Crítica - Conclave (2024)
A ambiguidade e a hipocrisia da religião.
Voltamos para falar sobre Edward Berger, diretor que eu elogiei bastante dois anos atrás com seu grande "Nada de Novo no Front" (2022), que entrou na minha lista de favoritos daquele ano e acabou sendo um grande sucesso, tendo vencido quatro estatuetas do Oscar naquela temporada, incluindo Melhor Filme Internacional para a Alemanha. Agora, ele retorna com um filme em língua inglesa, com grande elenco, falando sobre um assunto um pouco delicado, que é a igreja católica. Mexer com isso no cinema é pedir para causar polêmica, para ter algum tipo de intriga envolvendo a igreja e tal. Aqui, baseado no romance homônimo de Robert Harris, acompanhamos uma Conclave, que é, em resumo, a votação dos cardeais no Vaticano para definir qual será o novo Papa. Utilizando um Papa fictício para fins artísticos, a obra decide explorar intrigas, hipocrisias, fofocas e divergências dentre os cardeais, é como se fosse uma espécie de "Big Brother Brasil" ou "Game of Thrones" da igreja. É um filme que foi aclamado por vários cristãos, mas que foi considerado inverossímil, e outros que simplesmente se sentiram ofendidos (como é de praxe). Apesar disso, creio que há muitas verdades aqui, não na forma que é mostrado, mas sim no que é passado.
Quando o Papa morre devido a um infarto, os cardeais da Igreja Católica são reunidos em Roma para a votação de quem deve ser o próximo Santo Pai. O Cardeal Lawrence (Ralph Fiennes) é designado como o responsável pela votação e coordenação dos candidatos e votantes, mas, nisso, começam a surgir segredos, revelações e obscuridades do passado de vários candidatos, que cabe a Lawrence decidir o que é certo e o que é o errado a se fazer nessas situações. É um longa que traz um dilema moral muito interessante do certo e errado, mas principalmente isto acontecendo dentro da Igreja, num olhar que está perante Deus, e o que vai a favor e o que vai contra do juramento, da moral, do que eles abdicaram para adentrar ao clero, sobre o que é aprovado por Deus para se colocar como um representante seu na Terra. Vemos muitas coisas sendo reveladas por aqui, em um amontoado de diferentes personalidades e opiniões em conflito, mostrando alguns que são mais liberais, outros que são mais extremistas, como essas divergências dentro de algo que todos deveriam estar em acordo, tornam-se rusgas em sua trajetória.
Lawrence é o protagonista do longa e ele serve bem mais como um avatar do que acontece ao seu redor do que um personagem em si dentro da trama. Claro que ele tem várias funções dentro da história, mas acaba que ele é quase neutro no que ele faz muitas vezes. Sendo o principal representante, ele acaba tendo de ser a voz a ser ouvida em muitos momentos, realizando um discurso, onde ele sai do papel e acaba falando de coração que ele quer um Papa que saiba pecar, se arrepender e pedir perdão a Deus, no entanto, na prática, vemos que não é assim que funciona, ele acaba prejudicando pelo menos dois candidatos por querer buscar alguém certinho demais ou que não seja tão pecador. Essa sua suposta neutralidade vem pois ele não quer ser eleito, pelo contrário, ele quer abandonar o cardinalato, Roma e recomeçar, mas muitas vezes nos questionamos se ele não está só metendo o louco e manipulando toda essa situação para algo que seja favorável ao que ele pensa como pessoa e não como um cardeal, muitas vezes tentando colocar sua crença em Deus acima, mas falhando ao colocar o que ele pessoalmente acha que pode ser melhor. Acaba que ele é bastante hipócrita em realizar muitos julgamentos, criando muitos pensamentos e realizando várias quebras da sua ética e moral para se sentir num papel de manipular o resultado.
