Crítica - O Agente Secreto (2025)

E vem mais Oscar para o Brasil.

O final do ano de 2024 e o início desse ano de 2025 foram uma loucura para o cinema brasileiro, devida ascensão de "Ainda Estou Aqui" (2024), um filme espetacular, sensacional, maravilhoso, do Walter Salles, que simplesmente conseguiu levar o cinema brasileiro ao topo do mundo depois de muito tempo, pelo menos dez anos que uma produção daqui não atingia tamanho sucesso internacional (apesar de ter tido excelentes obras nesse meio tempo, sucesso internacional mesmo nenhuma obteve), só que sucesso para o que foi "Ainda Estou Aqui" é pouco, já que ganhou Melhor Roteiro em Veneza, depois teve uma campanha excelente para as premiações televisionadas, foi galgando suas indicações de Melhor Filme Estrangeiro no Globo de Ouro, no Critics' Choice, no BAFTA, Fernanda Torres venceu o Globo de Ouro de Melhor Atriz em Drama, o filme ficou bem maior após isso, pegou três indicações gigantescas ao Oscar: Melhor Filme Internacional, Melhor Atriz e Melhor Filme, batendo campeão na categoria Internacional. Era de se esperar que isso fosse para dois caminhos: ser uma exceção e ter que esperar pelo menos mais dez anos por um novo fenômeno, ou o início de uma nova visibilidade internacional quanto à indústria brasileira de cinema, e não demorou nem alguns meses. Em Cannes, esse ano, este filme conquistou dois prêmios, um feito raro na premiação do festival, com Kléber Mendonça Filho ganhando Direção e Wagner Moura vencendo ator. Amigos, aproveitem enquanto está durando, agradeçam por estarem vivos enquanto isso está acontecendo, porque o Brasil está de volta, já que esse também terá indicações ao Oscar, não creio que vá vencer algum, mas só de conseguir a indicação dois anos consecutivos já estou maluco (nem conseguiu ainda e eu já estou).

Armando (Wagner Moura) era um professor universitário e pesquisador durante a Ditadura Militar no Brasil, que tornou-se um refugiado político após um desentendimento com o Dr. Ghirotti (Luciano Chirolli), que assumiu controle da Universidade em que trabalhava e desagradou nosso protagonista. Este que também sofre com a perda da esposa, Fátima (Alice Carvalho), que faleceu devido a uma pneumonia, e que quer criar seu filho, mas devido a seus problemas, não pode, e o deixa aos cuidados dos sogros. Com isso, Armando, agora sob alcunha de Marcelo, entra para a lista da polícia federal e é caçado por todo o Brasil, com Ghirotti até mesmo contratando os matadores de aluguel Augusto (Roney Villela) e Bobbi (Gabriel Leone) para matá-lo. O agora Marcelo precisa se refugiar e achar uma maneira de escapar do Brasil para dar uma vida digna ao seu filho, mas precisa lidar com suas próprias questões antes de poder viver sua vida novamente. Olha, vou ser honesto e dizer que é bem menos político do que eu pensava que seria, na realidade a parte política é apenas um pano de fundo por aqui. Claro, está no cerne da narrativa, já que Armando é caçado por supostamente ser um comunista, mas não passa muito disso, quase não tem participação ativa das autoridades, apesar de um dos coadjuvantes ser um delegado de polícia, acaba que não impacta tanto na história. Venderam o filme como uma obra sobre ditadura e tudo mais, contudo, não passa muito da camada mais superficial, não vai tão fundo no assunto, e de certa forma é até benéfico, já que o KMF está mais interessado em ter algo mais puxado para a imersão um pouco mais descontraída do que para o choque, o peso, é um filme divertido, inclusive.

Kléber tem uma direção muito consistente, ele conduz o filme de uma maneira muito sólida e cria uma obra que fica agradável de assistir. Ele sabe bem como intercalar as etapas de cada cena, como criar a tensão, os momentos de desenvolver a história, os personagens, o timing dele é muito bom para encaixar tudo isso dentro da narrativa. Eu gosto de como ele vai moldando aos poucos cada aspecto da história, sobre quem é o protagonista, ou quem ele era, o que ele faz ou fazia, o que ele passou ou passa, ele apresenta o personagem principal quase como se fossem duas versões dele mesmo (acaba que, na prática, é mesmo, apesar de você não denotar tanta diferença entre as personalidades de Armando sendo ele mesmo e sendo o Marcelo, no final acaba que não são o mesmo, mas são ao mesmo tempo). Ele vai construindo o protagonista aos poucos, mostrando o que ele tem de fazer, o ponto que ele está, e encima disso, vai construindo como ele chegou até ali de um jeito bastante interessante, construindo com flashbacks, com diversos diálogos, criando essa narrativa que é envolvente e aos poucos fica cada vez mais imersiva, você vai entrando mais a cada segundo nessa trama que está sendo costurada, cada informação nova intriga, cada migalha que é colocada ali te obriga a pensar na maneira que se encaixa na história. Existe essa estruturação que acaba dando certo na maior parte do tempo.

