Crítica - Demolidor: Renascido (1ª Temporada, 2025)
Um renascimento quase de Frankenstein, mas que ainda funciona.
A Marvel, muito tempo atrás, decidiu vender os direitos de seus personagens para cinema e televisão, para pagar dividas e sair da falência nos anos 90. Um dos afetados foi o Demolidor, que dispensa apresentações, o herói cego, católico e advogado que tem a super audição e deixa bandido com traumatismo craniano, todos sabemos quem ele é e que ele é um dos melhores da editora, e ele acabou indo para a Fox, onde teve um filme muito ruim protagonizado pelo Ben Affleck em 2003. Após conseguirem de volta uma parcela dos direitos, agora já com seu universo cinematográfico em andamento, a Marvel fez uma parceria com a Netflix para a realização de séries, mostrando um lado mais urbano e periférico deste universo, e um dos personagens utilizados, sendo o grande carro-chefe disso tudo, foi o próprio Demônio de Hell's Kitchen. Acontece que a Netflix não fez só uma série do herói, ela realizou um dos maiores e melhores programas televisivos de heróis. No entanto, foi cancelada pela Netflix na terceira temporada devido a conflitos contratuais com a Marvel/Disney e ficou por um bom tempo no limbo. Apesar de tudo, foi canonizada no MCU oficialmente, os personagens começaram a aparecer em outras obras, assim, fazendo com que resgatassem o seriado, em forma de revival, usando o nome "Born Again". Contudo, deu vários problemas, sofreu com péssimos direcionamentos criativos, uma falta de showrunner, que fez com que Kevin Feige mudasse seu rumo para uma continuação direta dos eventos da série da Netflix, e cá estamos, numa série que divide opiniões, mas que entrega boas coisas.
Quando uma tragédia abala a vida pessoal de Matt Murdock, o Demolidor (Charlie Cox), ele acaba por deixar de lado o seu manto de vigilante e focar em sua carreira como advogado. Com sua fé abalada, suas relações mudadas e um novo escritório, Matt começa a se preocupar se ele não deveria voltar a usar seu velho uniforme, já que seu grande rival, Wilson Fisk, o Rei do Crime (Vincent D'Onofrio), é eleito como prefeito de Nova York, além de um serial killer chamado Muse (Hunter Doohan), um grafiteiro que faz suas obras usando o sangue de suas vítimas como tinta. Vocês viram que por aqui eu não fiz uma sinopse da história como eu costumo fazer, maior e mais detalhada, mas é por um motivo muito simples: essa série não tem uma história única. Ok, a abordagem episódica é como as séries foram criadas. Contudo, uma coisa é ser episódico, outra coisa é não saber para onde a sua trama quer ir, já que o rumo do programa ao longo dos episódios muda, no mínimo, umas três vezes. Dos episódios 1-3 tem um objetivo, do 4-7 tem outro e os dois últimos voltam às raízes da série da Netflix, justamente por serem os únicos episódios da temporada que não foram planejados inicialmente.
Quando a série foi apresentada para Kevin Feige, o planejamento inicial era ser uma grande série da época de ouro da televisão americana, com um número atualmente assustador de 18 episódios. No entanto, quando lhe mostraram os primeiros quatro episódios, Feige disse que estava horrível e inassistível, mudando não só toda a equipe criativa da série, mas também toda a forma de produções da Marvel Studios, reintegrando novamente a Marvel Television como uma subdivisão da parte do cinema. No entanto, nem tudo foi descartado, apesar de terem mudado os showrunners, coisas que já haviam sido colocadas no início se mantiveram, com apenas os últimos dois episódios sendo gravados do zero. E isso torna-se perceptível na medida que os episódios vão passando, você vai percebendo que existe muita coisa retalhada por ali, é uma grande concha de retalhos, onde eles vão amarrando coisas antigas com coisas novas e, apesar de ter uma excelente continuidade, onde visualmente você não percebe as cenas originais e regravadas, você acaba que percebe pela rushada que dão na história, que muita coisa é apressada e existem certos personagens que tem seu desenvolvimento interrompidos no meio, cujo parecem que tem um início, uma conclusão, mas não um meio.