Nisso de ser neutro, ele acaba que confirma que um dos candidatos pecou ao engravidar uma jovem no passado, outro que havia sido dispensado pelo falecido Papa, mas, quando ele descobre que um dos candidatos tem um segredo que seria bem mais absurdo a ser revelado, realmente escandaloso, sem querer dar spoilers grandes, ele mantém isso para si e termina se duvidando se ele fez a coisa certa ou não. O dilema é bem interessante, pois muitas vezes o Lawrence utiliza-se de métodos baixos para alcançar certas coisas, como até invasão de privacidade, ao bisbilhotar o apartamento do antigo Papa em busca de algum tipo de resposta e, posteriormente, espalhar tudo isso de forma expositora a todos. Ele tem várias atitudes que fazem com que você duvide da real índole dele, ele acaba causando mais discórdia do que ordem e paz em muitos momentos, transformando o que deveria ser algo justo e respeitoso em uma grande roleta russa de emoções, convertendo (com o perdão do trocadilho) o Vaticano para tornar-se Westeros, em uma batalha emocional e um conflito de egos onde quem se sobressai será aquele que consiga vender a melhor narrativa.
O Berger é um diretor muito estético, ele sabe como pegar seus artifícios técnicos e converter isso para contar a história que ele quer. Ele faz isso muito bem no seu trabalho anterior e aqui há muito disso também, vários planos bonitos que querem dizer alguma coisa. Mas, no entanto, acaba que não me impacta tanto, já que demora muito para engrenar. A primeira hora de filme é muito mais burocrática do que qualquer outra coisa, é muito papinho, muita técnica, para pouca trama, não chega a ser entediante como muitas pessoas apontam, mas é bem neutro, é algo que só existe. No entanto, a medida que a história começa a surgir, Berger cria uma narrativa intrigante onde nos cativa por esses dilemas apresentados através do personagem do Lawrence, onde vamos entender melhor o que ele quer e se questionar se aquilo é ou não o correto a se fazer. Em muitos momentos, Berger sabe dizer através do que ele mostra em tela sem precisar falar, como uma cena lindíssima onde estão os cardeais com guarda-chuva e apenas um sem, e só ao final você vai entender porque justamente aquele não está, em mais uma discussão que o longa gera.
Este é o favorito para o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado e, bom, eu não li o roteiro em si, mas eu entendo o favoritismo, no entanto, o contesto. Existe uma trama instigante, bons diálogos e boas falas para os personagens. Contudo, há vezes que existe uma exposição desnecessária ao explicar literalmente muitas das coisas vistas em cena, há um momento onde os personagens explicam o que a gente acabou de perceber na cena anterior e não agrega em nada no contexto geral de história. Também caminha numa linha tênue entre o óbvio e o bem escrito, tem momentos que algo notório é dito, mas passa pela maneira qual é escrito e entregado, e tem outros tão batidos e que são entregues de forma tão qualquer coisa que soam como se tivessem sido tirados de um comentarista de política ou sociologia do Instagram. Tem um monólogo mais para o final do longa, que é de um personagem mexicano que atua como líder do cristianismo em locais onde não é a religião predominante, e ele fala tanta coisa batida, que nós já nos cansamos de escutar, que acaba que não me impacta de nenhuma forma (e esse ator mexicano é bem fraco também).
Mas o que impacta é o elenco, que baita trabalho de casting que eles tiveram aqui, pois encontraram ótimos atores para criar esse clima de guerra fria entre padres. Existe toda uma discussão entre liberalismo, progressismo, conservadorismo e tradicionalismo, como cada líder ali tem sua filosofia e tenta mostrar isto de alguma forma, muitas vezes vamos escutando através do Lawrence (que como disse anteriormente, é o um avatar da narrativa) o que cada um ali é e sente. O Cardeal Bellini, interpretado pelo Stanley Tucci, é o mais progressista, que crê que a igreja está em uma evolução e que eleger alguém que vá contra certas coisas é um grande retrocesso no processo que eles vem construindo nos últimos papados, ele traz esse cara mais revolucionário em algumas questões. O John Lithgow como o Cardeal Tremblay, que tenta aparentar ser o mais neutro em relação aos posicionamentos de todos, mas foi um que foi dispensado pelo antigo Papa, e depois que descobrimos certas ações dele é que vem o questionamento de como esse cara faz parte da Igreja, e a cena dele se explicando na frente de todos é muito boa, o Lithgow consegue demonstrar nessa cena como ele se sentiu traído, mas também como sua ambição superou sua fé, indo contra o que ele jurou acreditar.
