Crítica - Os Fabelmans (The Fabelmans, 2022)

O vovô conseguiu de novo.

Steven Spielberg dispensa apresentações, um dos maiores diretores da história do cinema e um revolucionário. Já fiz críticas sobre alguns outros filmes dele aqui, como o lançado recentemente "Amor, Sublime Amor" (2021) - que para mim foi o melhor filme da temporada passada com uma larga distância. É um diretor que tropeça as vezes, mas no geral ele é histórico e fez obras de arte inesquecíveis. Eu o considero um diretor com múltiplas vertentes: há o Spielberg nerdola, que fez "Tubarão" (1975), "Os Caçadores da Arca Perdida" (1981), "E. T. - O Extra-Terrestre" (1982) e "Jurassic Park - O Parque dos Dinossauros" (1993); tem o Spielberg sério, com "A Cor Púrpura" (1985), "Império do Sol" (1987) e "A Lista de Schindler" (1993); e há a junção desses dois, em longas mais pop com estética pop e tramas maduras, como "Prenda-Me Se For Capaz" (2002) e o já citado "Amor, Sublime Amor" (2021). Esse visivelmente vai para a vertente séria, mas ele para o diretor é mais que um simples filme, é sua história sendo contada e a assinatura definitiva de seu legado em Hollywood.

Este é um longa semiautobiográfico, ou seja, o diretor está contando suas vivências através de pseudônimos, então o que estamos vendo é um pedaço da juventude do Spielberg contada por ele mesmo, só que trocando os nomes para não parecer tão documental ou forçado. É algo tão pessoal que é a primeira vez que o roteiro tem sua assinatura. Aqui poderia ser um filme Oscar bait ou uma autovangloriação desbalanceada, é como se fosse uma viagem no tempo do diretor voltando antes dele ser o que é, vemos o início de um cara que queria fazer isso mais do que tudo e mais do que isso, ele reflete sobre a vida, sobre seus pais, as relações e as decisões que ele quase tomou que poderiam ter mudado tudo. A diferença desse para outros filmes onde o diretor explora o início de sua paixão pela arte, é que esse é verdadeiramente um filme apaixonado, não é uma porcaria jogada feita com a intenção de ganhar Oscar igual o "Belfast" (2021) ano passado, é uma carta de amor ao cinema escrita em meio à uma sala em chamas. Com certeza é uma das experiências mais lindas e agradáveis que veremos em muito tempo.

Quem me conhece sabe que eu sou muito fã de um filme chamado "Boyhood - Da Infância a Juventude" (2014), que é um dos meus filmes favoritos de todos e aqui o Spielberg me fez ter lembranças dele, porém de uma forma mais agradável para o público geral, já que Boyhood é bem naturalista e acaba não agradando todo mundo e aqui a estética é mais equilibrada entre o naturalismo e o romantismo, dando a sensação de que é realmente uma versão mais dramatizada da vida do diretor. Outra coisa a qual me lembrou foi a imersão, pois você fica tão preso na história do garoto que ao final, sente orgulho dele e é muito estranho ter orgulho de um personagem de filme (praticamente só me ocorreu nessas duas obras) e com isso você percebe que as últimas horas foram valiosas e incríveis, você ficou tanto tempo acompanhando aquela história que ao final acaba por ser emocionante.

Esse pseudônimo do Spielberg tem uma jornada bem interessante de ser acompanhada, pois é o diretor se retratando da forma mais honesta e humilde possível. Na primeira cena, vemos como surgiu a paixão de Sam (Gabriel LaBelle) pela sétima arte, ao ir no cinema pela primeira vez e ficar maravilhado com uma cena envolvendo efeitos especiais inacreditáveis na época em "O Maior Espetáculo da Terra" (1952) e depois ficando aficionado pela arte. Acompanhamos sua vida quando adolescente a maior parte do longa e vemos várias experiências onde cabe muito a identificação com ele, seja a relação com os pais, a relação com a profissão que pretende seguir, os surtos, as desistências, a paixonite, o bullying e por aí vai, é muito fácil se apegar a ele seja por suas qualidades ou defeitos, dá para se enxergar totalmente nele em qualquer cena, em algumas abrindo sorrisos, em outras largando lágrimas. O ator também é excelente e entrega perfeitamente o que é necessitado, se sai muito bem nas cenas dramáticas onde precisa chorar, ele constrói de maneira excepcional a personalidade do garoto, entregando toda essa timidez e criatividade necessária para crermos que ele poderia ser qualquer um de nós, é realmente surpreendente.

