Crítica - Aftersun (2022)
Sutil, natural e duro quando necessário, assim como a criação de um filho.
A retratação da paternidade/maternidade solitária não é novidade no cinema, todo ano pelo menos tem um filme que fala sobre isso que faz algum sucesso. Quando você já tem esse estilo de história sendo utilizado milhões e milhões de vezes e daí surge mais um falando sobre o assunto, dá uma preguiça natural de assistir por ser batido, mas o que diferencia é a maneira na qual a trama é contada. Confesso que eu não ia assistir, não estava nos meus planos de filmes do ano, justamente por isso, achei que ia ser mais uma historinha de pai e filho contada várias vezes (e por ser desse câncer da cinefilia nomeado A24), mas me deparei com um drama incrível, sútil e natural, que entrega um dos filmes mais tocantes e belos de 2022 em vários sentidos, pois a clássica situação é mostrada de uma forma real, dura, divertida, especial e bastante madura, essa última sendo a mais surpreendente por ser a grande estreia na direção de Charlotte Wells em um longa e é difícil alguém trazer tamanha personalidade e prudência logo em seu primeiro trabalho.
Aqui, vemos a história de Sophie (Frankie Corio), que está de férias com seu pai Calum (Paul Mescal) na Turquia antes de voltar às aulas, em uma obra situada na década de 1990. Até aí tudo bem, comum, mas o que fez a tamanha diferença para essa repercussão e adoração tamanha? Justamente a maneira em que Charlotte decide contar. Vemos na montagem a alternância entre cenas gravadas comumente e outras sendo gravações feitas pelos personagens dentro do próprio filme. Temos uma divisão de protagonismo (que puxa bem mais para o lado da Sophie, chega até um ponto em que Mescal vira um coadjuvante dela) e ela consegue explorar tanto a menina que é a criança que está tentando se encaixar, já que ela está na idade que não se encaixa mais em grupos de criancinhas e nem no grupo de adolescentes que só pensam em sexo, enquanto o lado do pai mostra um homem jovem que tenta aparentar estar bem, fazendo umas loucuras, dançando do nada, mas combate demônios de ter tido uma infância negligenciada pelos pais, um emprego fracassado, um divórcio que é implícito que foi contra a vontade dele e essa máscara que esconde a dor. Wells demonstra um controle absurdo, ela acerta em coisas que muitos diretores experientes erram, especialmente na dosagem da vibe que acompanhamos: tem a parte dramática que acaba por ser o grande destaque, tem a parte da diversão entre pai e filha, tem a parte de descoberta do mundo da nossa personagem principal. É um domínio verdadeiramente impressionante, trazendo um lado bastante pessoal e sublime sobre uma infância e uma relação paterna.
O que mais se destaca é a direção de Wells sobre os atores e o desenvolvimento de seus personagens, onde ela conduz Corio e Mescal em atuações sutis, reais e surpreendentes desses dois. A relação entre eles em si é muito bonitinha, é uma relação é que, nas interações, o pai é aquele extrovertido, excêntrico, divertidão quando tá perto dela, tentando dar para ela uma visão do mundo, querendo ensinar ela sobre as coisas boas e os perigos da sociedade, dizendo para ela ter cuidado com as coisas, mas dando uma liberdade e sempre tentando puxá-la para as coisas que ele gosta, como a dança, a sinuca e as artes marciais. Enquanto isso vemos a garota descobrindo o mundo, na fase de transição da infância para a pré-adolescência, tem várias cenas dela observando a juventude, interagindo com alguns amigos adolescentes que ela acaba fazendo na viagem, ela tá descobrindo o que é o amor, o que é a vida adulta no geral e tem até interações dela com um garotinho com qual ela perde o BV e essa jornada dela é bem legal, é bem fácil de se conectar com a história daquela garotinha.
As atuações são o grande ponto alto. A Frankie Corio é sensacional nessa jornada de descobrimento do mundo real, pensando como ela se encaixará futuramente na sociedade, ela fala o clássico das crianças do tipo "eu nunca vou beijar, é nojento", "eu nunca vou beber" e coisas do tipo que a gente sempre pensa quando é inocente e atriz é um espetáculo, ela tem muito carisma, ela traz perfeitamente essa ingenuidade e perdendo ela os pouquinhos e ela é realmente muito cativante, muito legal, ela é bastante talentosa e ela combinaria com muitos papéis em adaptações para blockbusters, que ela consiga mais trabalhos porque ela tem uma presença de tela sensacional. Enquanto o Paul Mescal, é o grande destaque geral, ele é excepcional, ele consegue entregar vertentes diferentes do mesmo personagem, entrega um cara que é um pai legal e bastante excêntrico e no fundo ele é triste e meio frustado consigo mesmo, a parte dramática na qual ele é desenvolvido é maravilhosa, tem várias cenas dele que provam o porquê da galera querer tanto a indicação dele ao Oscar, porque é de uma realidade inacreditável. Ainda tem a relação dele com cigarros, que ele entrega um cara que desconta sua frustração nisso, apelando para drogas, seja cigarro ou bebida. Só não entendi o tanto de cena dele sem camisa, é um número exagerado de cenas, mas ok, já vi coisas piores no cinema.
Também há várias metáforas bem legais que eu adoro, até porque são aquelas naturais que não tentam transformar o espectador num idiota. A principal metáfora é a recorrente sequência de Colum dançando sobre flashes e no final você descobre que o filme inteiro era a revisita da Sophie às memórias da viagem e essas cenas dele nessa "boate mental" era uma espécie da filha se encontrando espiritualmente com o pai, pois agora ela entende o que ele estava passando. Essa cena aí é perfeita, principalmente porque toca David Bowie com "Under Pressure" e a letra da música dá um sentido ambíguo para o que acontece depois daquilo, já que a canção acaba se misturando com a própria trama e gera uma cena que é emocionante por dois lados: o feliz e o triste. A trilha sonora desse filme é conquistadora no geral, além do Under Pressure (que é a música que eu mais escutei na vida com toda certeza, pelo menos segundo o Receiptify), mas tem também Macarena, tem R.E.M., tem Blur, tem a clássica Unchained Melody, é realmente uma seleção de músicas muito aleatória mas funciona porque são todas músicas muito marcantes e totalmente diferentes umas das outras, é por isso que funciona tão bem, porque a aleatoriedade na seleção lembra o meu Spotify, que vai do thrash metal dos anos 80 até o R&B black music dos anos 2000.
Sútil, "Aftersun" é um retrato sincero da relação entre pai e filha, em uma das histórias de maior fácil identificação do cinema em algum tempo, pois aqui você consegue tanto embarcar na jornada do pai quanto na da filha em dois momentos totalmente diferentes e opostos da vida. Uma estreia na direção de Charlotte Wells que é excepcionalmente madura, sublime e surpreendente, que demonstra um controle gigantesco sobre sua trama e seus atores de uma forma imponente ao mesmo tempo passiva. Paul Mescal e Frankie Corio entregam dois personagens muito legais em atuações divinas que são lindíssimas, e eles se completam de uma forma tão legal que é difícil acreditar que eles não são pai e filha de verdade. Realmente me surpreendi, é um filme bem bacana.
Nota - 7,5/10