Tem o Cardeal Tedesco, interpretado por Sergio Castelitto, que é o maior preconceituoso e tradicionalista da história, esse cara sabe interpretar um extremista como ninguém, o tanto de raiva que ele me deu foi brincadeira. Tem uma cena que ele explode e fica nervoso devido a um acontecimento anterior e ele faz um discurso que é palhaçada, o cara só faltou convocar os cristãos para a décima cruzada, ele indo a loucura ali é muito bom. Tem o mexicano, o Cardeal Benitez, interpretado pelo Carlos Diehz, e esse eu achei bem fraco, bem qualquer coisa, entrega as falas de um jeito muito qualquer coisa, o que até condiz com a personalidade fechada e posteriormente descobrimos porque é assim, mas não foi tão cativante não. A Isabella Rossellini, que está indicada ao Oscar de Atriz Coadjuvante, vendo o filme entendemos que é uma nomeação por carreira, porque ela aparece em seis minutos de cena, abre a boca em três e tem apenas uma cena que faz com que se torne justificável um reconhecimento a esse ponto, porque pelo menos ela tem uma cena a passar na premiação. Mas, dentro da trama, ela não faz praticamente nada de relevante a não ser gritar com o canadense e ficar andando pelos corredores do Vaticano.
Mas, agora falando sobre o Ralph Fiennes, nosso protagonista e um dos candidatos ao prêmio no Oscar, ele está excelente no papel. Como já disse várias vezes ao longo do texto, ele serve mais como alguém que as coisas acontecem ao redor dele, mas ele também acaba participando dessa história várias vezes, tendo atitudes que impactam diretamente em certas escolhas e posicionamentos que todos os personagens tomarão. Ele funciona bem como esse cara mais fechado, centrado, como um cara que está já mais amargurado, que já não quer mais aquilo ali para a vida dele, mas que não vai deixar a casa bagunçada antes de sair. Através do olhar dele, ele consegue nos passar seu cansaço, sua exaustão em estar ali, em ser alguém tão importante, numa função cujo define algo importante em todo o mundo, e como ele não quer mais se importar, mas também não consegue deixar disso, é bem interessante. Ele não tem um grande momento de raiva, ele não grita, ele consegue resolver tudo que ele considera pendente de uma forma mais contida, que denota sua canseira quanto a toda aquela burocracia que ele vive. Realmente uma bela performance, merece essa aclamação
Indo agora para a parte técnica, que torna-se o grande destaque por aqui, já que sua estética torna-se quase um personagem dentro da trama, e é incontestável sua beleza, suas mensagens através de seu visual. A fotografia tem tons escuros, em uma paleta que busca planos mais esverdeados, acinzentados, onde se compõem lindos planos, onde eles dizem muita coisa através de enquadramentos, geralmente retratando os cardeais de planos contra-plongée, colocando-os inferiores perante a Deus. A mise-en-scène é um absurdo, essa composição visual, a posição dos atores em cena, como isso em contraste com o cenário conta uma história, a distribuição do elenco em vários momentos consegue dizer muito, em conjunto com a iluminação, é muito bonito, ainda mais com uma grande direção de arte, em cenários grandiosos que criam uma ambientação bem interessante. Os figurinos são ótimos, principalmente visto a grande quantidade que eles precisam criar igualmente, é admirável. E a trilha do Volker Bertelmann praticamente é um personagem dentro do longa, que fica gritando, é como se fosse uma presença que pressiona aqueles personagens dentro daquela situação, o fato de ser muito alta ajuda bem nisso também.
Encerro meu texto sobre "Conclave" dizendo que eu gostei bastante, é melhor do que parece. É um filme que eu já tinha uma expectativa prévia devido ao diretor e a trama, a qual eu achei que seria de uma forma, mas foi até melhor do que eu esperava. Ralph Fiennes é excelente como o protagonista e todo o elenco é extremamente funcional em seus papéis, fazendo com que o diretor consiga criar dilemas e discussões envolvendo visões políticas e sociais dentro do contexto religioso, mas principalmente como nem quem deveria ser um representante de Deus na Terra consegue ser perfeito, trazendo as imperfeições, os erros, o egoísmo e a hipocrisia em seus personagens, criando uma narrativa de suspense bem instigante. É um filme muito técnico, muito estético, e toda essa técnica e estética é muito bonita, tem cenas lindíssimas e muitas que poderiam ser usadas como wallpaper, mas, como um todo, acaba que falta um pouco de história para me impactar, senti falta de mais aproximação com os personagens e de algo que fosse menos óbvio e batido em várias falas e diálogos. Mas, no geral, vale a pena ver, passa longe de ser a burocracia chata que tentam pintar que é.
Nota - 7,5/10