Crítica - Wicked (2024)
"O Mágico de Oz" é uma história clássica, que vive na cultura pop até hoje, impossível não conhecer a história de Dorothy, a menina do Kansas, e seu cachorro Totó, que vão parar no Maravilhoso Mundo de Oz, e tem de se unir com um Espantalho sem cérebro, um Homem de Lata sem coração e um Leão sem coragem para ir em busca do tal Mágico e realizar seus desejos. Como todos sabemos, o conto tem uma vilã, a Bruxa Má do Oeste, que atrapalha Dorothy em sua caminhada, em busca dos sapatos de rubi, que pertenciam a sua irmã e são entregues à garotinha pela Bruxa Boa do Sul, Glinda. A questão é: será que a Bruxa Má era realmente má? Foi isso que pensou o escritor Gregory Maguire, que em 1995 lançou um livro criando uma história mostrando o lado e o passado da Bruxa antes de virar a inimiga número um de Oz. O livro foi adaptado para a Broadway em 2003, num musical que é um absoluto fenômeno, sendo o quarto mais vendido de toda a Broadway e que está tentando ser levado para as telonas há muito tempo. No entanto, só agora com produção da Universal e direção de Jon M. Chu, diretor de outra excelente adaptação musical, "Em um Bairro de Nova York" (2021), e temos um fenômeno multimídia, pois este já passa dos US$715 milhões em bilheteria no momento em que estou escrevendo, sendo a quinta maior bilheteria de 2024. Porém, contudo, portanto, todavia, todo o hype vale a pena? É justificável?
Nascida na família do governador de Oz, Elphaba (Cynthia Erivo) sempre foi rejeitada por sua família por ter nascido com a pele verde, desde criança sendo incomodada e azucrinada com comentários sobre sua pele e tendo que lidar com poderes mágicos que nem ela sabe de onde vem. Quando adulta, ela vai para a faculdade, junto com sua irmã, Nessarose (Marissa Bode) e lá acaba chamando a atenção por sua cor e por seus poderes, criando a curiosidade na lendária feiticeira Madame Morrible (Michelle Yeoh). Contudo, ela é obrigada a dividir quarto com a rica e mimada Galinda (Ariana Grande), cujo tem tudo de mão beijada e é a mais popular de todo o colégio, sendo bajulada e adorada por todos. Tendo que lidar com sentimentos conflitantes, suas diferenças e sua forçada proximidade, Elphaba e Galinda se sentem na obrigação de se darem bem, precisando passar por dificuldades para chegar a esse ponto. Enquanto uma sonha em ser normal e conhecer o Poderoso Mágico de Oz (Jeff Goldblum) e a outra tem o sonho superficial de se tornar uma feiticeira e a esposa de Fiyero (Jonathan Bailey), elas precisam lidar com suas diversidades e se superar em uma relação complicada, onde envolvem desde as diferenças de popularidade até sentimentos pelo mesmo homem.
Assim que o filme terminou, eu corri para o YouTube e decidi assistir a alguma gravação da peça para ter noção de adaptação e como aquilo foi feito no teatro, porque é algo tão bonito, fantasioso e criativo, que eu precisava ir atrás de como faziam isso num palco ao vivo. Acaba que, baseado no que eu vi, eu gostei bem mais do filme, mas pela linguagem que a obra apresenta adaptada para o cinema, as proporções são grandiosas, é tratado como uma saga acontecendo bem diante de nossos olhos. Basicamente, só muda a ordem e a execução de uma das músicas, o resto está na ordem original e muda que temos muito mais cenas entre os números, assim, dando muito mais desenvolvimento para aqueles personagens, especialmente a relação entre Elphaba e Glinda. O Jon M. Chu sabe desenvolver bem a escala daquilo que estamos vendo, ele tem noção que é algo que tem milhões de fãs ao redor do mundo e cria algo grandioso e fantasioso, que sabe ser ambos, criando uma real experiência, como se fosse o sonho de muita gente tornando-se realidade diante de seus olhos. Eu consigo entender a comoção, não sou um fã (nem ver a peça me tornou um), mas eu consigo pegar esse sentimento devido a identificação com outras obras.
