Crítica - Pobres Criaturas (Poor Things, 2023)

O melhor filme de 2023, na minha opinião.

O cara dos filmes esquisitos está de volta, Yorgos Lanthimos, diretor grego que saiu do seu país e da indústria cinematográfica de lá (onde deu seus primeiros frutos) para ir ao Reino Unido conhecer uma galerinha um pouco mais famosa e entregar obras bizarras, chocantes e cômicas ao mesmo tempo. Em 2015/16 ele trouxe "O Lagosta", com Colin Farrell e Rachel Weisz. Em 2017 repetiu a parceria com Colin e contou com um recheado elenco para o polêmico "O Sacrifício do Cervo Sagrado", que até hoje traumatizou uma galera. No ano seguinte, decidiu trabalhar novamente com Weisz, dessa vez a incluindo num trio em "A Favorita" (2018), com a já vencedora do Oscar, Emma Stone, e a até então revelação Olivia Colman, a qual recebeu o careca dourado por esse longa e deslanchou posteriormente. Aqui ele já traz outra daquelas ideias malucas repetindo a parceria com Emma, dessa vez baseado num livro homônimo, que por sua vez é inspirado em "Frankenstein", de Mary Shelley, e traz um elenco cheio de gente que faz filme esquisito para contar essa história. Deu certo? Bom, acho que as onze indicações ao Oscar e o Leão de Ouro já dizem que sim.

Após cometer o oposto de viver, a jovem Bella (Emma Stone) é trazida de volta a vida pelo médico louco Dr. Godwin Baxter (Willem Dafoe), que troca o cérebro dela com o de o bebê que ela carregava. A jovem, então, tem sua vida resetada, aprendendo a viver novamente, descobrindo o andar, a fala, o tato, as relações humanas, os prazeres e o sexo. Mesmo prometida ao Dr. Max McCandless (Ramy Youssef), ela decide sair pela Europa em conjunto com o advogado mulherengo Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo). Nessa jornada, ela vai desvendando qualidades e problemas da humanidade, tendo sua inocência sendo cada vez mais destroçada, tentando descobrir alguma forma para evoluir como pessoa e melhorar a humanidade. É uma fábula, é como se fosse um Tim Burton versão +18, essa história da criatura que busca conhecer o mundo pós isolamento durante toda sua memória misturada com um mundo de fantasia é algo que Burton trabalharia tranquilamente, mas a mente de Yorgos é menos intoxicada pela indústria e ele acaba sendo a escolha perfeita para a direção, já que ele traz essa inspiração, misturado com a sua marca registrada do bizarro.

Lanthimos conta a história trazendo de tudo um pouco, há um equilíbrio muito grande entre vários tipos de longa. Tem uma inspiração nos monstros da Universal, especialmente nos primeiros trinta e cinco minutos, onde é tudo preto e branco, aí vem a parte da ficção científica através dos experimentos do Dr. Godwin, esses estudos sobre a vida, as criaturas que ele monta. A fantasia, há uma roupagem steampunk, é fantasioso, tem a questão de ser algo de época ao mesmo tempo que hão elementos surrealistas, seja através de cenários ou elementos. Tem o drama, que é presente em todos os longas, é a base da sétima arte. E a comédia, que acontece pelo bizarro, pelas situações que os personagens se metem, pela sátira e pelo ridículo. Yorgos equilibra o drama com o esquisito, é um longa de fantasia, é lúdico, tudo o que acontece aqui é metafórico (é bom afirmar porque tem uma galera tentando problematizar), é uma fábula adulta, que traz discussões sobre a vida, a morte e a humanidade.

