Crítica - Ficção Americana (American Fiction, 2023)
A insatisfação com a cultura de massa, a FOMO e a visão com qual vemos a cultura negra.
Vencedor do Prêmio do Júri em Toronto, temos mais uma obra com uma história afro-americana concorrendo ao Oscar... É exatamente esse tipo de comentário que o longa procura evitar e criticar. O estreante Cord Jefferson nos traz uma história na qual ele entra com os dois pés na porta para dizer "chega!". Geralmente, a cultura negra é retratada no cinema como algo dolorido, puro sofrimento que vem lá desde a época da escravidão, brigas de gangues, violência policial e os negros sempre tratados em papéis secundários como escravos, funcionários, ou, com o perdão do palavreado, pobres f0did0s, e aqui parece ser uma carta de aviso, dizendo que sim, existe toda essa parada de gangue, gueto, hip hop, pobreza, perseguição pelos porcos fardados, mas que não se resume a isso. Baseado no livro metalinguístico "Erasure", acompanhamos a jornada de um escritor cansado dessa retratação que não representa a todos os negros e decide dar uma zoada em o quão ridiculamente estereotipado soam as histórias de sofrimento sobre a "raça".
Thelonious "Monk" Ellison (Jeffrey Wright) é doutor em literatura, professor universitário e um escritor fracassado, já que mal consegue vender suas obras para editoras por não serem consideradas "negras o suficiente", sendo que ele não escreve histórias sobre negritude. Cansado dessa retratação estereotipada na literatura, no cinema e tudo mais, Monk, na mais pura raiva e deboche, decide escrever um livro através de um pseudônimo zoando com todas essas definições, contando a história de um gângster negro boca suja que é procurado pela polícia. Ironicamente, essa zoeira torna-se seu maior sucesso, sendo vendido por 750 mil dólares e já tendo direitos discutidos para uma adaptação cinematográfica até mesmo antes de ser publicado. Enquanto lida com a fama de sua indesejada obra, Monk também precisa lidar com o luto, a mãe doente, o irmão vivendo uma crise de meia-idade depois de assumir sua homossexualidade e um relacionamento amoroso no qual ele se sente finalmente bem. Cara, apesar de parecer uma crítica a forma como os negros são enxergados e a mídia vê isso, não é apenas este tipo de pensamento exposto aqui, é uma grande crítica à cultura de massa e como as pessoas aceitam qualquer besteira para se incluírem em conversas e discussões com outras pessoas.
É um longa feito para zaralhar, o objetivo é dar um choque de realidade sobre os estereótipos que a sociedade cria, não só os raciais que nem é o foco, mas em relação a tudo. É aquela questão dos clichês, a mensagem é que a vida não é que nem Hollywood, vão haver imprevistos, más interpretações, mas que a visão que a globalização do cinema através de Hollywood criou para o mundo através de obras de sucessos não é a verdadeira nem de perto. Na questão dos negros, várias obras de sucesso que, supostamente, são feitas para demonstrar a cultura ou criticar o racismo, não representam o que todos eles vivem. Muitas delas são elogiadas por serem "diversas", "brutas" e "realistas", quando na realidade só mostram eles sofrendo mais, como um longa que eu detesto e não entendo a aclamação, que é "Preciosa" (2009), eu acho esse filme uma bosta, quê parece hollywoodizar uma vivência sofrida como se tivesse algum glamour - e inclusive o livro que inspirou esta obra foi algo que motivou o escritor do romance-base Erasure a criar essa história. Na maioria das vezes, as obras com críticas raciais vem sempre com os mesmos elogios por parte majoritariamente branca por sentirem culpa de atos do passado, nisso acabam se colocando em situações de risco de acusações de preconceito ao dizerem que não gostaram.
Essa rebeldia do Monk é muito bem criada, já que ele nitidamente não liga para essas definições de raças, ele não vê a cor da pele como relevante, até porque na vida dele, como acadêmico, escritor, um cara realmente culto, numa família bem de vida, classe média, com duas casas grandes, uma empregada, carrões, a "vida negra" das ruas, do rap, do crime, dos palavreados, que vendem para ele através da cultura, não é aonde ele se sente representado. Não quer dizer que ele não tenha passado por perrengues ou que nunca tenha sofrido racismo, mas não é a vida que ele levou e as pessoas pensam que ele tem pela cor da pele. Essas definições criadas pela mídia o incomodam profundamente, e a forma irônica como Jefferson faz essas situações serem desconfortáveis é o auge cômico do longa, trazendo essa visão racista sobre o racismo através dos brancos, os diálogos são muito bem escritos e a forma sarcástica na qual eles acontecem é ótima.