Eu também fui reassistir ao clássico "O Mágico de Oz" (1939), que, bom, não tem nada relacionado ao que vemos por aqui além da mesma base da história de L. Frank Baum, mas que, claro, seria muito referenciado, então estou num momento de respirar esse mundo de Oz. Chu consegue criar uma ambientação incrível, que traz o lado da fábula, abraça esse lado fantasioso, pegando todas as referencias possíveis de boas adaptações de fantasia e criando sua própria, colocando um tom estudantil que remete a "Harry Potter", ambientações e cenários bastante criativos, os objetos em cena bem imaginativos, diferentes. Se assume como uma fábula e acho que esse é seu grande acerto, não tem vergonha de ser colorido ou exagerado, mas sim utiliza isso ao seu favor para engrandecer a obra, fazendo com que adentremos em um mundo diferente, onde o inesperado é possível, a magia é real, animais de CGI falam (mas a mulher ser verde não pode, é a mesma lógica dos humanos da Marvel odiarem os X-Men e amarem todos os outros heróis). Essa estética lúdica, com cenários absurdos incluídos em uma escala enorme, cenografia tão sensacional quanto, fotografia que realça isso, questões de caracterização através dos figurinos, maquiagens, penteados e efeitos, cara, é algo que fascina genuinamente.
Chu também é um excelente diretor nos números musicais, e olha, tivemos vários em 2024, mas este é disparado o melhor por vários motivos. O primeiro é: praticamente todas as músicas são boas, não tem uma que fique fora de tom ou que pareça forçado, tem uma ou outra ali que soa mais inútil, eu não curti muito o número do bode, mas aquilo ali dá para passar tranquilamente. O segundo motivo: encaixe. Existe uma inteligência em como os personagens irão começar a cantoria, existe uma preparação e um desenvolvimento entre os números para que não fique exaustivo, tem músicas o tempo inteiro, mas eles sabem como cadenciar isso muito bem. Terceiro: pessoas que realmente são cantores ou atores de musicais nos papeis, a escolha de casting é excelente por favorecer quem realmente sabe cantar e dançar, colocando uma alta credibilidade em tudo aquilo que está em cena (e só para dar aquela alfinetada, todos sabem falar o idioma em que estão cantando). Quarto: não tem vergonha de sua identidade, as músicas vão rolando como parte da trama, os personagens vão dando sequência às suas ações enquanto o número acontece, eles contam a história, e não a param para cantar quando quiserem, é usado como parte da identidade desse universo (visto que o clássico de 1939 também já era musical), não tem porque esconder suas músicas ou vender ser algo que não é, este sabe muito bem o que é e o que deve ser, se diferenciando de todos os outros musicais lançados em 2024 e se unindo a boas obras lançadas desde 2021 no gênero.
Os números musicais são um deleite, não só são músicas muito boas, como as coreografias, a entrega do elenco enquanto estão performando as canções e a direção que consegue os coordenar de forma quase perfeita. O número inicial, "No One Mourns the Wicked", dá o pontapé e já nos põe bem na vibe que o longa quer, já ali vamos entendendo a viagem que vai ser. Tem dois solos da Elphaba, "The Wizard and I", que já era uma música famosa fora da peça, e "I'm Not That Girl", o primeiro é muito melhor, mas nos dois a Cynthia Erivo manda muito bem. Os duetos dela com a Glinda são ótimos, "What is This Feeling?" e o número final "Defying Gravity" são absurdos, principalmente o último, que é a melhor música do longa, não só a letra, o instrumental, mas o contexto, o visual, fotografia, tudo culmina em um final apoteótico que encerra bem essa parte um sem deixar pontas soltas. O solo da Ariana Grande, "Popular", é excelente e consegue mostrar bem o contraste e as diferenças das personagens, mas especialmente a personalidade de menina rica e mimada da Glinda. Um dos meus favoritos foi o número do Jonathan Bailey, o "Dancing Through Life", que é um absurdo, a biblioteca giratória, a movimentação dos personagens no cenário, a coreografia coordenada com dezenas de pessoas em cena, aquele ali é um absurdo de bem dirigido.
