Crítica - Assassinos da Lua das Flores (Killers of the Flower Moon, 2023)
O novo épico de Martin Scorsese, é um privilégio ser cinéfilo nessa época.
Aos 80 anos a esmagadora maioria das pessoas já está aposentada, relaxando, curtindo um merecido descanso antes de descansar eternamente, mas quando você trabalha com o cinema, não é esse o caso. Martin Scorsese é apenas um dos exemplos de tantos realizadores que chegam a uma idade tão avançada e continuam trabalhando na indústria e não por dinheiro, fama ou reputação, mas por amor e disposição à sétima arte. Há algum tempo atrás, Scorsese declarou: "Estou velho, tenho várias histórias para contar, mas não tempo suficiente para isso", complementando com a declaração dada por Akira Kurosawa quando recebeu um Oscar Honorário, dizendo que ele pensava a mesma coisa e que quando declarou, o Scorsese de 47 anos não havia entendido, mas o de 80 agora percebe isso. Tem gente que desmerece o diretor, diz que ele não é tudo isso, mas cara, que besteira, ao invés de aproveitar um gênio da sétima arte, um diretor que realmente ama cinema entregando projetos apaixonados após mais de cinquenta anos de carreira, fica falando bobagem. É um FATO que o cara mudou Hollywood quando chegou nos anos 70 (claro que junto com seus amigos da Nova Hollywood, que tem tanto mérito quanto) e que entregou alguns dos melhores filmes da história e sempre inovando, buscando projetos variados, já nos entregou dramas, musicais, filmes esportivos, comédias, suspenses, longas religiosos, de época, romance, terror, guerra, ação, até infantil, e claro, gângsters, sendo o GOAT do subgênero. Aqui ele entrega um neowestern, um suspense policial que nos instiga por mais de 200 minutos e faça com que apreciemos mais uma grande obra de um mestre.
Na década de 1920, um povo nativo-americano chamado Osage migra para o Oklahoma para evitar a perseguição do homem branco, mas, por uma conveniência inacreditável, o povoado se instala em uma região com uma concentração absurdamente gigante de petróleo, até então desconhecida, fazendo com que eles fiquem imensamente ricos com a venda do produto. Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio) é um veterano de guerra que se muda para a comunidade anos depois de seu crescimento para trabalhar com seu tio, o magnata King William "Bill" Hale (Robert De Niro), que se diz amigo dos indígenas, mas que por debaixo dos panos está organizando um genocídio para ficar com as terras e as riquezas. Burkhart se apaixona por Mollie (Lily Gladstone), uma das quatro irmãs mais ricas por conta do petróleo que vem sofrendo por conta da diabetes. Ernest, então, precisa lidar com a paixão pela moça enquanto tenta equilibrar com os trabalhos sujos de sua família, precisando lidar com a investigação do detetive Tom White (Jessie Plemons) nos primórdios do FBI.
Vou começar falando já do que não fez ser um 10/10, porque Scorsese é assim, o filme já começa no dez e depois só tem a perder. Bom, é um filme de três horas e vinte e oito minutos, são 206 minutos no total (na prática é menos tempo de tela por conta que dez minutos são créditos), eu não vou reclamar da duração, o longa foi pensado desse jeito para ter essa minutagem, mas acaba que torna-se exaustivo acompanhar essa galera por tanto tempo, até por conta de não ser uma história tão feliz, falo mais da abordagem depois. Esse cansaço vem ali pelos oitenta, noventa minutos, porém depois vem uma grande evolução pela construção que o Corsa faz e a tensão subindo. Outro problema é a questão da criação do FBI, que é o ponto-chave do livro base, o protagonista da obra original é o detetive Tom White, mas aqui é jogada para escanteio, colocando o Jesse Plemons em um papel menor do que ele merecia e que poderia ter sido muito melhor utilizado dentro da narrativa. São apenas esses os problemas que me incomodaram, que eu olhei e pensei: "poderia ter sido melhor", mas todo o resto é sublime.
