Crítica - Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (Doctor Strange in The Multiverse of Madness, 2022)
Filme de terror da Marvel?
🚨 Texto sem spoilers 🚨
Depois de quinze anos (minha nossa, como eu estou velho), Sam Raimi volta a dirigir um filme da Marvel. O que mudou na Marvel de quinze anos para cá? Bom, tudo começa com um gênio, bilionário, playboy e filantropo, passando para um soldado da Segunda Guerra, um deus nórdico, uma equipe, um plot twist político, outra equipe mas no espaço, um andróide com Complexo de Édipo, uma treta entre os heróis, um mago, um adolescente que solta teia, um rei africano, uma guerra intergaláctica, um estalo de dedos, a reversão do estalo de dedos, portais se abrindo, Capitão América pegando no martelo do Thor, maior bilheteria de todos os tempos e a reunião de três gerações de um mesmo personagem. De 2007 para cá, tudo mudou, a Marvel é uma potência, uma franquia que peita Star Wars, Harry Potter e Senhor dos Anéis em popularidade, um universo compartilhado incrível e Raimi, ao invés de trabalhar com apenas com a sua história em um universo fechado, agora ele precisa trabalhar com algo que é conectado com filmes anteriores e se conectará com filmes posteriores e a principal dúvida era: será que Raimi conseguiria pôr sua marca em um universo com uma estrutura narrativa tão definida? Porque a maioria dos filmes da Marvel parecem que foram dirigidos pelo mesmo cara e um diretor com uma assinatura tão marcante conseguiria fazer um filme neste universo? E eu respondo: sim, felizmente ele consegue!
Sam Raimi conseguiu deixar sua assinatura de forma bem nítida no filme, primeiro ao deixar o filme com suas características em tudo, desde seu estilo de humor utilizando-se de situações para criar essa comicidade, não tem nenhuma piada extremamente forçada, são muito naturais e agradáveis (apesar de ter umas três bem sem graça). Na montagem, Raimi utiliza de efeitos de transição entre as cenas marcantes dele, parecendo novela da Globo, isso é um clássico na filmografia dele, os fade ins, a mescla de cenas, os cortes secos, é tudo marca registrada dele. Mas o principal que ele coloca sua marca é na atmosfera do filme, porque é um filme onde um dos gêneros pode ser classificado terror, pois o filme usa muito elementos de filmes de horror na narrativa, tem mais ou menos uns quatro jumpscares, tem um ar de aflição o tempo todo, o trabalho sonoro do filme cria meio que esse clima, tem momentos de silêncio total que criam uma certa angústia, ainda por cima o filme é brutal, tem gore desde o início do filme e são gores bem grotescos, bastante sanguinolento, incrivelmente violento e contém enraizada a identidade de seu realizador. É satisfatório ver a Marvel saindo dessa zona de conforto, dando a voz necessária a um diretor a como fazer um filme dele e não mais um filminho robotizado de estúdio.
Sam Raimi traz consigo a sua forma de contar histórias também, ele pega as relações pessoais do Doutor Estranho (Benedict Cumberbatch) e transforma em algo a mais, algo parecido com o que ele faz em sua trilogia do Homem-Aranha, pois a relação do Doutor Estranho com o Wong (Benedict Wong) tem a mesma vibe da amizade do Peter e do Harry, com um zoando o outro, pedindo respeito, além da seriedade e respeito mútuo que mantém pelo outro apesar das brincadeiras. Enquanto a relação do Estranho com a Christine Palmer (Rachel McAdams) é baseada no romance de Peter com Mary Jane, principalmente em relação com ele vendo ela se casando e percebendo que talvez nunca desse certo entre eles, parecido com o drama vivido por Peter em "Homem-Aranha 2". Inclusive eu gostei da utilização dos personagens nesse filme, acho que do elenco principal, todos eles tem o momento certo para brilhar, é uma divisão de tela justa, só o Wong que parecia que tinha mais cenas, mas certamente foram cortadas. Porém, dos personagens eu falo mais depois.
Meu problema com o filme é que ele é muito rápido, o filme segue um ritmo bastante desagradável, porque ele começa já com luta, depois tem casamento e depois de três minutos tem mais luta, depois de dez minutos já tem plot twist e depois de uns quatro minutos já tem ações radicais de personagem sucedida por tal reviravolta, depois já tem viagem pelo multiverso, participação especial, morte, mais plot twist, viagem pelo portal e mais participação especial, isso tudo que eu acabei de falar em aproximadamente uma hora e cinco minutos de filme. Nitidamente o filme está incompleto, está cortado, porque tem coisas que acontecem muito rápido e atrapalha a experiência (provavelmente devem anunciar uma versão estendida em breve). Se o filme tivesse mais trinta minutos com mais coisa bem desenvolvida, a nota lá no final teria aumentado pelo menos em 1,0. "Mas por quê o filme seria cortado?" Você me pergunta e eu respondo: é muito simples -menos tempo de filme é igual a mais sessões diárias, mais sessões diárias significa mais ingressos, mais ingressos dá mais dinheiro para a Disney enfiar naquele lugar que o sol não toca. Decisão totalmente voltada para fins lucrativos egocêntricos ao invés de fins artísticos... É a Disney, nada fora do esperado.
