Crítica - Duna: Parte 2 (Dune: Part Two, 2024)

A correção de erros anteriores para tornar-se um espetáculo cinematográfico.

🚨 Texto com spoilers leves 🚨

Após a primeira parte "Duna" (2021) há alguns anos, retornamos a Arrakis para a conclusão da primeira saga idealizada por Frank Hebert. No texto sobre o anterior, eu havia falado que não conhecia a história original, que não havia lido o livro e tudo mais. Bom, continuo sem ter lido o livro, mas busquei saber mais da obra antes desse longa, justamente para não cometer alguma injustiça, até porque eu sentia que nem ia ver, mas os inúmeros comentários positivos me convenceram. Eu sentia que tinha cometido alguma injustiça contra a primeira metade, então decidi reassistir e ver com uma mentalidade diferente, e bom, entendi melhor algumas coisas, mas mantenho que é cansativo, anticlimático e que parece um trailer gigantesco para a segunda parte. Bom, eu adianto que agora, conhecendo melhor a história e qual a intenção, a mensagem e as inspirações de Hebert, dá para notar mensagens mais fundas em questões políticas, religiosas e sociais, e com isso, eu achei essa parte dois simplesmente espetacular! Que negócio incrível! Alucinante! Foi tudo que o primeiro deveria ter sio e não foi. Conseguiu acertar em todos os erros do antecessor e melhorar os pontos positivos, como o diretor Denis Villeneuve havia prometido.

Após a destruição da Casa Atreides e a fuga para o deserto, Paul Atreides (Timothée Chalamet) e sua mãe, grávida, Lady Jessica (Rebecca Ferguson) se unem aos Fremen, o povo nativo de Arrakis em busca de sobrevivência e uma aliança para buscar vingança. Quando Stilgar (Javier Bardem) vê no jovem a possibilidade de ser o escolhido pela profecia, chamado de Lisan Al-Gaib, acaba treinando e protegendo o jovem em busca dessa resposta, o transformando em um deles. Enquanto isso, o Imperador Shaddam (Christopher Walken), em conjunto com os Harkonenn, busca uma maneira de exterminar os Fremen e tomar o controle da especiaria de uma vez por todas, mesmo com a incerteza de sua filha, a Princesa Irulan (Florence Pugh). Os Harkonenn, por sua vez, apostam na juventude, sociopatia e honra de Feyd-Rautha (Austin Butler) para ser o novo líder de Arrakis. Paul, junto aos Fremen, e especialmente, seu interesse romântico, Chani (Zendaya), preparam-se para a inevitável guerra que pode definir o futuro do universo conhecido, com o objetivo de se vingar do império e seus aliados. E sim, o anterior foi apenas uma preparação longa para a segunda parte, honestamente eu fiquei com a sensação de que a história começou aqui e tudo que aconteceu anteriormente vai ficar na minha cabeça como um gigante "previously on...".

Se o anterior não tinha ritmo, era chato, monótono, não era funcional na péssima ação e tudo mais, aqui o Villeneuve cria uma dinâmica extremamente agradável, que constrói toda essa sensação épica que a história clama. Momentos que são antológicos quando vistos na telona, cenas que eu estava tão fascinado que até tinha me esquecido o quanto detestava a primeira parte. Toda a construção é muito melhor, o Vilanova aproveita que já tinha apresentado tudo e faz a festa. Novos conceitos aqui tem uma apresentação rápida e simples, sem complicação ou exposição exagerada, personagens são apresentados sem monólogos enormes explicando quem são. Pelo o que eu vi, o diretor mudou muita coisa do material original sem alterar a essência do Herbert e, honestamente, vendo por cima, os conceitos do longa são de uma acessibilidade bem maior do que originalmente (por exemplo: ele trocar uma criança de dois anos com uma consciência adulta por uma mente que se comunica com a mãe no útero através da água da vida, na minha visão é de um entendimento bem mais fácil).

Nessa dinâmica toda, tem muita ação, e dessa vez bem melhor que anteriormente. Claro, ainda sim hão algumas limitações, mas nada que atrapalhe muito, a edição consegue dar umas salvadas nos erros das coreografias. Os melhores momentos e mais épicos, na realidade, não envolvem lutas, são cenas como o Paul invocando o Verme de Areia pela primeira vez ou a cena dele tomando a liderança dos Fremen que arrepiam, eu no cinema estava convencido de que a história era épica, de que estava acompanhando o surgimento de um novo clássico da ficção científica (ou velho, já que é uma história dos anos 60). Apesar disso, creio que o ritmo seja um empecilho, já que se o anterior se arrastava bastante nos minutos finais, esse é muito acelerado, e algumas coisas ficam sem o impacto que deveriam ter, como por exemplo a conclusão de arcos envolvendo os Harkonenn, que no final eu fiquei com um sentimento de ser anticlimático e muito mais rápido do que deveria ter sido, soa jogado. Tirando isso, creio que não haja mas nenhum outro problema grave por aqui, até porque se desenha um final parecido com o anterior (x1 de faquinha), mas lá não tinha graça por não ter, aqui a imersão e a coreografia são tão alucinantes que é difícil tirar os olhos da tela, então até nesse quesito se sobressaiu.

