Crítica - A Vida de Chuck (The Life of Chuck, 2025)
Mike Flanagan saindo da zona de conforto.
Mike Flanagan é um diretor que eu não cubri muito aqui na página, até porque recentemente ele foi para o lado mais da televisão, das séries e acabou que eu nunca vi nenhuma das que ele produziu. No entanto, já vi alguns filmes dele, eu gosto de "Jogo Perigoso" (2017), mas não acho grandes coisas, porém gosto bastante de "Doutor Sono" (2019), gosto tanto quanto (na realidade, mais do que) a versão do Stanley Kubrick de "O Iluminado" (1980), inclusive. Flanagan é muito conhecido por sua obra no terror, bastante elogiado com a trilogia de séries limitadas que ele fez para a Netflix, com a "A Maldição da Residência Hill", "A Maldição da Mansão Bly" e "A Queda da Casa Usher", além de "Missa da Meia-Noite", que também é bastante aclamada. Agora, Flanagan decide sair um pouco da sua zona de conforto e nos apresentar a vida de Chuck Krantz, o que poderia dar errado por sair da sua praia e ir para outro lado, porém, começou dando certo ao vencer o People's Choice Award, o prêmio principal do Festival de Toronto, em 2024. Acabou sendo um pouco segurado pela distribuidora, pulou o circuito da temporada passada e acaba caindo aqui na temporada de 2025 com seu amplo lançamento.
Baseado no conto homônimo de Stephen King, incluído na coleção "If It Bleeds", acompanhamos uma história que começa no possível fim do mundo, onde a internet caiu e não volta, terremotos catastróficos, enchentes, erupções vulcânicas, incêndios florestais e extinções de espécies e diversos acontecimentos sociopolíticos e científicos, além de diversos acontecimentos sobrenaturais que nem a ciência não consegue explicar. o mundo todo está um caos e à beira de um colapso. Nesse cenário, começamos vendo Marty (Chiwetel Ejiofor), um professor de colegial, que começa a ver o rosto de Charles Krantz (Tom Hiddleston), conhecido como Chuck, um pacato contador, em todos os lugares, e nisso, de forma contrária, vamos conhecendo a vida de Chuck, desde seus momentos mais recentes, sua infância e sua adolescência, e também vamos descobrir o porquê de sua morte estar diretamente correlacionada com o fim do mundo.
Pode se dizer que o Mike Flanagan é meio que um Stephen King por ele mesmo, tipo, ele ficou conhecido pelo terror, é o que lhe deu fama, mas ele também tem um lado mais sentimental que pode contar histórias que fogem desse padrão do horror, do sobrenatural. King, como sabemos, é responsável por histórias como "Conta Comigo" ou "À Espera de um Milagre", que até que tem algo ali mais lúdico envolvido, o que é parecido com que Flanagan faz, afinal não é a primeira coisa do King que o diretor adapta e também não será a última, "Carrie" está vindo aí, mas não é apenas esta a semelhança. Flanagan foge da zona do conforto para provar que ele não é apenas isto, que ele não é só "o cara do terror", e ele consegue de forma exímia, já que a história que ele conta aqui é uma história que aparenta não ter nada demais, mas a maneira que ele faz com que seja algo grandioso, é sensacional. Ao mesmo tempo é um filme de fim do mundo, um coming-of-age, um filme de dança e uma mensagem sobre vida e morte, e acho que isso é brilhante.
Acho que temos que olhar isso aqui com um pequeno asterisco de que é uma história do Stephen King, então fala muito sobre o autor, afinal, por que o mundo estaria acabando junto com Chuck? Por que ele é tão importante? Bem, não é que o mundo esteja acabando por conta do Chuck, mas sim o Chuck que está morrendo e o mundo acaba desmoronando em sua volta na visão dele. O mundo continua, mas Chuck se vai. No filme, é dito (pelo Salsicha, inclusive), que tudo foi pelo ralo nos últimos quatorze meses, onde foi, mais ou menos, onde Chuck teve a doença desenvolvida em seu corpo, tanto que acompanhamos pessoas que ele esteve presente na vida delas, de alguma forma, nem que seja a mínima possível. Por exemplo, Marty, personagem do Chiwetel Ejiofor, que é o protagonista inicial, ele era um professor na escola de Chuck, onde a única interação entre os dois foi um "parabéns" de Marty para o protagonista. Ou Sam (Carl Lumbly), personagem que aparece no início, lançando pedradas em forma de diálogo, que na realidade descobrimos que era o dono da funerária responsável pelos cuidados da morte do avô do personagem-título, e que repete certas falas do mesmo. Acaba que esse apocalipse, é um enfrentamento enquanto a morte, a aceitação de que o fim existe, até mesmo no diálogo com o Salsicha é falado, a taxa de suicídios diminuiu pois eles viveram os estágios do luto, e agora chegam ao último: a aceitação. Por isso que é algo tão pessoal do Stephen King, ele é muito velho, está enfrentando esse processo de estar mais perto da morte, mas a adaptação do Flanagan consegue trazer essa mensagem magistralmente.
