Crítica - Vidas Passadas (Past Lives, 2023)
Está cada vez mais difícil desgostar da A24.
Destaque no início do ano no Festival de Sundance de 2023, a nova produção independente do aclamado, porém também detestado por muitos (incluindo eu), estúdio A24, causou uma comoção gigantesca. É um daqueles fenômenos independentes que tem praticamente todo ano, um filme que não tem nenhum nome de peso, mas que impacta pela trama, pela mensagem, pela forma qual essas duas são transpassadas para o espectador e outros fatores. Ano passado tivemos "Aftersun", bom filme também de uma diretora estreante e também com dois protagonistas desconhecidos. No retrasado foi o norueguês "A Pior Pessoa do Mundo", do aclamado diretor Joachim Trier, no entanto aclamado em uma bolha bastante específica. Esse é o lado bom de termos estúdios como a A24, festivais como Sundance e até sites como o Letterboxd, pois eles dão vozes, dão atenção e encorajam pessoas e histórias que raramente teriam espaços em meio a essa guerra de estúdios com estes travando batalhas com seus grandes blockbusters (e a maioria deles estão indo para o brejo atualmente). Não à toa, foram produtoras como a A24 as únicas que continuaram produzindo mesmo com a greve de roteiristas e atores, isso sendo aprovado pelos sindicatos.
Aqui acompanhamos a jornada de Nora Moon (Greta Lee) e Jung Hae Sung (Teo Yoo), que quando crianças eram melhores amigos apaixonados um pelo outro na Coreia do Sul, no entanto, a família da garota decide se mudar para Toronto, fazendo com que ela deixe sua paixonite para trás. Doze anos depois, eles se reencontram pela internet e reacendem a chama através de chamadas via Skype e conversas via Facebook, mas Nora termina com Hae Sung por querer continuar focada em seus objetivos no ocidente. Depois de mais doze anos, Nora está casada com o escritor Arthur (John Magaro) e mora em Nova York. Hae Sung viajará para a cidade que nunca dorme e lá se reencontra com sua velha amiga, nisso fazendo tanto ela, quanto ele e Arthur se questionarem sobre as decisões que tomaram na vida, especialmente as que envolvem amor. Dirigido pela novata Celine Song, o longa surpreende por uma maturidade e uma sensibilidade de cair o queixo para uma estreante, é um daqueles filmes constituídos praticamente 95% de diálogos e tem alguns deles que são pedradas, transpassando a reflexão dos personagens diretamente ao espectador, você entende aquelas pessoas, você sente a dor, é tudo muito bem arquitetado.
Mas, se você não viu o longa e está lendo, você deve estar se perguntando: o que que tem a ver com vidas passadas? Reencarnação? Bem, mais ou menos. Não há nada de sobrenatural ou religioso envolvido, é um conceito filosófico coreano lá chamado de "in-yeon" (인연), que, resumidamente, diz que duas pessoas que, na teoria, foram feitas uma para a outra, já se encontraram anteriormente em outras vidas, mesmo que brevemente. Esse conceito não é a única interpretação que dá de ter assistindo o filme, dá para interpretar que cada vez que os caminhos dos protagonistas se cruzaram foi uma vida diferente, pois é assim que ela funciona, ninguém nunca estará na mesma fase para sempre, você vive várias vidas dentro de uma. Por exemplo: quando eles se vêem pela primeira vez, eram apenas crianças indo para a mesma escola. Depois, quando eles conversam pela internet, o nome dela nem é mais o mesmo, ele já tinha cumprido serviço militar. Quando eles se encontram novamente, ela já está casada com um americano, ele está noivo de uma chinesa; ela é dramaturga, ele ainda está em indeciso. Acho que o título consegue acobertar bem o que quer dizer, tanto filosófica quanto literalmente, você entende a mensagem estabelecida ali e até te faz refletir sobre esse conceito, que é bastante interessante.
A diretora dá um show na criação de sua história e na coordenação dos atores, o que acaba florescendo mais ainda a curiosidade para o futuro de sua filmografia, pois ela já ter feito algo de um nível emocional gigantesco e um nível tecnicamente impressionante em seu trabalho debutante é para ligar um sinalzinho na cabeça. Os diálogos são um murro no meio da cara, tem cada um que vem de forma inesperada e você leva um socão, pois eles tocam em feridas que você nem sabia que tinha. Você crê naquelas interações, as conversas entre Nora e Hae Sung, entre ela e o marido e até entre os dois rapazes, é tudo muito verdadeiro, você facilmente consegue ver pessoas dialogando daquela forma, até mesmo a barreira linguística é excepcionalmente bem feita. A própria forma como o conceito que dá título ao longa que foi explicado no parágrafo anterior é encaixado com maestria ali no meio, mostrando como o pensamento da protagonista sobre aquilo é implícito ao longo de todo o filme e como ele vai se moldando à medida que as coisas vão ocorrendo, até chegar na pedrada, que é quando Hae Sung diz: "se isso estiver certo, significa que na próxima vida nós seremos mais?". Incrível.
Nada disso seria bom sem um elenco extremamente competente, onde cada um deles aparenta ter nascido para o papel, e aqui traz o espírito clássico da atuação, que é ação e reação, pois se constitui apenas disso, não há gritaria exagerada, não há romantismo, melosidade ou exageros, é tudo feito com cautela, é suave, é belíssimo. Greta Lee como Nora é algo extraordinário, é de uma calma invejável como ela consegue fazer a mesma personagem em dois momentos totalmente diferentes, como ela traz esses sentimentos conflitantes mesmo sem sequer dizer alguma coisa, é sublime e até chocante a transição dela do coreano para o inglês e vice versa, e ela traz naturalidade, humanidade àquela história, com certeza aparecerá nas listas da temporada de premiações. Teo Yoo é incrível, ele traz essa esperança ao mesmo tempo uma indecisão, você sente o peso que aquele cara sente dentro da cabeça dele, a dor que ele tem em saber que ele talvez perdeu sua alma gêmea, sem contar que eu pesquisei e ele é fluente em inglês (o ator é poliglota e fala até alemão), mas em cena ele finge o desconhecimento do idioma de maneira tão boa que vocês notaram, eu tive que pesquisar. John Magaro faz uma daquelas atuações silenciosas, mas que você também compreende a dor dele por ver a esposa se encontrando com o que pode ser a alma gêmea dela e ele se sentindo um empecilho no destino daquelas duas pessoas, é tão quieto, mas tão funcional e significativo.
Não há muita coisa a dizer sobre "Vidas Passadas", é um filme curto, calmo e direto ao ponto, mas que gera discussões interessantíssimas sobre decisões, amor e o destino. Vocês sabem que filmes assim me cativam, como "Antes do Amanhecer" (1995) e "Amor à Flor da Pele" (2000), cujo eu já elogiei ambos mil vezes por aqui, então não tinha como, é mais um daqueles filmes que te faz se questionar sobre suas próprias decisões ou acontecimentos que você não havia como prever e como as vezes pode ter te levado para um caminho melhor ou pior, mais ou menos condizente com o destino que você deseja ou que você terá. Filme sensível, muito bem dirigido, muito bem escrito, excepcionalmente bem atuado, com uma mensagem verdadeiramente impactante e com reflexões verdadeiras que cumprem a proposta. É belíssimo.
Nota - 8,5/10