Crítica - O Menino e a Garça (Kimitachi wa dou Ikiruka, 2023)

Não entendi nada. Filmaço.

Quando se falam de gênios da animação, um dos primeiros que vem à cabeça é Hayao Miyazaki, que é, indubitavelmente, um dos maiores artistas de cinema de todos os tempos, o cara é brilhante, revolucionou a forma de contar histórias através da animação, trazendo um estilo único e uma sensibilidade que quase nenhum outro diretor tem. Miyazaki é a cara do Studio Ghibli, um dos grandes estúdios de animação do mundo, sendo ele o principal responsável pelo sucesso, quebrando barreiras para obras orientais conseguirem sucesso no ocidente, como "Meu Amigo Totoro" (1988), "Porco Rosso - O Último Herói Romântico" (1992) e vencendo um Oscar sobre dois filmes da Disney com sua obra-prima, "A Viagem de Chihiro" (2002), sendo, até então, a única animação em língua não-inglesa e em 2D a vencer a categoria de Melhor Animação na premiação e, bom, enquanto eu escrevia esse texto, a animação que estou falando sobre ganhou também, ou seja, o diretor é o detentor dos únicos dois longas 2D e fora de EUA e Reino Unido que venceu na categoria (o que para ele não faz diferença, ele odeia Hollywood). Hayao havia se aposentado em 2013, com "Vidas ao Vento", mas como artista nunca para de ter ideias, ele decidiu voltar para mais um longa, que originalmente sairia em 2020, mas devido a atrasos de produção somados com a pandemia, saiu apenas em 2023, causando comoção por ser um trabalho espetacular que supera expectativas.

Após a morte trágica da mãe no bombardeio de Tóquio e a intensificação do confronto da Segunda Guerra Mundial, o garoto Mahito (Soma Sontaki) se muda para a isolada mansão da madrasta, Natsuko (Yoshino Kimura). Lá, a criança começa a ter certas visões e ser perseguido por um homem-garça assustador (Masaki Suda), que parece querer matá-lo, mas na realidade está o convocando para uma aventura que mudará seu destino. Mahito embarca em uma jornada onde sua vida será colocada em jogo, onde fará amigos como a destemida aventureira Kiriko (Ko Shibasaki) e a dominadora do fogo Himi (Aimyon). Nessa jornada, são desvendados e perguntados mistérios sobre a vida, existência, equilíbrio e tempo, mostrando que nem sempre aquilo que aparenta será de fato o que acontecerá. A narrativa é basicamente o Miyazaki definitivo, já que ele utiliza-se de inspirações dele mesmo para construir essa trama cheia de emoção e pessoalidade, trazendo metade na calma e tranquilidade de Totoro e a outra na aventura maluca de Chihiro.

O diretor se coloca na trama sem ser de forma prepotente ou recompensadora (diferente de um mexicano calveludo por aí), a jornada de Mahito, desde a essência, mostra conter camadas a mais do que você espera. A mãe do jovem morreu durante o bombardeio em Tóquio, memória traumática que o Miyazaki pelo visto ainda carrega, mesmo tendo quatro anos de idade quando isso aconteceu. Vários personagens são à imagem e semelhança do diretor, cada um tem um traço dele ou de algo que lhe inspira. Mahito representa o seu jovem, quando ele tinha um espírito aventureiro, curioso e criativo, enquanto o Tio-Avô representa o diretor nos tempos atuais, sentindo que está carregando um fardo, tendo que equilibrar várias pendências, mas preparando território para seus sucessores, tanto na família quanto no Ghibli. A Garça, por sua vez, representa sua consciência, que as vezes soa traiçoeira, difícil de lidar ou ignorar, enganosa e destruidora, mas que acaba sendo, ao mesmo tempo, o que o salva de muitos problemas, é o que consola, o que nunca sumiu dele.