Na questão de humanidade, vemos como várias coisas são intrínsecas do ser humano. A Bella começa na versão demo, onde ela age como um bebê ao mesmo tempo que é um Frankenstein, pois tem a inocência, ao mesmo tempo que ela se movimenta de uma forma totalmente dura e bizarra. Aí ela vem evoluindo, consegue falar, andar, ela tem sonhos, a curiosidade de explorar, de descobrir o mundo e a ingenuidade em relação a tudo, como ela acha que tudo é incrível, fantástico, e como isso vai sendo quebrado aos poucos, descobrindo a desigualdade, a esquisitice, o ódio e a insanidade. Sempre vemos a Bella pelas costas, para demonstrar seu crescimento através do cabelo, quanto maior o cabelo, mais  experiência ela já adquiriu. Ela sai de casa mal sabendo se portar de pé e volta como uma mulher vivida, que fala bem, que passou por poucas e boas. Acompanhar essa jornada foi incrível, o desenvolvimento dela, o que ela passou nas mãos do Godwin, depois do Duncan, no bordel e após isso retornando e encerrando seu ciclo. Uma coisa essencial nessa experiência é o sexo, são inúmeras cenas de fornicação no longa e absolutamente nenhuma é inútil para o recorte final, todas são relevantes para o resultado final, não há erotismo ou tesão na maioria delas, a descoberta da sexualidade é intrínseca na vivência humana, as experiências diversificadas fazem parte e a maneira como o diretor faz isso é maravilhosa.

Há uma ampliação da discussão iniciada por "Barbie" (2023) alguns meses atrás, sobre qual o papel da mulher na sociedade, qual a maneira que elas devem se portar. Bella sofreu um reboot, basicamente, teve sua vida zerada e consegue a experiência adulta sem as fases preliminares. Isso inclui a lapidação por parte externa, o julgamento que molda as pessoas para a convivência em sociedade, ela vive aqui sem nenhuma noção sobre o que é considerado bom ou mau, comportado ou desrespeitoso, ela vive como se não houvesse amanhã, falando sobre assuntos considerados tabus à época (e alguns até hoje). Há uma atitude na personagem principal que remete ao que geralmente vemos em figuras masculinas, curiosamente é esse tipo de porte que faz com que tantos homens se fascinem por ela ao longo da trama, é justamente essa coragem, essa falta de noção geral que cria uma personagem tão interessante. É fascinante acompanhar como ela sai de uma coisa e torna-se outra completamente diferente sem perder a magnitude, dá para se dizer que é a grande personagem da temporada nessa questão de desenvolvimento, pois o apego que você cria à ela é especial.

E cara, Emma Stone entrega a melhor atuação da carreira dela, mas assim, de muito longe, anos-luz do restante de sua filmografia. Ela busca vôos maiores, foi seu grande desafio como atriz até agora, ela que saiu de besteiróis adolescentes, para comédias românticas, até chegar nos filmes "oscarizáveis" com diretores aclamados, tudo isso ocorrendo de forma acelerada para a indústria, assim como o desenvolvimento da personagem no próprio longa como pessoa, em questão de dias ela evolui um bocado sem soar forçado. Aqui, ela começa atuando como uma fusão entre bebê e monstro do Frankenstein, como havia citado anteriormente, e ela vai a cada cena recebendo uma nova skill que vai lhe aprimorando como pessoa, ela vai se criando por ela mesma, se moldando independentemente, essa jornada é ótima. É o grande desafio da Emma pois ela tem que entregar uma variedade inúmera de faces, ela tem que ser ingênua, meio bobinha, grossa, esperta, burra, se encaixar cômica e dramaticamente na loucura do Lanthimos e ficar com os seios de fora por uma boa parte do longa nas cenas de sexo mais variadas possível, seja com homem ou mulher, por cima ou por baixo, normal ou fetiche, há todo o tipo de exploração sexual da personagem que ela abraçou com veemência, ela entrou na personagem e entregou uma performance inesquecível.