Gosto muito da estrutura que o Kléber traz, como se fosse mesmo um filme dos anos 70, o jeito que ele filma, a montagem, o uso de transições que saíram diretamente do MovieMaker, é algo que funciona. Ele capta bem a vibe de um filme daquela época, seja do cinema brasileiro, tem influências muito claras da Nova Hollywood, inclusive com "Tubarão" (1975) sendo uma parte importante da trama no que se diz respeito à relação de pai e filho envolvendo o protagonista. Como disse no parágrafo anterior, o jeito que a história é contada e encaixada nessa narrativa é muito boa, pois introduz bem o protagonista, o objetivo, o que levou ele a estar nessa situação, e é uma das histórias mais Nova Hollywood possíveis, só que trazida para o contexto do Brasil, com o refugiado que está sendo caçado por assassinos de aluguel, contratados por um engravatado maligno. A maneira na qual é construída essa fuga, essa motivação, essa caça ao Armando, é toda muito interessante, muito bem construída e muito bem amarrada, é um filme que impacta sem precisar exagerar muito ou sem a necessidade de ser grandioso, nos momentos mais sutis é onde o KMF demonstra o domínio da obra, construindo o impacto através de simples imagens ou sons.

Agora, não acho que o Kléber acerte totalmente aqui, já que, na minha visão, existem problemas de ritmo na primeira hora de filme. Acho que começa bem, apresentando o personagem, as motivações, o núcleo de coadjuvantes, criando um mistério sobre o que é aquilo tudo, situando a época em que o Brasil estava, mostrando diversas vezes o abuso e a negligência das autoridades. Amarra muito bem tudo nesse início, consegue deixar claro todas as motivações, todas as ambições que tem o Armando, a relação dele com os sogros, com o filho, a fuga que ele vai precisar fazer, mas depois disso, acho que cria uma pequena barriguinha ali, onde fica um pouco chatinho de assistir, eu pelo menos fiquei um pouco sonolento ali, não vou mentir. Toda aquela parte dele indo trabalhar, aí tem um delegado meio vagabundo lá, que é a conexão entre a história dele e a dos bandidos que o caçam, mas ainda sim acho que é uma parte que deveria ter sido um pouco mais achatada, o filme começa a se recuperar ali mais para a cena em que Armando é entrevistado, ali eu considero que o filme voltou aos trilhos e depois engatou legal. Outra coisa que não curti foi essa subplot da perna engolida pelo tubarão, porque eu entendi que era um negócio envolvendo a questão dos mortos pela ditadura, contexto histórico, metafórico também, mas pô, tem todo um destaque, ao longo do filme, para no final virar uma esquete, apresenta toda uma tensão, todo um drama, que no final não gera nada, eu entendi a intenção, mas a execução não me agradou. Outra ideia boa, mas que não gostei tanto da execução foi essa do filme ser contado através de fitas que estão sendo ouvidas nos dias atuais, essa ideia é muito boa, mas toda vez que corta para essas minas escutando as fitas, essas duas atrizes parecem duas aleatórias que o Kléber catou no meio da rua e colocou para ler um texto, se alguma de vocês ler o texto, não se ofendam, mas eu não curti muito a entrega de vocês.

O desenvolvimento do protagonista é um dos quesitos que mais me agradou por aqui, já que é tudo bem amarrado e vai sendo construído aos poucos tudo o que ele passou, o que ele faz e o que ele precisa fazer. Lentamente, o Kléber vai costurando a história dele, mostrando o ponto que ele está e voltando ao passado com flashbacks que mostram como ele era antes, o emprego que ele tinha, a família que ele tinha, e como tudo foi desmoronando com a perda da esposa, com ele ter que deixar o filho e com a caça que ele sofre. E aqui, eu acho que talvez o Wagner Moura venha como um candidato fortíssimo ao Oscar de Melhor Ator, pois é uma atuação daqueles em que chega a um ponto que você não vê mais o ator, apenas o personagem, e foi isso, porque teve um momento em que a imersão da obra me consumiu tanto que eu esqueci que era o Wagner Moura atuando, eu via o Armando, ele passa tanta verdade naquilo que ele traz, é uma performance muito calma, ele tem um controle desse personagem que não pode chamar atenção, tem que ser mais contido, e quando mostra ele no passado dá para enxergar a diferença entre essas duas versões dele, onde um era mais alegre, tinha algo para fazê-lo sorrir, tinha um emprego, uma família, e quando vai para o presente da história, ele não tem mais nada além de uma pequena esperança de pegar o filho dele e fugir para não ser morto pela PF. Nessa do personagem se segurar, chega uma hora que precisa de uma explosão para se libertar um pouco disso, e acaba vindo numa cena de pesadelo que é muito bem dirigida e a atuação do Wagner Moura ali causa um espanto, é quase como se ele quisesse acordar desse sonho ruim, mas o sonho ruim é a própria vida dele naquele momento. Aqui vai um pequeno spoiler, fica o aviso, mas é só para complementar, que no epílogo, Wagner interpreta o filho de Armando adulto, e é bizarro como é diferente, como ele faz parecer que é outra pessoa, os trejeitos são diferentes, o tom de voz, é realmente uma performance de alto nível, uma das melhores da carreira do Wagner Moura.