Para mim, o principal problema dessa série, além dos retalhos e da trama ser corrida muitas vezes, é que existem muitos personagens aqui, mas muitos mesmo, mais do que deveriam. Enquanto a série anterior era focada num ciclo fechado entre Matt, Karen (Deborah Ann Woll), Foggy (Elden Henson), Fisk e mais dois ou três personagens que iam mudando ao longo das temporadas, aqui temos um bando de personagens que não servem para quase nada. Começando pelo suposto grande vilão, o Muse, mas já já eu chego nele, porém, adianto que ele foi a minha grande decepção com a série. Mas temos a Kirsten (Nikki M. James), a nova parceira do Matt, que você não entende nada da amizade deles, você não sabe porque eles são sócios, a única coisa que liga os dois é a amizade com o Foggy e nada mais, parece que usam essa menina de desculpa para o Murdock ainda ter um escritório. Aí depois vem o tal Daniel Blake (Michael Gandolfini), que é o puxa-saco do prefeito, cujo é uma figura recorrente na sociedade atual, e ele se resume a isso, um moleque que está quase engasgando com as bolas do Fisk, cujo esse é o seu único traço de personalidade. Depois, tem o Cherry (Clark Johnson), um policial que ajuda o Matt, que também é um grandioso dane-se, já que tudo que esse cara falou foram reafirmações e exposições.
Ainda tem mais, tive que dividir o parágrafo para continuar destilando meu ódio contra esse elenco secundário. Tem a tal da BB Urich (Genneya Walton), a sobrinha do Ben, um dos personagens principais da primeira temporada que foi morto pelo Fisk. Ela traz um conceito interessante sobre ser uma jornalista que explora a visão da população quanto aos vigilantes, o mandato do Fisk, são sequências realmente instigantes, pois cria um novo panorama quanto aquele mundo cheio de heróis e vigilantes. No entanto, precisava mesmo relacionar essa personagem com o Ben? Usar o velho recurso do descendente jovem dando sequência a um certo legado? Por que, pelo menos nessa primeira temporada, ela ser parente dele não teve nenhum impacto, nenhum desenvolvimento dramático com tudo que poderia ser desenvolvido, talvez explorem isso na segunda temporada pois ela já foi confirmada para continuar no elenco, então vou dar uma colher de chá, mas por enquanto não foi uma correlação que funcionou. Alguns personagens recorrentes eu entendo não serem desenvolvidos, por exemplo, o Fisk tem um segurança e uma secretária que andam do lado dele, esses dois aparecem em quase todos os episódios, mas eles não serem desenvolvidos não faz falta, já que eles estão ali para complementar o vilão. No entanto, todos que falei tem um desenvolvimento ensaiado, ou então precisavam de um, já que colocar essas pessoas na volta do Matt não funciona do mesmo jeito que o Fisk.
Aí chegamos num ponto sensível, que é o par romântico do nosso Matt aqui, que é a Dra. Heather Glenn (Margarita Levieva), e se eu disse que muitas coisas tinham início, fim e não tinham meio, aqui tem meio e não tem início e fim. O começo do relacionamento dela com o Matt é extremamente corrido, eles tem um encontro e no episódio seguinte é como se já estivessem juntos há tempos. No começo é como se eles não tivessem nenhuma conexão, não tinha um tempo para desenvolver essa relação, depois do meio para frente tem desenvolvimento até demais, dão uma importância exagerada a esta personagem, com ela tendo atitudes que foram forçadas serem por parte dela. Ainda termina com ela assumindo um certo cargo e fica subentendido que ela e o Matt terminaram, mas isso não é sequer explícito em cena, a gente tem que adivinhar. Essa atriz que escalaram é muito bonita, mas uma prova que esse arrombado não é cego, mas ela não cria uma relação bacana com o Charlie Cox, é mal desenvolvido e fica com uma sensação de incompleto e inconsequente, não tem química, tem tesão entre eles em apenas um momento, e termina que é outra coisa que deixam para depois. E o Muse, hein, um vilão que foi construído a temporada inteira, um conceito belíssimo de ser explorado, aí os caras me vem e desperdiçam ele depois de dois episódios sendo o vilão principal. O problema não é nem o descarte, é a forma ridícula no qual foi realizado, já que é algo de levar as mãos à cabeça de tão péssima que foi. O ator dele tem até uma boa performance quando foi necessitado, mas é inegável que foi uma decepção e que merecia mais.