Cord Jefferson é excelente para uma primeira vez, ele entrega uma obra em que já demonstra que é um nome para ficar de olho. Não só esse humor satírico é muito bem feito, como ele tem ideias muito boas em relação a montagem e storytelling, uma das que eu mais gostei foi o Monk escrevendo o livro enquanto discutia com os personagens encenando o que ele escreve, aquilo ali foi bem pensado. O drama também é excelente, como o protagonista é meio fechado e problemático, tem muito a ser explorado nessa área, como a relação com os familiares, com o empresário e com a vida que ele leva na sua profissão, ele é pokas, é impaciente e o problema é seu se não gostar do jeito dele, mas a sensibilidade que o diretor trabalha sua sensação com o luto, com a doença da mãe, com a irresponsabilidade do irmão, com a vida desmoronando e com sua zoeira dando mais certo que a seriedade, como ele se sente perante a tudo isso acontecendo, é pesado, mas natural, o sentimento passado é genuíno, tem uma sensibilidade que você esquece que existe nas partes cômicas de tão diretas que elas são.
Mas, há algo que eu sinto que a inexperiência pesou, que foi na criação da dualidade entre o Monk e a escritora Sintara (Issa Rae), que escreveu um romance extremamente estereotipado sobre a cultura negra, usando linguagem coloquial do gueto e considerando sua obra como "a definição de seu povo". Acontece que essa rivalidade que poderia ter sido criada acaba sendo só mais algo dentro do longa que poderia ter tido muito mais que apenas um diálogo direto, pois seria interessante ver o debate mais intensamente entre o autor cansado dessa representação e a autora que contribui para esta visão que as pessoas têm. No entanto, a conversa entre eles, apesar de breve, traz esse ponto interessante, da mulher criticar o livro que ele escreveu com pseudônimo por soar sem alma e batido, mas ao mesmo tempo ser autora de um best-seller na mesma linha. Esse incomodo que o povo tem em relação a cultura negra já começa sendo bem mostrado na primeira cena do longa, onde Monk está lecionando numa faculdade e uma aluna branca de cabelo colorido (tinha que ser) se incomoda com um termo racista no título do livro que eles estão estudando sobre, porém Monk, que é um homem negro diz: "se até eu superei, porque você não pode", e isso resume bem a vida real, tem várias situações de brincadeiras e zoeiras que as pessoas fazem com os amigos que se forem mal interpretadas pode causar uma confusão com alguém que você nem conhece, vários humoristas passam por isso hoje em dia, por exemplo. Óbvio que tem piadas ofensivas, de mau gosto e tudo mais, não tem essa exclusão, mas é aquela questão, nem tudo precisa ser levado tão à sério.
O grande destaque acaba sendo o elenco de altíssima qualidade, principalmente Jeffrey Wright, que comanda o longa com uma excelência poucas vezes vista nessa temporada. Wright traz bem esse cara meio frustrado, rabugento, realmente de mal com a vida, ele tem lapsos de felicidade, mas na maioria do tempo ele é desse jeito extremamente grosso, rabugento, cansado, ele aparenta muito bem estar de saco cheio e é muito bom, até porque é isso que traz tanto o lado dramático quanto cômico do longa, as cenas mais engraçadas são causadas pelo seu cansaço e ignorância, as cenas dramáticas por ser essa linha de pensamento sendo quebrada e vendo ele tendo um sentimental que aparentava ter sumido em meio à sua vivência decepcionante. Outro que manda bem é o Sterling K. Brown, que faz o irmão do Monk, que é um cirurgião plástico com crise de meia idade que finalmente se assumiu gay e agora vive com novinhos mesmo tendo cinquenta anos na cara. Ele está indicado ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante, honestamente não é um dos grandes coadjuvantes da temporada comparado a outros esnobados, como Dominic Sessa e Charles Melton, mas ele se destaca, certamente. É muito carisma, ele tem uma grande participação cômica que funciona justamente pela quebra de expectativa, toda vez que ele parece estar sendo minimamente sério ele vai falar alguma coisa absurda, até que chega o momento que ele finalmente tem um diálogo sério e com certeza vai ser a cena que vai passar na cerimônia. Ele merecia mais tempo de tela, aí sim justificaria melhor sua nomeação, mas é excelente de qualquer forma.
Uma grata surpresa, "Ficção Americana" traz uma crítica bem interessante e válida, porque inicialmente aparentava ser uma crítica social f0da em relação ao racismo estrutural, a visão estereotipada dos negros na cultura pop, mas acaba que é mais que isso, faz um ponto interessante sobre a apelação de certos conteúdos (infelizmente não deu tempo para falar sobre o Adam Brody interpretando um diretor descrito como "especialista em Oscar Bait"), à cultura de massa e como as pessoas consumem qualquer porcaria para se enturmar (conhecida como FOMO = fear of missing out, traduzido como "medo de ficar de fora"), e como nem tudo é preto no branco, tem a área cinzenta entre os dois. Uma excelente estreia de Cord Jefferson na direção, que conta com um elenco excelente que eleva o nível da obra, especialmente Jeffrey Wright e Sterling K. Brown. Honestamente, tinha a impressão de ser um filme mais fraco dentro desse Oscar, mas me surpreendeu positivamente, gostei muito de assistir, é bem divertido, engraçado, tem um fator replay e está definitivamente recomendado.
Nota - 8,0/10