A trama é muito boa, é interessantíssima e é algo com um impacto monstruoso que nós não sabemos, é uma história que faz parte da sociedade estadunidense moderna, que denota o maneio do homem e até onde se consegue chegar em busca de lucros. A ganância e o ego são temad recorrentes na filmografia do vovô Scorsese: Jake LaMotta em "Touro Indomável" (1980), Henry Hill em "Os Bons Companheiros" (1990) e Jordan Belfort em "O Lobo de Wall Street" (2013) são os maiores de exemplos disso. Aqui vemos Ernest, um personagem frágil, medroso, ingênuo e, por tabela, burro, que é manipulável e vira um boneco de ventríloquo na mão do King sem perceber. Essa história inteira do povo Osage é algo que vai da ascensão à queda pela inocência em quem confia, deixando o inimigo chegar cada vez mais perto sem nem desconfiar. No final, o que ocorre aqui não é nada mais que um repeteco da época das colonizações e das grandes navegações, onde os povos nativos entregam suas riquezas para quem vai os matar, estuprar e sugar as riquezas até a última moeda.
O Scorsese é muito bom em costurar tudo por debaixo dos panos, pois você sabe o que está acontecendo ali, claramente é um genocídio programado pelo King, mas a maneira como tudo isso é posta em uma segunda camada, assim como os personagens estavam vivendo ali, é espetacular. Essa questão vem por baixo justamente pela visão da história ser a do Ernest, que as evidências do que está ocorrendo está bem na cara dele e ele se faz de burro ou imbecil, chegando até a envenenar a própria esposa no final por acreditar em quem estava tentando matá-la. Essa questão toda é muito bem trabalhada através da montagem da Thelma Schoonmaker, a grande e longeva parceira do realizador, que ainda não perdeu a mão em mais de quarenta anos de parceria, porque aqui temos uma das melhores edições da temporada, que equilibram bem o tempo de tela entre a vida pessoal do protagonista, a relação dele com o tio, o suspense e as mortes que vem acontecendo. Tem uma queda de ritmo, que eu já citei, mas que numa obra tão grande torna-se mais um detalhe, até porque o ritmo que ela consegue alcançar é semelhante ao de Bons Companheiros e O Aviador, que é um frenesi controlado para que não fique tão confuso ou cansativo.
Burkhart, sem dúvidas, é o protagonista mais burro da carreira do Corsa, e é proposital, o diretor não está interessado em que você goste dele, pelo contrário, ele quer que você tenha raiva desse maluco justamente por ele ser um imbecil completo. Ernest é aquele cara que chega lá na cidade nova, para adentrar o ramo da família, ele, apesar de ter servido durante a guerra, é muito ingênuo, ele cai facilmente nas manipulações de seu tio e aliados. Você percebe que o amor que ele tem pela esposa e pelos filhos é real e ver ele no final envenenando a insulina para dar para a esposa dele sem ter o total conhecimento é de dar raiva. Eu sinceramente não tinha muita expectativa para essa atuação do Leonardo DiCaprio, nas imagens e trailers ele estava com uma cara de batutinha crescido, mas pô, para ele conseguir me fazer sentir tanta raiva do personagem precisa ser bastante competente. É diferente de tudo do que o Leo já fez, por isso teve gente que estranhou ou achou sem graça para ele, mas é isso que um grande ator como ele tem que fazer, entregar uma variedade de papéis e não ficar só na zona de conforto. O mérito é dele (e, claro, da direção) para entregar esse protagonista errôneo, falho, que você sente raiva, não só por ele ser uma pessoa ruim, mas por ser enganado por gente pior ainda.