Sobre os personagens que retornam da série antiga, voltam alguns, começando com o Foggy, cujo o Elden Henson ganhou o dinheiro mais fácil da vida dele, se ele teve mais que dois dias de trabalho no set, eu sou o Batman, porque a participação dele na série é pequena, mas é o que gera a grande narrativa por trás do nosso protagonista. Contudo, à medida que os episódios vão passando, é inegável que ele faz falta. E a Karen, bom, ela, na minha visão, era o coração da obra da Netflix, ela que era uma força que batia e dava vida a toda aquela história durante as três temporadas. Aqui, ela aparece pouquíssimo, tem ótimas cenas quando está presente, especialmente no quesito dramático, pois eles entendem que essa coitada nasceu para sofrer e a Deborah Ann Woll entrega bastante dramaticamente, é satisfatório ver ela voltando, e ainda bem que teremos um papel muito maior dela na segunda temporada. Outro dos melhores personagens das antigas era o Dex (Wilson Bethel), que foi um ótimo antagonista na terceira temporada, tendo um desenvolvimento espetacular e toda uma questão da psiquê dele, a mente conturbada que ele tem desde criança, tudo mais. Ele também é pouco utilizado, poucos episódios, mas movimenta pontos-chave da estória, entregando bem como Bullseye, e ver ele trajado na primeira cena da série foi muito bom, foi um sentimento de "finalmente", e ele voltará na segunda temporada para nossa alegria. Por fim, o GOAT, Frank Castle, o Justiceiro (Jon Bernthal), cujo o Bernthal tem o poder de toda vez que interpreta o personagem, mas, apesar de bad-ass, algumas atitudes dele vão contra o que havia sido apresentado anteriormente nesse universo, criando uma incoerência notável. O que ele faz no último episódio, ele jamais teria feito baseado em tudo que ele tinha feito antes.
Agora, falando do próprio Matt, que carrega a série toda aqui, faz dela seu próprio show. O Charlie Cox nasceu para esse papel, é o trabalho da vida dele esse personagem como um todo. Eu gosto de como eles conseguem trabalhar bem a parte dele como advogado, tem bastante cenas dele em tribunal, dele na agência, fazendo seu trabalho, ver ele em ação é muito massa, especialmente ele tendo que se virar para vencer alguns casos quase perdidos, como no terceiro episódio que foi milagroso que ele fez lá, e curto como esse julgamento dele de justiça, como alguém formado em direito, impacta no seu julgamento como vigilante. A parte da religião deixa a desejar, já que é um personagem cujo a essência dele é dividida entre ser cego, advogado e católico, obviamente a cegueira dele é ponto-chave, não precisa nem falar tanto disso, e a parte do direito eu falei, mas o catolicismo é basicamente esquecido. Ok, estamos falando da Disney, que é uma empresa satanista, mas são incoerentes com que é apresentado sobre o personagem desde sempre. Ele ter a fé abalada por conta do evento que acontece no início da temporada? Ok, dá para entender, é bem trabalhado ali no início. Porém, depois colocam alguns momentos dele rezando e acham que é suficiente, mas não, é parte dele ir à igreja, se confessar, é essencial, e aqui tem um total de ZERO cenas disso. Mas, sobre a parte de vigilante, é bem trabalhado. Ele demora SEIS episódios para voltar a vestir o manto, do início do primeiro até o final do sexto, vemos só Matt Murdock, o que é interessante para vermos como ele age perante situações sem seu manto e como ele vai percebendo de pouco em pouco que precisa voltar e isso é bem feito, uma das poucas coisas que não é corrida na série, mas também é esquecida.
Aqui, o Matt divide muito o protagonismo com o Fisk, e ok, o Vincent D'Onofrio realmente merece mais destaque mesmo no papel, já que assim como Cox, parece que ele foi predestinado a ser o Rei do Crime desde que ele nasceu. Aqui, é explorada uma faceta bem interessante do nosso careca gordo favorito, já que as cagadas que foram feitas com ele no MCU realmente impactaram e precisaram ser arrumadas, mas é facilmente resolvido. Colocar ele como prefeito de Nova York, adaptar um arco dos quadrinhos do "Prefeito Fisk" é bem interessante. Eu gosto especialmente de mostrar essa vida dupla dele, como figura pública e como criminoso, já que mesmo assumindo um cargo importante, ele não deixou de ser quem ele sempre foi. O arco dele com a Vanessa (Ayelet Zurer) é até bem explorado, transformaram ele num corno, o que muitas pessoas podem ver como desrespeito, mas como ele é o vilão, eu acho que é merecido. Mas eu gosto mais da forma como trabalham mais as situações em torno dele, de como ele age mais próximo do Rei do Crime do que do prefeito na maior parte do tempo. Ele continua sendo aquele cara ameaçador, que põe um medo em todo mundo no geral, a presença dele é muito sentida em cena. Creio que ele e o Matt são os únicos personagens coerentes da série, independente das qualidades e defeitos, eles dois acabam sendo bem trabalhados.