O elenco todo é muito bom, acho que não existe nenhum coadjuvante que tenha um destaque grande, mas todos os coadjuvantes acabam influenciando a trama a andar para a frente. Existem os dois matadores de aluguel contratados para matar o Armando, um que é interpretado pelo Gabriel Leone e o outro pelo Roney Villela, e esses dois não tem muito destaque (em comparação à duração do longa), mas o que tem é o suficiente para trazer a ameaça de que são eles que trazem o principal risco ao nosso protagonista, além de que influenciam diretamente num clímax que parece realmente sair de um filme de espionagem, que para mim foi a melhor parte do filme e conseguiu dar um encerramento muito empolgante, diferente do que eu estava esperando. O próprio vilão, que é o tal do Dr. Ghirotti (até o nome é nome de vilão de filme de espionagem), ele aparece pouquíssimo, tem apenas três cenas de destaque, mas nestas três cenas já é o suficiente para conseguir criar uma antipatia por ele, já que ele é grosso, é elitista, é realmente alguém desagradável de se interagir, ele tem um ar de sentir superioridade muito grande, bastante mérito do ator Luciano Chirolli, que consegue trazer isso com veemência para o personagem.

Kléber recheia o longa de atores que só tem uma cena, mas nestas dão um show de atuação. Um dos exemplos é a Alice Carvalho, que faz a esposa do Armando, que só aparece de fato em uma cena de flashback, mas só nessa cena ela já arrebenta, é uma atuação que exige um pouco mais, e ela manda muito bem. Tem o Udo Kier no filme também, do completo nada ele aparece como um judeu alemão que os caras ficam dizendo que era soldado da Alemanha nazista, no final não muda muito a participação dele na narrativa como um todo, mas naquela cena ele manda muito bem. KMF também cria os personagens mais gente boa do cinema em 2025, uma delas é Dona Sebastiana, uma velhinha do barulho interpretada pela Tânia Maria, que tem boas cenas, bons momentos, ela age quase como uma mentora, quase como um Charles Xavier dos refugiados da ditadura, que reúne essa galera e age como uma avó para aquele grupo, e não tem como não gostar dela, é o tipo de velha simpática que todo mundo gosta. Outro deles é Seu Alexandre, sogro de Armando, vulgo o cara mais gente fina da face da Terra, que inclusive, eu não percebi enquanto assistia o filme, mas meu grande amigo e cineasta Rodolfo Luiz Vieira me falou depois que é o mesmo projecionista de "Retratos Fantasmas" (2023), e que esse filme tem uma subtrama que basicamente é o Klebão fazendo uma fanfic do documentário dele e, particularmente, achei essa uma ideia muito bacana, amarrar essas duas obras como parte da obra geral dele. É legal que até aqui o KMF dá um jeito de fazer uma mensagem sobre cinema, sobre o poder da arte, com toda essa questão de "Tubarãoser uma parte importante da trama, acaba que no final ele consegue ainda enfiar um pouco dessa mensagem. Ainda dá para interpretar como se ele estivesse dizendo que dá para usar a arte como forma de escapismo em momentos sombrios, como Seu Alexandre trabalhava no cinema e passava filmes para o povo esquecer por duas horas que estavam vivendo em uma ditadura.

Gostei bastante do filme, creio ser um candidato digno do Brasil ao Oscar 2026, é um filme realmente brasileiro, tem personagens de todo o lugar, tem não só os pernambucanos, como tem paulistas, cariocas, cearenses, gaúchos, mineiros, até mesmo imigrantes, que o Brasil é lotado, achei legal essa mescla cultural que faz parte do nosso cotidiano. Acho que sim, vamos pegar essa indicação dois anos seguidos, prêmio acho que já está quase ganho pelo filme da Noruega, não é 100%, mas dá para pôr ali uns 85%, e torcendo que nesses 15% restantes talvez dê para abocanhar essa estatueta ali. Creio que não só para filme internacional, mas acredito que haja forças para indicação para Melhor Filme, Ator, Direção e Roteiro Original, com Ator para mim sendo praticamente garantida a nomeação, visto o tamanho do nome do Wagner em Hollywood e creio que ele bata frente a frente em apelo com Leonardo DiCaprio e Timothée Chalamet pelo prêmio. Mas, enfim, não tem muito mais nada a ser dito sobre "O Agente Secreto", ou melhor, ter até tem, mas eu não sou capaz de falar mais. Confesso que queria ter gostado um pouco mais, mas ainda sim saí totalmente satisfeito da sala do cinema, é um filmaço sem dúvidas, muito bem feito, envolvente, tem uma imersão muito boa ali do meio para a frente e tem essa atuação absurda do Wagner Moura, que é uma das melhores da carreira dele, onde é mais contida que um Capitão Nascimento, mas que passa mais verdade e mais emoção. Acho que tem problemas, não achei essa última bolacha do pacote, mas com certeza é um dos melhores do ano até agora, vale bastante a pena ver no cinema, é uma experiência bastante agradável.

Nota - 8,0/10

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