Villeneuve sabe como trazer várias questões à tona para a narrativa, a maneira como a mitologia, a religião, a espiritualidade e a política são construídas aqui, é algo impressionante, que traz muito mais peso para a história e as decisões de cada personagem. Eu gosto especificamente dessa visão sobre os Fremen, onde a parte nortista é extremamente cética e desesperançosa, se prendendo a um agnosticismo em relação à profecia e ao surgimento de um Messias, enquanto a parte sulista é a mais religiosa, mais crente de que o Lisan Al-Gaib está por ali e estava próximo de chegar. Nisso, decisões corajosas são tomadas na trama, aumentando a importância da Lady Jessica para a narrativa como um todo, criando um arco para a Chani muito maior do que aparentava e fazendo com que você crie uma proximidade maior, já que isso humaniza muito os personagens, a crença e a falta dela são coisas muito presentes no cotidiano, isso deixa aquilo que está acontecendo bem mais imersivo e verossímil. A parte política é bem forte, desde o anterior, mas aqui fica bem mais evidente, toda a correlação com a Crise do Petróleo na década de 60. Entretanto, eu fico pensando: não seria Paul Atreides um salvador branco? Porque ele é um garoto rico, vindo de família imperial, que se une aos nativos e ao final toma a posição de liderá-los e salvá-los. Honestamente, eu não tenho uma resposta certa para isso, creio que Villeneuve soube muito bem amenizar isso acentuando o fato do protagonista não querer ser um líder, nem um herói, apenas um combatente, um sobrevivente, e tomando essa posição de liderança apenas após ter acesso a algo superior lhe dizendo que era o certo.

Se no anterior eu havia reclamado de ser muito escuro, aqui o que mais tem é saturação. Grande parte se passa no deserto, a saturação relembra a do grandioso "Mad Max: Estrada da Fúria" (2015), onde temos muita areia o tempo todo e o calor escaldante (e o fato de estar 30°c na hora que eu fui ver o filme ajudou na imersão, eu acho). O universo ali, convenhamos, nada de diferente, parece que eu estou acompanhando algo acontecendo no Saara e não no espaço. Os grandes destaques de design de produção vem nas tocas dos Fremen, no planeta dos Harkonenn e no palácio do Império de Arrakis. A construção de cenários é única, cada povo tem suas peculiaridades e exclusividades, como havia na Casa Atreides no anterior e agora se repete nos demais cenários. Os Fremen são um povo pobre, desértico, nada os resta além da natureza e de areia. Os Harkonenn são um povo gótico, um planeta preto e branco, quase como se remetesse a uma música de rock, de heavy metal, nessa viagem meio psicodélica e meio dúbia. Já o palácio é como se fosse uma verdadeira construção imperial terrestre, com detalhes diferenciados em cenografia e figurino que criam essa sensação alienígena.

A fotografia aqui é completamente sensacional, as filmagens são belas. Metade das cenas dão wallpapers bonitões, especialmente as do deserto com o céu atrás e algo em foco, como a belíssima cena do primeiro beijo entre Paul e Chani ou até mesmo a cena do Verme de Areia que já tinha citado. Os tons laranja das dunas contrastando com o tom do horizonte são belíssimas. Mas em questão de cinematografia, com certeza o destaque é para a cena do Coliseu, que é um filtro preto e branco no Planeta dos Harkonenn, mas toda a ação é bem filmada e acompanha bem essa loucura do antagonista (falo mais sobre ele depois). Os figurinos são espetaculares, são sutis nas construções, eu gosto muito do visual Fremen e como é sublime em sua criação, a referência ao povo do oriente médio sem ser expositiva, os visuais das Bene Gesserit são ótimos, e os da Princesa Irulan são verdadeiramente absurdos. Maquiagem também é excelente, nisso não há dúvidas, especialmente os Harkonenn, onde é a concentração do trabalho, o do Stellan Skarsgård como o Barão é inacreditável mais uma vez, que troço sensacional, sem contar os demais, como a careca do Elvis e o visual do Drax. Os efeitos são inacreditáveis, que capricho. O anterior tinham erros e coisas meio esquisitas, esse não tem nada do que reclamar, é tudo visualmente impressionante, o CGI é realmente impecável, os vermes de areia, as naves, as batalhas, as partes meio psicodélicas, tudo bem arranjado.