É nessa dos dois serem grandes protagonistas, que para mim, vem uma das coisas mais esquisitas dessa série, que é a necessidade que parece que esses caras tinham de tentar estabelecer Matt e Fisk como dois lados da mesma moeda, ou bom, pelo menos é o que parecia. Por oito episódios eu pensei que era algo que a série estava forçando, pois todo o material promocional envolve imagens meio a meio dos dois personagens, e aí ficar cortando de uma cena de um para a do outro durante a série inteira, acaba que cria essa impressão. Particularmente, eu discordo disso deles serem dois lados da mesma moeda, no entanto, poderia ser bem trabalhado e criado algo instigante se tivesse sido bem feito. Contudo, chega no nono episódio, e aí é perceptível que não era proposital, são os caras que não sabiam editar uma série mesmo, pois tem uma cena nesse mesmo estilo que o Matt não está presente, acaba sendo mostrando os lados do Fisk e do Frank. Essas cenas tem uma única relação entre elas, mas não existe necessidade de ficar dividindo entre uma e outra. Uma coisa que falta nessa série é a sutileza e a calma que tinha anteriormente, muita coisa soa rushada, tem muita pressa envolvida, muita coisa que corrobora para um sentimento mais conflituoso do que a curtição que é ver uma obra do personagem. O principal problema da série é a edição, que é extremamente apressada e gera momentos de confusão, cenas onde tem muitos cortes e você consegue sentir a esteira que é verdadeiramente isso tudo, tem uma cena bisonha entre Matt e Frank com tantos cortes que chegou a me dar um incômodo. Isso atrapalha até em algumas cenas de ação, onde a maioria é boa, mas tem algumas que tem uma edição mais pesada que deveria. Eu acho a brutalidade da série até satisfatória, uma violência maior que a da Netflix, mas que torna-se um artifício de choque fácil em alguns momentos. Um dos poucos que funciona é um do Fisk no finale.
Falando episódio por episódio, eu vou dar um breve resumo. O primeiro é um início insano, uma das melhores coisas que a Marvel poderia entregar no Disney+. O segundo já é uma coisa mais morna, mas que traz uma discussão interessante sobre o Matt. O terceiro é um baita episódio mostrando o Matt como advogado, foi realmente bem legal ver ele tendo que agir perante toda aquela situação e as consequências que isso gerou ao fim. No quarto, tem uma queda de novo, um episódio burocrático, salvo pelo diálogo entre Matt e Frank. O quinto, particularmente, eu não entendi, fizeram um episódio de urgência, que ok, dá para passar. Porém, você pode juntar o Demolidor com qualquer personagem do MCU e escolhem o pai da Kamala Khan? É sério? Sexto episódio é de fato o renascimento, outro episódio que explora muito bem a psiquê do Matt e como ele se entrelaça com o manto. O sétimo foi um dos episódios mais bem feitos, porém, as decisões de roteiro nele acabam sendo seu grande inimigo, já que tem coisas ali tão ridículas que estragaram todo o desenvolvimento que a série vinha tendo até então. O oitavo é pura loucura, o episódio que mais se aproxima da vibe que esperávamos, o Dex como vilão, a cena do dente, é sensacional. O nono, tem altos e baixos, por mais que eu goste muito do Fisk nesse episódio, ele é bastante conveniente e o Justiceiro torna-se um burro hipócrita em alguns momentos, mas é um bom ep no geral, criando um terreno interessante para uma promissora segunda temporada. O resumo: uma temporada inteira de fillers, que viram uma trama, de fato, nos dois últimos episódios, ou seja, foi pelo mesmo caminho da quarta temporada de "The Boys".
No fim, podemos dizer com certeza que não chega perto da série da Netflix, e olha que eu não sou fã da segunda temporada (não desgosto, mas depois do quinto episódio e aquele arco bisonho da Elektra, a série me perde), mas essa é inferior, os personagens secundários são piores que a Elektra, que eu detesto, mas eu detesto todos esses figurantes de luxo mais. Acaba que "Demolidor: Renascido" não é ruim, tem uma boa história sendo contada, mas a forma que é contada é apressada, cortada e claramente tinha bem mais coisa lá a ser desenvolvida, porém, uma péssima montagem gera momentos bisonhos e alguns episódios provam-se inúteis na medida que os episódios vão passando. Bons momentos com Matt, com Fisk, tanto Cox quanto D'Onofrio provam que nasceram para esses papéis, que eles são a versão definitiva de seus respectivos personagens no audiovisual, existem bons episódios, mas, algumas vezes é clara a sensação de que não entenderam o Demolidor o suficiente para criar essa série. No mais, é uma temporada recheada de fillers, onde uma história só é de fato contada quando chega aos últimos dois episódios, e ainda sim deixam para uma próxima temporada. Mas promete, de certa forma, tem potencial, espero que melhorem.
Nota - 7,0/10
Nota por episódio:
1x1: "Heaven's Half Hour" - 8,5/10
1x2: "Optics" - 7,0/10
1x3: "The Hollow of His Hand" - 7,5/10
1x4: "Sic Semper Systema" - 6,5/10
1x5: "With Interest" - 5,0/10
1x6: "Excessive Force" - 8,5/10
1x7: "Art for Art's Sake" - 7,5/10
1x8: "Isle of Joy" - 9,0/10
1x9: "Straight to Hell" - 8,0/10