É muito interessante como as conexões da história vão se relacionando, acho um acerto contar a trama dessa forma não-linear, geralmente eu acho isso indiferente, mas aqui é um ponto positivo, pois começar pelo final mostrando a conexão de Chuck com o mundo à sua volta é muito bom, mostrando seu fim com certos fins, tendo até coisas mais sobrenaturais, como todos os monitores da cidade estarem mostrando os seus batimentos cardíacos e minutos antes dele morrer, começar a vê-lo projetado em todas as casas pela região (demonstrando o autocentrismo e que esse fim do mundo não é, de fato, o fim do mundo como um todo). Esse lado sobrenatural é muito bem feito, pois instiga o espectador e cria uma curiosidade para como a obra virá a ser a partir daquele ponto. O segundo ato mostra um dia na vida adulta de Chuck, onde vemos um dia no qual ele decidiu ajudar uma artista de rua com sua performance e acabou criando um momento inesquecível na vida dele, da artista, e de uma menina aleatória que ele chama para dançar. Após isso, vamos de fato para a vida de Chuck, desde sua infância até a morte de seu avô na adolescência, que é onde o longa brilha. Não me levem a mal, a parte sobrenatural do fim do mundo é muito bem feita, mas onde o filme pega é nesse início/final, onde vemos a parte mais sentimental e humana dessa história.
A maneira na qual Flanagan conta essa história é muito singela, é bem bacana como ele vai nos mostrando o jovem Chuck, pelo o que ele passou, traumas desde cedo, como a morte de seus pais e sua irmã (ainda na barriga da mãe) em um trágico acidente e como ele viu o sofrimento dos avós com tudo isso por um certo tempo, mas como ele também viu em seus avós uma força para a sua vida, a relação dele com eles é belíssima. A relação dele com a vó, interpretada pela Mia Sara, que desenvolve nele a paixão pela dança e o ato de dançar, é excelente, uma das minhas favoritas do longa, como disse, é contado de forma singela, não tem como não se compadecer com aquilo. A mesma coisa que tem com o avô, interpretado pelo Mark Hamill, onde é uma relação mais pé no chão, até porque tem mais tempo de tela, mas também tem seu lado lúdico, que é no melhor diálogo do filme, onde ele explica o porquê da matemática ser uma arte e porque ela jamais vai mentir para ele, dizendo que tudo é matemática, que já era um diálogo muito bom do Carl Lumbly na parte inicial (ou final) do filme, e aqui, quando você entende a origem dessa fala, é muito bonito, é muito bem feito, põe um sorriso no rosto.
É tudo algo muito identificável, você torna-se empático pelo Chuck, porque as experiências dele são muito cativantes, soa tudo lúdico, mas tudo tão real ao mesmo tempo. Desde casa, as histórias do avô, as danças da avó, até a escola, a primeira paixão, o primeiro baile, as descobertas da vida. Ainda tem o mistério sobrenatural, Flanagan não abandona isso, que é o tal do porão, qual é o segredo do porão, e quando vem a última cena, que revela esse segredo obscuro, você começa a relembrar o filme, e tudo começa a fazer tanto sentido, começa a melhorar tanto, que você fica com um sorriso no rosto, pois a mensagem ali passada é impactante e entra num dilema muito interessante sobre vida e morte. Existe um fator replay aqui, onde acho que ver duas vezes faz bem para sua relação com a obra, já que ela é uma quando você pega para ver desprevenido, sem conhecimento nenhum do que está por vir (tipo eu, eu só sabia que havia ganhado Toronto ano passado e que era baseado numa obra do SK, de resto eu não tinha noção do que me esperava), mas na segunda vez, deve até melhorar, pois descobrindo o lugar de tudo, como tudo se encaixa, como tudo é bem planejado, bem dirigido, deve ser sensacional. Não falo com tanta propriedade, afinal, vi só uma vez, o filme acabou aqui há pouco mais de uma hora, ainda estou com ele vivo na cabeça, mas essa vida dele deve ficar mais longa depois de uma revisita, porque torna-se especial em um certo momento.