Ele tem um tempo de tela mais ou menos dividido com Mollie, interpretada pela novata, mas já adorada, Lily Gladstone. A Mollie é aquela pessoa que aparenta ser ingênua, mas que tem uma pulga atrás da orelha, que suspeita, porém prefere não investigar por medo de entrar para a lista. A personagem dela é adorável, ela tem um encanto no início de ser uma das irmãs mais desejadas da cidade, ela tem esse charme que conquista Burkhart genuinamente, a relação entre os dois é muito bem construída e a química entre ela e o DiCaprio é real, você crê naquele casal, que eles se apaixonaram reciprocamente e até torce por eles. Mas o destaque da situação é no sofrimento, o emocional, as cenas que ela perde os entes queridos são de partir o coração. A questão da diabetes também é muito bem trabalhada, eu convivo com gente que tem e realmente ainda é complicado hoje em dia, imagina lá nos anos 20 com nenhuma tecnologia e a recém criação da insulina, e ela consegue trazer esse sofrimento, essa limitação que ela acaba tendo e você sente, as cenas dela passando mal é uma aula de atuação. Entretanto, há a polêmica por conta das premiações: principal ou coadjuvante? Bom, tem muito tempo de tela, mas o filme é gigante também, o que complica. Ela não é o foco no geral, é o Leo, ela acaba tendo esse destaque por sempre estar ao redor dele, mas analisando friamente é mais coadjuvante do que principal, porém não é absurdo concorrer como protagonista, igual foi ano passado com a Michelle Williams em "Os Fabelmans".
Outro sublime é Robert De Niro, que em sua longeva carreira, também aos 80 anos, entrega uma das melhores de sua carreira, e não, não é exagero. Ele é sutil, é um vilão que você tem conhecimento das intenções dele, você vê a falsidade em seu olhar, mas o comportamento corporal que ele dá ao personagem é de uma delicadeza tão precisa que só um gênio da atuação conseguiria extrair desse papel. Você sabe que ele é mau, um genocida, um maluco que é capaz de passar por cima de qualquer um para alcançar seus objetivos e esse desgraçado ainda se passa de bonzinho, de cristão, de preocupado, acho que ele é o personagem que eu mais tive ódio durante a temporada, é o melhor vilão de 2023 sem dúvidas. Tive que diminuir para falar de parte técnica, que é sensacional. Rodrigo Prieto, Jacqueline West, Robbie Robertson e a já citada Thelma Schoonmaker, é a panelinha do Corsa, todos repetem parcerias. Prieto na fotografia é maravilhoso, as viradas de câmeras características são sensacionais, esse tom arenoso que ele trás, a areia, os campos, as terras, sem contar que ele acompanha os personagens com a câmera, ele busca trazer o máximo de imersão possível nesse quesito. West traz perfeitamente a essência daquela época e do povo Osage, as tradições nativas mescladas na sociedade com a formalidade dos ternos e suspensórios é muito bem feita, ainda se complementando com uma direção de arte simplesmente perfeita que capta o cerne daquilo tudo. Por fim, nosso lendário Robbie Robertson, que infelizmente veio a falecer por conta de um câncer, e ele, como um guitarrista, que vem do rock, do jazz, cria aquela trilha descolada dos filmes de crime do Scorsese com maestria uma última vez.
É complicado ter que resumir tudo o que é esse filme em poucos parágrafos, infelizmente o Instagram só permite dez imagens, mas cara, é Scorsese, é uma lenda viva querendo ou não. Ele não é só um exemplo de diretor muito apaixonado pela arte, também é um exemplo de resiliência e longevidade, aos 80 anos ele ainda está ativo, saudável e com tesão em cinema. Ano que vem, em 2025, já vai vir mais um sobre Jesus, depois virão mais dois em sequência em parceria com o DiCaprio. "Assassinos da Lua das Flores" é (mais) um épico glorioso de Martin Scorsese, a estrutura toda, a narrativa, a trilha sonora, montagem, elenco, personagens, atuações, reviravoltas, figurino, direção de arte, maquiagem, fotografia, tudo parece perfeitamente calculado para ser uma obra-prima. Para mim só não foi por conta da questão do FBI e o personagem do Jesse Plemons, que tinha bastante potencial e senti que ficou escanteado. De resto, primeira parceria entre Scorsese, De Niro e DiCaprio, finalmente a reunião dos dois grandes parceiros do diretor em tela, em que ambos, com a adição da talentosíssima Lily Gladstone, entregam um dos melhores conjuntos cênicos do ano. Tudo que era para ser falado já foi, que negócio maravilhoso.
Nota - 9,0/10