Crítica - A Sociedade da Neve (La sociedad de la nieve, 2023)
Uma experiência fria e desconcertante.
Já falei de J. A. Bayona aqui na página, falei sobre "Jurassic World: Reino Ameaçado" (2018), que eu acho um baita blockbuster subestimado, e o Bayona é um cara que gosta de trabalhar com o desastre, trazer o horror natural e humano para a tela, as formas visuais e consequências disso para os personagens das obras. Além do próprio Jurassic World, onde ele trabalha numa cena excepcional o colapso da ilha, e também "O Impossível" (2012), que é sobre uma família atingida por um tsunami. Aqui ele decide falar sobre um caso realmente famoso, que já tiveram outras versões para as telonas, como a mais clássica, "Vivos" (1993), que passou até na Globo. Além de vários documentários, artigos e livros sobre o assunto. Quando você vê que vão falar sobre um caso tão antigo nos cinemas novamente, mesmo com aparentemente uma obra tão famosa que dá para ser considerada definitiva, você começa a se questionar a necessidade. Mas, quando se há um diretor desse nype envolvido, além de um grande envolvimento da Netflix com um orçamento enorme, o interesse aumenta.
É a história do famigerado acidente de avião que aconteceu quando uma equipe de rugby do Uruguai bateu nas montanhas da Cordilheira dos Andes enquanto estava a caminho do Chile para uma partida. Dos quarenta passageiros e cinco tripulantes, no final apenas 16 ficaram vivos. Vemos então uma luta pela sobrevivência, a remuneração de alimentos, os desafios para vencer o frio extremo, a dificuldade em serem resgatados, o quão longe o ser humano pode ir para sobreviver e o quanto vale uma vida, precisando adquirir dos meios mais extremos para não ir de base, chegando até ao canibalismo. É uma história muito pesada, um trauma gigantesco para todos os envolvidos, que precisaram se alimentar até de seus conhecidos para continuarem lutando pela vida - e posteriormente todos os sobreviventes foram julgados por canibalismo. A experiência que Bayona quer criar é a mais extrema possível, que você se sinta mal assistindo por tudo que está acontecendo na tela, que haja uma reclusão no estômago toda vez que uma carne humana é digerida, que seus olhos congelem igual naquela situação, a imersão é um ponto-chave para o funcionamento da trama, que sim, tem problemas, mas o saldo é positivo.
Um dos grandes acertos é o sentimento de comunidade, é criar esse laço entre os personagens. Todos lá são conhecidos, atletas que queriam jogar apenas uma partidinha de rugby e viajar para outro país, mas o destino é cruel, e os colocou naquela situação. Você sente o desespero sendo criado e tomando conta a cada segundo, a desesperança sendo dominante, o medo, a ansiedade e a tristeza tentando ser controladas ao máximo até que chega um ponto em que não dá mais para aguentar. Porém, acaba havendo um ponto baixo ao não criarmos conexão suficiente com nenhum daqueles personagens, porque são tantas pessoas envolvidas que não há tempo para apegos e desapegos, só depois de mais de uma hora e dez é que você se dá conta que o Bayona está tentando criar um sentimento em relação a um destacamento do pessoal, sendo eles o Numa (Enzo Vongricic), Nando (Agustín Pardella), Roberto (Matías Recalt) e Gustavo (Tomas Wolf), que mandam bem, são ótimos atores, mas que demora até você identificar quem é quem e criar algum tipo de conexão.
Os sentimentos dos personagens são sempre postos à prova, a questão do canibalismo, de longe o ponto por qual esse caso é relembrado, é um dos exemplos. Alguns se recusam a comer pelo medo e pela repulsa, outros sentem a necessidade para não morrer de fome, a mesma coisa que uns consentem para que a carne deles seja ingerida após a morte e outros não. Esse lado é uma das coisas mais complicadas que eu vi recentemente no cinema, pois é um pensamento que necessita de consenso, e o Bayona trabalha essa questão da forma mais bruta e difícil possível, mostrando quantas formas eles acharam para perder o nojo e o medo até virar algo corriqueiro. Outras situações que eles passam são demonstradas quase como um filme de terror, como uma nevasca, porque a situação já tá ruim, já atingiu níveis extremos, e para complementar ainda vêm uma tempestade de neve para piorar tudo. Essa cena, de longe, é uma das mais bem gravadas da obra, com o diretor sendo especialista em cenas de desastres, essa acaba não sendo diferente e é assustadora, principalmente pelo foco ser nas pessoas sofrendo e não na tempestade.
O que mais ajuda na experiência é a parte técnica, que nesse pleno calor no Brasil inteiro faz com que sintamos frio assistindo. A fotografia é maravilhosa, é do Pedro Luque, um profissional que vem do terror, então ele tem a noção de como criar essa sensação de claustrofobia. Isso é até interessante, pois eles estão no meio da Cordilheira dos Andes, um local aberto, espaçoso, mas ao mesmo tempo é monótono, é vazio e é mortal. Tem cenas que você se sente tão preso ali que a tensão e a baixíssima temperatura parecem vir de encontro ao seu corpo. Outro destaque é a trilha sonora, que é do Michael Giacchino, repetindo a parceria com o diretor em algo muito fora da zona de conforto dele, fazendo aqui algo mais dramático, que precise ser tão funcional quanto outros artifícios técnicos para trazer essa atmosfera gelada a quem assiste. Os temas dele tem uma sutileza, é um tom que não apela para o emocional, mas comove pelo combo da situação mais a música, fazendo com que haja algo a mais ali para emocionar. Honestamente, vejo bastante chances para esse trabalho no Oscar, inclusive podendo tirar a vaga de algum grande favorito.
Encerro dizendo que sim, poderia ter falado muito mais sobre, realmente é uma obra de bastante conteúdo para ser explorado, analisado e observado, mas também acho que o pouco que eu falei já é suficiente para entender o quão emocional, pesado, imersivo e chocante é "A Sociedade da Neve". Com certeza é uma bela surpresa dessa temporada de premiações e uma boa maneira da Netflix encerrar a temporada/abrir 2024 com uma baita obra como essa. J.A. Bayona fazendo o que talvez seja o melhor filme de sua carreira (particularmente eu prefiro o Jurassic World 2, mas é uma obra bem divisiva, nessa existe um consenso maior). Gosto do trabalho técnico, da direção que foca mais na experiência do que nos personagens, o que diretamente causa o principal problema do filme, que é a falta de personagens centrais durante a exibição toda para que aumente a preocupação que nós espectadores tenhamos com aquela galera. Também acho o final bastante arrastado, demoram muito para chegar ao ponto e creio que mesmo assim ainda termina abruptamente, como se tivesse a sensação de que era para ter mais coisas. Mas, todavia, continua sendo um baita filme que merece a assistida.
Nota - 8,0/10