele mais contida, que de vez em quando extrapola e fica maluco, isso é sensacional, e isso acontece aqui várias vezes. No entanto, o desenvolvimento dele é tão tenebroso, as desgraças que acontecem com ele numa tentativa de criar uma jornada de queda, acabam que são prejudiciais para o próprio ator no papel. Tem um certo ponto no filme que eu comecei a me interessar, que foi o Coringa metendo o louco, demitindo a advogada ao vivo, dizendo que ele mesmo ia se representar, e a cena seguinte dele chegando maquiado no tribunal, sendo performático, irônico, sarcástico, meu brother, aquilo ali é peak Joker, é uma das melhores adaptações possíveis que podem se entregar do personagem. Contudo, isso dura menos de dez minutos, é a melhor parte da exibição, disparado, que envolve o anão do antecessor, que mostra o trauma daquele personagem, que treme só de ficar na presença de Fleck. Cara, aquela cena é espetacular, demonstra a tensão no rosto daquele personagem, como um trauma pode arruinar uma vida, e o protagonista intensificando aquilo como um bom psicopata que é. Para dez minutos depois, tudo isso ser jogado novamente no lixo. Sem falar sobre o final, que cai nas soluções mais presunçosas possíveis e encerra forçando uma barra para criar um futuro de maneira extremamente forçada, até referenciando ao Coringa do Heath Ledger para forçar amizade com os fãs depois de destroçá-los.
A sensação que esse filme passa é a de gol anulado para o seu time, quando tá rolando aquele jogo chato, e finalmente sai um gol, você sai maluco comemorando, mas vêm o árbitro, o VAR e corta o seu barato. É literalmente está a sensação, parece que quando tem algo bom, isso é apagado e esquecido depois de pouquíssimos minutos, e você é obrigado a voltar para a realidade da mesmice, da chatice, da baboseira que você já estava vendo anteriormente. Outra coisa que complementa este sentimento é pegar atores famosos e dar papéis pequenos para eles, que não agregam em literalmente NADA para a trama. Temos Catherine Keener como a advogada, que é retirada depois de uma hora e meia do longa sem mais nem menos. O Brendan Gleeson, que meu pai amado, que desperdício fizeram com meu mano, colocaram ele como um guardinha genérico cujo a função é mandar os outros calarem a boca e abusar do Arthur verbal e fisicamente. A própria Zazie Beetz só aparece em uma cena, pegam o caminho deixado pela personagem e a obsessão que o protagonista tinha por ela e é jogado fora mais uma vez. Tem até o Harvey Dent no longa, tem um dos grandes vilões da mitologia do Batman, mas se não quer relação com quadrinhos nem nada, porque que colocou esse calouro de odontologia para interpretar o personagem, e ainda queimar metade da cara dele como uma referência gratuita no final? Cara, Todd Phillips não sabe nem o que ele quer direito e ainda quer ficar cagando regra para as pessoas gostarem do trabalho dele. Volta para o "Se Beber, Não Case" que é o seu lugar.
Mas a mais desperdiçada de todas é a Lady Gaga, por pouco quase esqueci de falar dela o texto, de tão memorável que é a, suposta, co-protagonista do longa. Cara, literalmente a função dela é encher o saco, cantar até dar vontade do espectador esmurrar a tela, porque canta para um cacete e ainda nerfaram a voz dela, tiveram que pedir para ela cantar menos bem para não deixar o Joaquin Phoenix para trás (e olha, que voz feia do Phoenix também, hein). A Lady Gaga fez um ótimo papel lá em "Nasce uma Estrela" (2018), não é lá uma ótima atriz, "Casa Gucci" (2021) está a solta por aí para confirmar, mas é competente quando bem dirigida, coisa que não ocorre aqui, porque a personagem é totalmente supérflua e esquecível. Essa é a pior versão possível para a personagem da Arlequina, pegaram toda uma trama de dependência emocional, relacionamento abusivo e adaptaram para um romance água com nescau onde o Arthur consegue ser COMPLETAMENTE IRRITANTE gadando nessa mulher, ele baba tanto o ovo dela que dá para encher um balde, meu mano, que vontade de socar a cara do Arthur que dá nesses momentos, porque fazem dele o verdadeiro gadão guerreiro. É inacreditável, é de dar vergonha alheia.
Sobre o que eu gostei? Bom, eu gostei de algumas coisas, só para dizer que eu não joguei hate por aqui. A sequência inicial em animação, remetendo Looney Tunes com um estilo de traço mais puxado para animações europeias, a trilha naquele momento, cara, é muito bem feito, muito legal, inicia o longa de uma maneira diferente e agradável. Eu também curti a fotografia, que é bem esverdeada, traz toda uma sensação de falta de alguma coisa para o personagem, o nublado de Gotham colabora para isto, como a paleta muda completamente quando vai para o musical também é bem feito, mostra que sai do desespero para o lúdico muito bem. A construção dos cenários, seja de Arkham, o intimismo do asilo, ou o próprio tribunal, sem contar os sets fantasiosos dos números musicais, é excelente, é muito bem construído, tem uma vibe mais original ali, tem algo a ser construído visualmente. Mas é só isso que eu consigo elogiar, essas três coisas e os dez minutos que o Arthur verdadeiramente coringou durante o tribunal com a demissão e a cena do anão, mas são só esses pontos que eu consigo elogiar, de resto é a maior besteira que você pode gastar dinheiro para ver no cinema.
Podemos falar com tranquilidade que "Coringa: Loucura à Dois" é um completo desperdício, um completo fracasso e um filme ruim. Ele não é tenebroso, ele não chega a ser ruim por ser ruim igual outros, como os filmes da Sony, ele é só mal executado. Tinha visão artística, tinham boas ideais, tinha orçamento para a criação de um longa espetacular, e realmente é um espetáculo... técnico, apenas, porque, olha, foi difícil encontrar qualidades aqui fora a parte visual. Mas tem coisas legais, como aquela animação, e... A atuação do Joaquin Phoenix? É uma boa performance, mas que acaba sendo arruinada pelo trabalho pífio pelo qual o personagem passa, em uma jornada de destruição que é feita por fazer e não por motivo. Esse filme não tem nenhum propósito, foi feito com ambição de bilheteria e prêmio, mas não tem nenhum objetivo, nada que justifique sua existência. Ele traz a pior sensação que se pode ter vendo um filme: apatia. Você não sente nada assistindo, é como estar anestesiado enquanto vê. De vez em quando tem uma cena boa, mas no geral é bem decepcionante, bem irritante e bem ruim.
Nota - 4,0/10