Crítica - Os Banshees de Inisherin (The Banshees of Inisherin, 2022)

Uma dramédia ambiciosa sobre finitude.

O que é um banshee? Banshee é uma figura da mitologia irlandesa que é descrita como a versão mais obscura das fadas, que poderiam prever a morte, seu grito poderia ser ouvido a quilômetros de distância e poderiam estourar crânios, sendo consideradas "mensageiras da morte". São seres que conseguem pressentir as coisas ruins e essa correlação vem com o filme através do personagem Colm Doherty (Brendan Gleeson), que enxerga o fim da sua própria vida se aproximando, com isso ele decide encerrar sua amizade de longa data com Padráic Súilleabháin (Colin Farrell) e é aí que começa a história. Aqui há a reunião do trio que fez o excelente "Na Mira do Chefe" (2008), o diretor Martin McDonagh e os atores Colin Farrell e Brendan Gleeson, que lá funcionam muito bem, só que lá era uma comédia ácida de ação, aqui é uma dramédia e claro, tem seus tons cômicos, foi indicado ao Globo de Ouro e ao Critics Choice Awards nas categorias de Melhor Filme de Comédia, tem um humor cínico e meio doentio, mas no geral é a exploração dramática de vários assuntos que envolvem relações interpessoais, seja das mais saudáveis até as mais doentias.

Como eu disse, a história começa quando um dos personagens se questiona sobre a vida e percebe o quão fútil está sua rotina e aqui temos esses dois personagens um pouco opostos, pois Padráic é um cara de boa, que gosta de conversar, é mais excêntrico de certa forma, um pouco ingênuo, enquanto Colm é um artista, ele é frio, revisionista, com um quê de gênio, é alguém mais fechado. É uma dupla bastante inusitada como dá para ver (isso é até dito por um dos figurantes) e então a amizade é encerrada repentinamente, pois ColmSonnyLarry começa a se questionar se aquela amizade é saudável para a vida dele e o legado que ele deixará quando for de base e isso é uma questão bastante interessante de ser abordada, o fim da amizade masculina, porque poucas vezes isso é tratado, mas quando McDonagh escolhe esse assunto, ele dá uma aula em um filme sobre a finitude das coisas e que tudo uma hora pode acabar, assim como as banshees conseguem prever a morte. Tudo na vida acaba, inclusive a própria vida, e as vezes você pode estar desperdiçando seu tempo com "bobagens", seja ela uma longa amizade ou uma falta de emprego fixo, e é algo em que vale a pena pensar: "será que estou gastando meu tempo da maneira certa?" e é essa reflexão que torna uma experiência tão grandiosa para mim.

O McDonagh principalmente acerta no tom, pois majoritariamente é um drama e tem uma comédia, um tom de humor mais pesado e até meio doentio, com piadas ácidas que acrescentam na composição da história. Mas o principal para mim é a construção da tensão entre os dois personagens centrais, pois acompanhamos Padráic não entendendo o porquê da amizade ter acabado tão do nada, enquanto Colm só quer distância e até faz ameaças contra o ex-amigo. Essa tristeza de término acaba virando uma rivalidade e aí camadas acabam sendo acrescentadas, com as ameaças de Doherty se tornando realidade e a personalidade de Súilleabháin sendo mudada por isso. Eu fiquei extremamente imerso, a experiência é tão tensa quanto alguns filmes de terror em alguns certos pontos, pois eu tava tão dentro daquela história que eu ficava nervoso, ria, entristecia, esse é um dos que eu gostaria de ter visto no cinema, porque se já foi um mix de emoção enorme vendo em casa, imagina na telona, eu não senti o tempo passar em quase nenhum momento, quando pisquei já tinha passado uma hora de exibição e acabei achando o filme melhor do que pensei que seria, é um filmaço mesmo.

O que também acaba ajudando são as extraordinárias performances de Colin Farrell e Brendan Gleeson, onde ambos entregam as atuações de suas carreiras. O Colin está absurdo, ele teve um renascimento gigante em 2022 depois de uma sequência de filmes massacrados, primeiro ele faz o Pinguim em "Batman" que ele tá pirado e irreconhecível; "After Yang" e "Treze Vidas: O Resgate" que eu não vi, mas foram aclamados; agora aqui em um papel que eu acredito que ele possa ganhar o Oscar, se não é o favorito, ele é o runner-up e se ele não ganhar eu acho injusto, ele entrega tudo de si em uma atuação que ele demonstra no início uma certa ingenuidade, uma bondade até demais, e com o passar do filme ele vai evoluindo até deixar essa persona boba de lado e virar alguém que sabe se impôr e rebater seu rival. Tem várias cenas que ele se destaca, eu gosto muito de um monólogo dele lá no meio da trama e depois um na casa de Colm, e cara, é um trabalho tão absurdo que ele trabalha nas microexpressões a mudança do personagem aos poucos, indo do cara legal para quase uma persona vilanesca, nossa, é demais, que atuação arrepiante!