Acaba que outros números ficam para trás, me trouxeram uma exaustão, não pela qualidade das músicas ou da direção, mas acabam que são tantos em um filme tão longo, que acaba que fica chato em um certo ponto, cria-se uma barriga ali, que só vai diminuir quando começar o "Defying Gravity". Eu acho o número do bode bem qualquer coisa, o encaixe no filme é muito melhor do que na peça, mas não pega. A parte da Cidade das Esmeraldas e o número "One Short Day" é muito longo, é uma grandiosa gordura que existe ali dentro, parece que essa aí não vai acabar nunca. Na sequência tendo o número do Jeff Goldblum, "A Sentimental Man", que meu mano, que música chata e melosa, dá até preguiça. Acho que é a partir dessa parte do trem e da cidade que vem uma queda brusca, o que acabou diminuindo bastante minha experiência, pensar nisso até me faz questionar se eu não diminuo a nota, mas sorte que o clímax no final dá uma salvada das boas.
Gosto muito da sutileza na hora de fazer um foreshadowing ou um flashback, o diretor é minucioso nos detalhes e põe várias referências de maneira um pouco disfarçada, como homenagem ou como dicas do futuro. Acaba que eu vi o segundo ato do musical também, e bem, sem spoilers, mas tem personagens que aparecem aqui que são clássicos da história original, mas antes de tornarem-se quem são. É bem construído, como detalhes tornam-se dicas, como um bolso perto do coração ou uma música sobre desligar o cérebro, as dicas já estão na nossa cara e as atitudes e trejeitos de alguns personagens já entregam quem eles podem ser. Outros detalhes menores são bem feitos, uma pequena participação no plano sequência do início onde vemos Dorothy e seus amigos na estrada de tijolos amarelos, ou durante "Popular", onde Glinda pega sapatos vermelhos e os bate duas vezes, remetendo ao clássico onde os sapatos poderiam levar Dorothy para qualquer lugar. Ou então quando existe uma cena onde Elphaba anda de bicicleta e há um cesto na traseira, assim como a versão do mundo real da personagem no clássico de 1939. Eu admiro isso, colocar essas referências sem serem forçadas ou muito óbvias, são pequenos detalhes que contribuem para o todo do longa, demonstrando um amor que a equipe tem pelo projeto e pela história como um todo.
Indo para o elenco, é preciso destacar a Cynthia Erivo como Elphaba, que é uma performance surpreendente. Ela manda muito bem, consegue passar e convencer numa personagem muito mais jovem do que ela, ela traz um ar juvenil, de aprendiz, consegue trazer uma atmosfera de sonhadora, de querer ir atrás de seus objetivos, mas também de ser uma justiceira, que quer justiça por certas causas, por pessoas e coisas, que tem de lidar com o preconceito. É uma personagem que tem uma vergonha e um medo escondido dentro dela, que ela não demonstra, mas que dá para sentir através de seu comportamento corporal, da expressão claramente tentando ser o que ela não está sentindo, é muito bom. Sem contar que ela canta muito, os números solos dela são incríveis, a voz dela é incrível e ela manipula para ser bem diferente do que a gente já conhece dela. Ela está indicada ao Oscar, merecidamente, mas tem outras que eu gostei mais que poderiam ter pego essa vaga dela (mas que é muito melhor que a Emilia Pérez é, não existe comparação, até porque essa nem IA precisou usar para cantar bem).
Mas, o destaque do elenco é a Ariana Grande como Glinda. Eu geralmente sou contra cantor famoso atuando, eu sei que ela já tinha uma carreira prévia como atriz, mas em série e filme televisivo da Nickelodeon nem dá para contar direito. Só que ela aqui é sensacional, é absurda, é a melhor coisa do filme. Ela traz esse tom de menina mimada, popular, que usa rosa, quase como se fosse uma sátira de uma personagem de filme adolescente dos anos 2000, ela tem quase um quê de Sharpay nas atitudes dela, na forma como ela é bajulada, adorada, se porta como riquinha e fica usando rosa o tempo inteiro. Também é legal como ela finge essa inocência, mas tem uma noção grande para várias coisas e prefere esconder isso para não estragar a visão que as pessoas tem dela. Sem contar a voz, porque eu sabia que ela cantava bem, mas os falsetes quase líricos dela aqui são do cacete! E a relação das duas é muito bem montada, sabe como criar a rusga, resolvê-la, criar uma amizade, desenvolvê-la e encerrá-la de forma pacífica, a química que elas vão construindo é inacreditável, o dueto é perfeito e, bom, pelo o que eu li, tentaram diminuir o contexto sexual delas no longa, mas eu não consigo ver isso, em muitos momentos a tensão entre elas é tão grande que dá para cortar com uma tesoura (sem trocadilho).