Sobre o elenco do filme eu devo dizer que finalmente Benedict Cumberbatch como Doutor Estranho está consolidado no MCU, porque é um personagem que eu já gostava, eu sempre gostei muito do Benedict no papel dele, mas nunca tinha conseguido ver aquele personagem como um grande protagonista, para mim ele sempre estava lá sendo um coadjuvante overpower que faz as magias dele e era legal por isso, mas em questão de história, de desenvolvimento dele, sempre achei meio fraco, isto no entanto era apagado pelas performances do Cumberbatch. Agora, nesse filme, eu sinto que ele consegue, porque finalmente mostra os problemas dele de uma forma mais séria e o Benedict no olhar dele mostra os sentimentos dele de uma forma que tu consegue sentir, no início do filme na cena do casamento ele tá bebendo e no olhar dele você consegue sentir o arrependimento dele em não ser o noivo, dá para sentir ele se culpando mentalmente. Acho que finalmente ele se impõe como o Doutor Estranho definitivo e o que vem pela frente promete e muito.
Quem me surpreendeu no filme foi a Xochitl Gomez como America Chavez, porque eu tenho uma mania horrível de julgar a maioria dos atores jovens em filmes blockbusters antes de assistir pois a maior parte deles tem cara de serem péssimos e ela tinha cara de ser péssima, mas ela é boa, ela tem o carisma dela e ela funciona bem nesse papel tanto de personagem didática ao explicar o multiverso, quanto no papel de aprendiz, forçando Strange a ter um papel paterno contra a vontade dele, tem cenas que ela se destaca na performance facial (especialmente uma que ela relembra seu passado) e na ação, a personagem é muito boa, mostra os poderes dela de forma fácil de entender e conseguimos gostar dela. E outra que me surpreendeu foi a Rachel McAdams, eu não esperava tanta participação assim dela, mas a que ela tem é muito boa, deve ser a última vez que a vemos no MCU, ela faz muito bem um contraponto com o Stephen do universo principal, mas se eu falar mais do que isso é spoiler. Ela faz parte da jornada do Strange e depois no final encerra-se esse arco entre eles em uma cena com atuação excepcional de ambos.
Mas o grande destaque do filme é a Elizabeth Olsen, que atriz espetacular! Eu já havia falado que ela tinha se mostrado uma atriz sensacional na Marvel lá em "WandaVision" - inclusive, depois ela foi indicada ao Emmy de Melhor Atriz em Minissérie de forma justa - e agora ela se prova mesmo como uma atriz espetacular. Primeiro que ela interpreta várias Wandas, ela precisa fazer as versões alternativas e praticamente a maioria são as versões ideais que ela sonhava ser na série e ela faz esse contraponto muito bem. Ela é a vilã do filme, finalmente temos a Feiticeira Escarlate dos quadrinhos, a Wanda maluca, pressionada e a motivação dela no filme é simples: maternidade, a Wanda faz um monte de loucuras para ir atrás de seus filhos e ela é uma mãe, mas até ela perceber que os filhos não existem, é uma jornada dela muito interessante e ela se impõe como uma vilã, ela fala como uma vilã, ela age de forma antagônica o filme inteiro e ela põe medo, é uma excelente vilã que nas mãos do Sam Raimi caiu como uma luva. Ela não aparece o mesmo que o Benedict, mas a presença dela é tão grande quanto a dele, é um papel quase de co-protagonista.
Obs: o impacto do filme não é o mesmo se você não tiver visto "WandaVision" e eu nem gostei dessa série, mas o impacto é pesado, eu derramei uma lágrima (uma mesmo) numa cena que envolve ela com os filhos.
Apesar dos erros, eu saí satisfeito de "Doutor Estranho no Multiverso da Loucura", é um filme que foi vendido como puro fanservice e saiu como um filme do Sam Raimi, a vibe do Sam Raimi, o storytelling do Sam Raimi, o que o diretor faz aqui é impressionante para um filme da Marvel, ele se inspira nele mesmo e faz um filme de herói que ao mesmo tempo é um filme de terror, tem elementos muitos interessantes do gênero de horror, tem elementos mais humanos que o Sam Raimi usa nos seus filmes do Homem-Aranha e suas clássicas transições, sua clássica cinematografia, seu clássico jeito de montar as obras. É um filme errôneo, não é perfeito, não dá vontade de assistir milhares de vezes igual outros da Marvel, mas é um filme incrível que quebra a fórmula Marvel e mostra que sim, podem ter filmes com estilos diferentes dentro do MCU.
Nota - 7,5/10