O elenco também é irretocável, excelentes escolhas. Eu peço as minhas mais profundas ao Timothée Chalamet ao dizer no texto anterior que ele não tinha cacife para ser protagonista de algo épico e fantasioso, eu disse que faltava ele se soltar, e, rapaz... Aqui ele se solta. Ele vai bem em todas as cenas, demonstrando uma certa humildade, curiosidade, já some com aquela antipatia que eu sentia na primeira parte, mas depois quando a trama vai avançando, ele vai assumindo um papel cada vez mais incrível nessa narrativa, ele no final arrepia o espectador só com o modo de falar, a maneira na qual ele se impõe, o impacto que ele traz, é maravilhoso, que performance absurda. A Zendaya assume um co-protagonismo, ela atua bem, ela faz um ótimo par romântico com o Atreides, mas ela não se prende a isso, é bem mais do que apenas a concubina dele. Ela tem um arco próprio, pensamentos próprios, uma imponência em relação às suas crenças e um desfecho que engata um interesse sobre seu papel no futuro. A Rebecca Ferguson tem uma mudança drástica em sua personagem, que faz sentido com a origem da mesma, e isso acaba sendo um teste para a versatilidade dela como atriz e funciona perfeitamente, toda essa conexão dela com o lado espiritual acaba sendo bem mais impactante para a narrativa como um todo. Josh Brolin também entrega uma boa atuação repetindo o papel de Gurney, ele em uma interpretação bem mais contida por conta do trauma do anterior, mas ainda sim com o mesmo espírito guerreiro e indomável, sendo quase como um diabinho no ombro do Paul nos primeiros minutos da sua aparição, mas depois sua adaptação ao comando do mesmo o torna um grande combatente novamente.

Mas, sem sombra de dúvidas, o melhor personagem do longa foi o antagonista, o Na-Barão dos Harkonenn, Feyd-Rautha. Ele é um psicopata, um maníaco, que tem uma sede de poder insaciável e que pode fazer de tudo para chegar ao trono. Ele é insano, excêntrico, tem um quê de Coringa nele extremamente notável. Apesar disso, é um guerreiro honrado, que está sempre em busca de um novo desafio e uma batalha digna, não deixa nem seu exército ajudá-lo nas batalhas, ele gosta de conseguir suas conquistas por si próprio, até tendo humildade em reconhecer o mérito de seus adversários independente do resultado. O Austin Butler é magnífico, ele entra nessa loucura desde sua primeira cena, onde já demonstra sua insanidade ao cortar a própria língua e assassinar algumas de suas "primas" (se você me entende rsrs) para testar a qualidade de uma adaga. Ele tem essa sociopatia no olhar, as atitudes dele são de um maníaco. A ambição dele não é diretamente com Atreides ou qualquer outro personagem, é com o poder que ele quer conquistar, independente dos métodos que ele terá que tomar para alcançá-los. Um vilão excelente, o melhor em muitos e muitos anos do cinema blockbuster. Outra personagem nova nessa segunda parte é a Princesa Irulan, a Florence Pugh, que é a narradora dos livros, aqui ela funciona bem como o olho do espectador, toda grande introdução ou desenvolvimento de algo importante que talvez seja complexo passa por ela, criando assim um elemento isolado, mas indiferentemente importante na trama.

Acho que esse texto foi um dos mais longos que eu escrevi nessa nova fase da página (2022 para cá), mas é bom quando é assim, quando um filme tem tanto conteúdo que eu não falo de alguma coisa não por ter me esquecido, mas por não ter mais espaço no texto. Nem deu para falar de como o Javier Bardem também foi incrível como Stilgar, ou de como a trilha sonora do Hans Zimmer é espetacular e canoniza um novo tema icônico. Mas o importante é que "Duna: Parte 2" é um espetáculo cinematográfico de primeira linha, um daqueles blockbusters que ficam marcados nesse pós-pandemia como algo acima da média, como uma das poucas obras que valem a pena sair de casa para assistir numa tela grande e que vai conseguindo um devido sucesso entre público e crítica. Não é uma obra-prima, tem vários problemas, especialmente uma aceleração rítmica no final (quem diria, né), alguns erros cronológicos (passaram-se dez meses e a mulher continua grávida), mas compensa em um visual escaldante, uma beleza que gera wallpapers incríveis, cenas arrepiantes e antológicas, um elenco impecável. De fato, dá para ser considerado um novo clássico do sci-fi, tem todos os elementos necessários para isso. Villeneuve, parabéns, você calou minha boca. E que venha Messias de Duna, que venha a parte 3!

Nota - 8,5/10

Postagens mais visitadas