O elenco também é composto por outros excelentes atores, que conseguem colaborar mais ainda para a qualidade geral do longa. O Willem Dafoe como doutor é ótimo, eu honestamente esperava algo totalmente diferente, achava que ele ia ser excêntrico ou doidão como de costume, mas acaba que a excentricidade dele é passiva, ele é louco da cabeça, ele mescla várias espécies em seu laboratório, mas ele tem uma calma, um lado paternal para a protagonista, que eu não achava que iria ocorrer, jurava que ia para um lado mais estereotipado da coisa, mas acaba que ele é o melhor dos homens que passa pela vida dela (se olhar mais a fundo em seus diálogos dá para notar que talvez ele não seja tão legal assim também, mas como eu disse, é lúdico, é ficção). Já o Mark Ruffalo está tão bom quanto, ele é hilário, um dos grandes contribuintes da comédia do longa. Ele, que na vida real é defensor dos direitos civis, luta pelo meio ambiente, aqui é o maior babaca do mundo, ele é insuportável. Basicamente é um esquerdomacho, ele fica tentando manipular a mente da protagonista através de psicologia reversa, fazendo joguinhos mentais e caindo na sua própria manipulação. A loucura dele é muito engraçada, ele faz meio que um ridículo levado a sério e é muito engraçado, tem uma cena dele que ele se inspira no Tommy Wiseau e é hilário. A indicação dele ao Oscar é merecida, porém eu acho que ele fica minimamente abaixo do próprio Dafoe, imagina dos demais indicados.

Na parte técnica, temos o grande trabalho da temporada. A fotografia é muito interessante, conceitos bem trabalhados, como as vezes usar lente de olho em certos momentos, a mistura do preto e branco com o colorido, onde o P&B é utilizado nos primeiros trinta e cinco minutos, onde ela está presa ainda na casa do doutor, e as cores vem quando ela se liberta e vai descobrir o mundo (curiosamente, o primeiro momento com cor é justamente uma cena de sexo, as camadas são muito mais profundas do que já é normalmente). O figurino é diverso, tem a questão de emular a Era Vitoriana em sintonia da revolução que Bella traz, com pele à mostra, shortinho, ao mesmo tempo com toda aquela pompa da Europa na antiguidade, sem contar a quantidade absurda, o que sempre contribui para perceber o esforço, é incrível. A direção de arte é estonteante, a construção de época misturada com a fantasia remete ao Tim Burton, remete ao fantástico bizarro que conquista pela mistura dos dois. Tem também os efeitos, o capricho nas viajadas, as bizarrices do doutor, como os animais mesclados. A maquiagem do Dafoe e da Emma, especialmente a dele, que é toda deformada e bem detalhada, como se ele fosse o próprio monstro do Frankenstein evoluído. A trilha sonora do desconhecido Jerskin Fendrix é inventiva e até desafinada pontualmente e propositalmente para causar uma sensação de desconforto, ela vai se ajeitando aos poucos até chegar ao final, cujo está limpa, denotando um alinhamento da personagem com a narrativa.

Encerro dizendo que "Pobres Criaturas" foi meu filme favorito de 2023, e com a pequena quantidade de longas restantes que faltam-me para assistir, provavelmente não vai mudar, mas foi realmente uma experiência. Não só pela mensagem, não estou fingindo que gostei do filme para pegar mulher igual muitos, a obra em si para mim foi fascinante. A estética steampunk e surrealista, a comédia agradável e que não é nem um pouco forçada, a mescla de uma fábula com ficção científica, a construção de mundo que mistura filme de época, com fantasia, com Tim Burton, isso tudo com Lanthimos impondo seu estilo do bizarro, do surrealismo. Uma parte técnica perfeita, atrevo-me a dizer que tem a melhor produção do ano, tudo é perfeito, figurino, direção de arte, efeitos visuais, fotografia, maquiagem, cenografia, som, trilha sonora, é um conjunto inacreditável, que, somado a um elenco perfeito, com uma Emma Stone gigantesca, um Mark Ruffalo hilário, um Willem Dafoe maravilhoso, junto com outros personagens de suporte, cria um clássico instantâneo da fantasia cinematográfica. É quase irretocável, tem uma coisa só que me incomodou, que é uma parte ali no final que estende o longa, apesar de narrativamente ser necessária para o desenvolvimento da protagonista, mas se não existisse, daria quase na mesma. No geral, eu me arrisco a dizer, é uma obra de arte! Que filme bom de assistir.

Nota - 10/10

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