Brendan Gleeson também dá um show, ele é a síntese do que um bom personagem coadjuvante em um filme deveria ser, pois mesmo quando ele não está em tela, você sente a presença dele ali, principalmente se você tiver uma imersão tão grande quanto a minha, já que ele está por todo ar de Inisherin. Ele traz muito bem o que o personagem é e o que ele quer ser, ele apresenta Colm como um homem frio, artístico e que não quer ser reduzido a mais uma pessoa fútil quando morrer. Ele entrega muito bem isso, ele tem um ar até um pouco bad-ass de certa forma, até por uma retratação um pouco antagônica no início, mas ele é só um cara que quer paz e escrever suas sinfonias. Acho muito interessante como ele não quer cair no esquecimento, é uma pauta interessante a ser discutida, porque realmente poucas pessoas são lembradas depois de muitos e muitos anos, se eu te perguntar dez personalidades que foram verdadeiramente lembradas dos anos 50, não deve chegar a fechar a lista, mas os que vão estar provavelmente serão cantores, atores, diretores ou artistas de outras áreas. Colm é alguém que tem muito medo da finitude da vida, por isso ele decide encerrar a sua amizade teoricamente inútil para que sua alma e sua arte sempre reverberem pelo mundo após sua partida, igual o exemplo que ele dá sobre Mozart, esse filme se passa nos anos 1920 e lá é dito que Mozart não foi esquecido e hoje, praticamente 100 anos depois, ele ainda não foi, então você percebe o como a arte acaba sendo eterna.

Tem dois personagens coadjuvantes que ficam no meio da briga dos dois ajudando Padráic: sua irmã Siobhán (Kerry Condon) e seu amigo Dominic (Barry Keoghan). Siobhán é um papel muito interessante, porque ela complementa o que falta em razão na personalidade de seu irmão, ajudando o protagonista com o que está faltando tanto na sua racionalidade, ela ainda entrega uma atuação que combina demais com a história, pois é difícil imaginar a trama sem o peso que traz a participação dela, é uma baita atuação e a Kerry Condon é maravilhosa, é bonita, é carismática, ela entrega uma personagem que é bem mais emocional, que tem um equilíbrio com o resto dos personagens que são bem mais gelados, ela é estressada, irritada e manda muito bem, tomara que ganhe mais papéis. Enquanto Dominic é um personagem que é realmente um coadjuvante, ele fica como pano de fundo, mas ele funciona por ele ter um arco próprio, pois ele é abusado física e sexualmente pelo próprio pai, vive se metendo em encrenca, é rejeitado pela mulher que gosta, ele tem sua participação na trama ao ajudar Padráic mais com o lado emocional, mas ele tem um arco próprio trabalhado por trás que funciona perfeitamente bem e é encerrado, isso é algo que falta em uma pancada de filme e aqui o McDonagh executa com maestria, finalizando a participação dele de uma maneira bastante condizente com o que foi apresentado, apesar de triste.

Acho que o único problema no filme na minha opinião não é tão relevante, mas acho um erro ainda, que é a contextualização durante a Guerra Civil Irlandesa. Tem até um sentido e uma correlação visto o que acontece entre os dois personagens principais, acho inteligente pôr essa rivalidade nesta época, mas acho que foi subaproveitado, pois o uso é muito pontual e às vezes parece que é esquecido, poucas vezes é realmente demonstrado tiros, horrores e consequências do confronto, acho que era uma questão histórica muito boa para ser retratada dessa maneira, então, apesar da metáfora ser precisa, faltou mais para dar mais sentido. Mas a outra metáfora de termos uma personagem que representa uma banshee eu gostei e me surpreendeu positivamente, pois é realmente uma figura que aparece de vez em quando só para prever as desgraças que estão vindo, como a previsão de "uma ou duas mortes em Inisherin até o fim do mês", acho que essa participação poderia parecer só mais uma referência besta e vazia, mas dá sentido ao trazer um lado mais sombrio e tenso em momentos pontuais onde a obra precisa.

Em suma, "Os Banshees de Inisherin" não é um filme perfeito mas tá quase lá. É inteligente, é muito bem dirigido, muitíssimo bem atuado, cada diálogo é uma porrada no estômago, todo personagem é bom, desenvolvido e você se apega a eles. É uma imersão tão gigantesca que cinquenta minutos se passam como se fossem dez, que a cada segundo você vai percebendo uma nova camada. Me lembrou o recente "Ataque dos Cães", onde na primeira vez é bom, mas na revisita você nota nuances inéditas e vai gostando cada vez mais do filme, eu ainda não reassisti este em questão, mas a vibe que me passa é esse. Um amadurecimento enorme de McDonagh, Farrell e Gleeson, esses dois últimos entregando o trabalho de suas carreiras. É um dos favoritos ao Oscar e se ganhar eu irei ficar muito feliz, porque é um filmaço, um dos melhores de 2022!

Nota - 9,0/10

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