Sobre o resto do elenco, eu preciso destacar o Jonathan Bailey como Fiyero, um ator que eu só conhecia por rumores de que querem ele para ser o Batman, mas que ele manda muito bem, especialmente nessa entrega corporal dele, a forma como ele dança e se movimenta em seus números, ele canta muito bem também, além de conseguir ter química com quase todo mundo, esse maluco passa bem a vibe de pegador, num nível que só falta ele dizer que quem ignora buraco é prefeitura, se deixasse o bode perto dele era capaz dele ir dentro. A Michelle Yeoh tem uma participação bem reduzida, na peça ela aparece mais, mas aqui ela está ok, canta bem, mas acho que ela merecia mais tempo para ter mais peso em tela quando ela toma atitudes mais drásticas. Eu gostei do Ethan Slater como Boq, ele faz bem esse papel de bobão iludido, que é apaixonado pela menina popular, ele convence nisso de ser meio que um perdedor que tem essa ilusão amorosa. Agora, honestamente, não entendi Jeff Goldblum como o Poderoso Mágico de Oz, ele não é o melhor dos cantores e o papel dele é cantar e ser um canastrão, até funcionaria devido o fato de que o personagem é um farsante, mas a atuação dele é tão caricata e preguiçosa que eu achei ele bem abaixo do resto.
Na parte técnica não tem do que reclamar, isso aqui vai rapar as categorias técnicas no Oscar e, por mais que eu tenha preferências quanto a outros filmes candidatos (ou que não foram indicados), mas não dá para questionar o domínio deste. O figurino é excelente, as roupas são exageradas, fantasiosas, como cada personagem tem sua própria paleta, tem suas inventividades ao brincar com o estilo designado pelo conhecimento popular das personagens e do universo, sempre relacionando a Glinda com o rosa e a Elphaba com o preto, os uniformes da escola, as roupas que remetem bem à essa fantasia de época fantasiosa, que é complementada muito bem com a direção de arte que é absurda, a construção visual dos locais, da escola, da cidade das esmeraldas, como os personagens caracterizados conversam com os locais, o quarto delas, como vai condizendo com a personalidade das protagonistas, e o cenário que eu mais gostei, que foi a biblioteca giratória, aquilo ali é fascinante. A cenografia é bem interessante, como os detalhes são muito bem feitos, exala fábulas, o óculos invertido da Elphaba, o livro que é um losango, os livros, varinhas, até detalhes nas roupas dos personagens, é bem feito. A maquiagem também é um destaque, os cabelos, mas a "esverdeação" da Cynthia Erivo é bem convincente, rejuvenesce bem a atriz para o papel. E, por fim, a montagem, já que musical é bem difícil de ser editado, esse aqui é praticamente sem erros aqui, sabe como montar os números de maneira bem dinâmica.
Dá para encerrar falando que "Wicked" é um belo blockbuster musical, que é o que mais se assume fantasioso, escrachado e realmente como um musical que lançou em 2024. Eu acho que ainda prefiro o outro musical do diretor, prefiro o clássico de 1939, mas gostei mais do filme do que do musical, achei ele bem interessante, com bastante potencial para haver um belo todo na segunda parte e passar um fenômeno dos palcos para as telonas e criar algo que seja gigantesco de forma multimídia. Cynthia Erivo é ótima como Elphaba, Ariana Grande é espetacular como Glinda, a relação das duas é muito bem trabalhada e a química delas juntas, em cena, cantando ou em cenas mais comuns, é espetacular. Boas músicas, excelentes números com uma fotografia e uma coreografia absurda, uma bela edição e um trabalho artístico admirável em figurino, direção de arte, maquiagem, penteados e cenografia. Me cativou, quero ver a parte dois, não achei lá a melhor coisa do mundo, mas é muito bacana, muito legal e acaba que o longa é elevado por sua estética, suas músicas e pela Ariana Grande. Mas, de qualquer jeito, é um espetáculo, que passa a grandiosidade da peça para o cinema com justiça.
Nota - 8,0/10