A maneira na qual ele conta a história é bem dividida, há a primeira parte onde ele trabalha o protagonista, a mente dele, os traumas, adaptações, as curiosidades e descobertas do cotidiano, em uma simplicidade do campo, cujo relembra "Meu Amigo Totoro", como já havia dito anteriormente. Já a segunda parte já entra em algo mais psicodélico, em uma viagem pelo espiritual, pelo fantástico, pelas metáforas que nos fascinam. Miyazaki tem uma magia que te prende e fica quase impossível de se distrair enquanto assiste algo dele, pois ele conta tudo com tanta maestria e amor pela arte do cinema, pela arte da animação, que é difícil tirar os olhos da tela. Eu nunca tinha vivido uma experiência tão silenciosa e impactante numa sala de cinema, o local lotado e absolutamente todos em silêncio, prestando atenção na obra, entendendo o que aquilo tudo quer dizer e ao final sair grande parte do público saindo encharcados de tanto chorar. O silêncio é muito bem encaixado por aqui, momentos em que nada precisa acontecer em cena, um frame e um visual já falam tudo.

É impressionante como todos os personagens são legais, desde o Mahito, que é um protagonista infantil, então logicamente terão momentos dele sendo chato, mas ele conquista pela jornada del de buscar quem ele é, quem ele está tentando ser, nisso se encontrando com coadjuvantes tão legais quanto. A própria Garça é sensacional, se o diretor não odiasse Hollywood eu falaria que é claramente inspirado no Joe Pesci, o baixinho irritado e meio engraçado. A Kiriko é uma aventureira, quase uma motivação para o protagonista, uma figura que vem para inspirá-lo a seguir seu caminho, ela serve como esse ponto para ele entender os princípios de onde entrou. A Himi funciona como sua guia, como as memórias do protagonista, já que ela que o leva para as profundeza do mundo espiritual e constrói seu caminho a ponto de no final tomar uma decisão simbólica que faz todo sentido visto o caminho que ela traça na trama.

Tecnicamente, é espetacular. As animações 2D precisam continuar, tem toda essa mística de que "é ultrapassado" ou de que "não é chamativo para as crianças", mas isso é balela. A animação é simples, porém traz tanta beleza através da identidade visual criada por Miyazaki que chega a ser espetacular. A direção de arte, a construção daquela área rural, a mansão no campo, a misteriosa torre e logo depois indo para o mundo espiritual onde começa essa loucura, e é tudo belíssimo, só que o que mais me impactou foi a Himi e a construção do fogo dentro do visual, aquilo ali foi espetacular. As criaturas espirituais, os Wara Wara, que são como as almas das pessoas que não nasceram, não só são um conceito interessante (um pouco atrasado, pois "Soul" lançou antes), mas o visual é muito bonito, eles são fofos, essa é a realidade, dá vontade de ter uma pelúcia deles. Ainda na parte técnica, mas agora sonora, uma trilha espetacular do Joe Hisaishi, que é diferente dependendo do momento do longa, você acaba se fascinando e criando imersão naquela história muito por conta da música, que é calma, entretanto, é versátil, consegue criar tensão quando necessário e igualmente emociona quando é preciso, é um trabalho absurdo.

Um espetáculo, "O Menino e a Garça" é só mais uma amostra de poder do que Hayao Miyazaki pode fazer, ele entrega no auge dos seus 80 e poucos anos algo com a mesma sensibilidade, o mesmo capricho, a mesma emoção e paixão que ele tinha 20, 30, 40 anos atrás. É lindo, em todos os sentidos. O visual é impecável, a emoção é sentida, é impactante, a trilha sonora é sensacional, as criações, as ideias, as metáforas que ele faz e como ele transpassa o que passou e vem passando através da arte é simplesmente fascinante. Ver isso no cinema foi uma experiência verdadeiramente diferenciada, nunca havia presenciado uma sessão relativamente cheia tão quieta, eram verdadeiramente apreciadores da arte ali, se impressionando com uma grande obra de um grande gênio. Tive algumas limitações, mas nada que impeça no geral, é um espetáculo, como é bom ver a obra de um homem assim sendo apreciada e reconhecida merecidamente. Com certeza foi a melhor animação de 2023.

Nota - 8,5/10

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