E uma das coisas que mais funciona é a direção de elenco, todo o elenco é muito bem escolhido e o Flanagan conduz todos muito bem para o melhor funcionamento da história. Apesar do Tom Hiddleston ser o personagem-título e estar em todo marketing do longa, ele aparece, de fato, em poucas cenas, o Chuck acaba sendo mais representado por diferentes atores, são quatro, mas o com mais destaque é o Benjamin Pajak, que o interpreta na faixa dos 11/12 anos, que é um destaque, é uma excelente atuação, eu gosto de como esse guri carrega o longa por um determinado tempo, a interpretação dele multifacetada do personagem, que faz com que a aproximação seja criada, é impossível não se compadecer por ele ali em diversas situações. O Tom Hiddleston também manda muito bem quando aparece, ele tem um momento ali para brilhar, onde ele manda muito bem, ele consegue trazer na forma adulta de Chuck as vivências dele de infância (e é por isso que eu acho que existe aqui um fator replay, porque ele aparece antes da história de infância dele começar, deve ser outra parada ver ele adulto após já saber o que aconteceu antes e como isso se encaixa), e ele é carismático, ele conquista. Também tem o Jacob Tremblay fazendo ele com 15 anos, mas também é pouquíssimo tempo de tela, difícil de julgar, mas honestamente, ele era um ator melhor quando criança, ele adolescente atuando é meio desengonçado, é meio esquisito, mas não atrapalha não, ele é competente. Acho que a sintonia entre os atores também é ótima, e é aí que entra a mão de Flanagan, onde ele consegue dar a todos eles a mesma vibe, faz parecer mesmo que são a mesma pessoa, o que é um pequeno acerto dentre vários dele nesse quesito do elenco.
Outros atores que estão ótimos no filme são: o Mark Hamill, como o avô do Chuck, que tem ótimas cenas, ele sempre manda muito bem quando aparece, ele também só lança pedrada em formato de diálogo, e aparentemente ele é um cara muito tranquilo, um avô bem amoroso, mas ele também entrega momentos onde está assustado, com raiva, cansado, interessado, e tem vezes onde ele precisa alterar essas emoções de forma drástica, só que ele consegue fazer isso soar muito natural e acaba mesmo impactando. O Chiwetel Ejiofor é muito bom, ele é o protagonista por uma boa porcentagem do longa, a gente acompanha a vida dele por um certo tempo, e ele consegue prender a atenção, já que ele está vendo tudo aquilo acontecendo no mundo, mas ele só quer ignorar, só quer seguir em frente e trabalhar enquanto ainda pode, ele busca o escapismo, mas acaba que até o escapismo dele é prejudicado pela vida de Chuck em um certo ponto. A Karen Gillan faz a ex-esposa do Marty, ela também é ótima aqui, não tem muito o que falar da personagem dela, mas ela em si está muito bem no pouco que aparece. Tem uma ruivinha que dança com o Chuck adulto na rua, a Annalise Basso, essa menina rouba a cena quando aparece, porque ela faz um arquétipo de pessoa que todos nós já convivemos perto: a que não aceita um término, e ela manda bem, ela deveria ter mais tempo de tela, porque ela tem uns momentos bem legais. E tem a Mia Sara, vulgo namoradinha do Ferris Bueller, agora bem mais velha já, fazendo a avó do Chuck, e a participação dela é bem bacana, passa um sentimento nostálgico bem legal, ela é bem carismática.
No final, "A Vida de Chuck" é um filme que sim, merece a aclamação que teve lá em Toronto, aparentemente não está tendo tão fora assim agora que foi lançado de forma ampla, as pessoas não estão vendo o filme por algum motivo. No Brasil estão, porque acabou de ser lançado no cinema, então o pessoal está indo ver, mas tem muito pouco logs no Letterboxd, sequer está entre os populares da semana mesmo sendo um filme do Mike Flanagan, o que, honestamente me assusta, porque é um daqueles que realmente merece ser visto, já que foge totalmente da expectativa e torna-se algo quase renovador para o espectador, é um daqueles filmes que parece que dá um abraço na sua alma. Ele começa sendo um ótimo filme de fim do mundo, depois vira um filme de dança/comédia bem bacana, e termina sendo um excelente coming-of-age, são praticamente três filmes dentro de um só, numa mesma linha narrativa, contada de forma reversa, mas que funciona muito bem. Como eu disse, eu não costumo elogiar estrutura narrativa não-linear, pois para mim geralmente é indiferente, mas aqui é um dos grandes acertos de Mike Flanagan, pois é essa estrutura que causa o maior impacto depois. Um excelente elenco, uma coordenação de casting absurda, onde não há um grande destaque, alguém que fique maior que a história, mas a sintonia dos atores e a maneira na qual eles cumprem seu papel na narrativa é excelente, além de uma ótima provação de Flanagan, onde sai de seu norte e nos dá uma ótima história em um dos melhores filmes do ano até o momento, é mesmo que eu avaliasse como filme de 2024, seria um dos melhores filmes de 2024 também.
Nota - 8,5/10