Um dos pilares é a relação do garoto com seus pais. O pai Burt (Paul Dano) é a representação da figura que não é fã do sonho do filho e pensa que seria melhor entrar em concurso público do que tentar a sorte em uma das indústrias mais lucrativas do mundo, enquanto a mãe Mitz (Michelle Williams) é artista e apoia o desejo do garoto. Essa balança é muito bem feita, já que nas cenas do protagonista com o pai tem toda a questão dele querer algo mais pé no chão para o menino ter mais segurança profissional e financeira, o que é totalmente entendível e não é por isso que é criada uma vilania encima da figura paterna, muito pelo contrário, você entende o que o cara tá querendo dizer e pelo visto o Spielberg respeita a opinião do pai enquanto a isso (queria muito saber a reação do pai dele após todos os recordes que ele quebrou, porque ele estava vivo até pouco tempo atrás e viu toda a glória da carreira do filho - vendo pela personalidade apresentada pelo Paul Dano, provavelmente ficou orgulhoso). O Paul Dano é EXCELENTE, um dos grandes destaques da temporada, porque ele entrega perfeitamente esse lado cético do personagem em relação a tudo que eu disse aqui. Ele é espetacular nas cenas dramáticas, tem duas cenas que ele chora no longa que são sensacionais, porque você vê ele toda hora como um homem centrado, inteligente, racional e nessas cenas que ele demonstra essas emoções você vê que a humanidade dele nunca foi afetada por isso como aparentava e isso é mostrado de uma forma muito crível tanto pela retratação quanto pela atuação, é realmente uma performance inacreditável.

Quanto a relação com a mãe, é mais complexa, até porque a mãe tem mais tempo de tela e o arco dela funciona tão bem isoladamente que o direcionamento da Michelle Williams na temporada de premiações foi para a categoria de atriz principal (que para mim não faz nenhum sentido, mas ok). Como já disse, ela é uma artista, é música, e entende e gosta essa fascinação do filho pela arte (mesmo sendo uma arte mais recente na época). Ela por ter esse lado artístico, acaba sendo muito excêntrica e exagerada em várias decisões, como levar os filhos para ver um furacão de perto. Essa relação dela com o Sam ganha um plus quando ele descobre que ela traía seu pai, aí entra mais camadas de complexidade porque ele se irrita e começa ser rebelde com ela e ele por ser o único da família com um lado mais artístico, é o único que entende o lado dela na história, essas crises e loucuras. A Michelle Williams para mim tem uma das melhores atuações da temporada facilmente, ela consegue entregar toda essa coisa dela tentar ser a mãe perfeita, mas entender suas falhas, ela manda muito bem nas cenas em que Mitz demonstra ser uma artista, tocando piano, dançando, vendo os filmes e nessas horas é onde dá para sentir a entrega da atriz física e mentalmente na personagem. Com certeza essa exigência do Spielberg encima dela e do Paul Dano para que representassem seus pais perfeitamente é o que tirou uma das melhores atuações das carreiras desses atores com uma bagagem tão grande.

Tem outras atuações com participação menor que também merecem ser destacadas. Reggie (Julia Butters) é a irmã de Sam e é a única com a qual ele tem uma relação um pouco melhor desenvolvida, essa menina manda muito bem, principalmente transpassando raiva e tristeza, tem várias cenas dela assim e ela é incrível para alguém que deve ter uns dez minutos de tela. Falando em dez minutos de tela, temos o tio avô Boris (Judd Hirsch), que tem exatos oito minutos e quarenta e três segundos de tempo de tela e mesmo assim tá indo para premiações, porque é uma participação pequena, porém muito destacada e que reverbera bastante no restante da exibição, o ator dá uma excentricidade espontânea ao personagem que deixa uma aura muito carismática e memorável na performance. Bennie (Seth Rogen) é um tio de consideração para Sam, o melhor amigo do pai e eu acho muito legal ver o Spielberg tirando o Seth Rogen da zona de conforto e colocando ele em um papel dramático, coadjuvante, que tem partes cômicas porém sem forçar muito e a última cena dele no filme ele entrega uma atuação memorável. E também memorável é a participação especial de David Lynch como John Ford (um dos melhores diretores da história interpretando um dos melhores diretores da história em um filme dirigido por um dos melhores diretores da história) e cara, esse parágrafo já tá meio longo, não vou me estender muito, mas a participação dele é tão marcante e emocionante para quem gosta de cinema que, sem brincadeira, mudou minha perspectiva de vida e sobre o cinema, eu confesso que lágrimas caíram depois dessa cena.

No geral é um longa que faz lágrimas saírem sem ser apelativo, porque o Spielberg sim dá um melodrama, até porque é um filme e precisava dessa melosidade, porque se não tivesse ia aparecer uma cópia do já citado "Boyhood", mas tem várias cenas que eu fiquei genuinamente emocionado, principalmente mais para o final tem cenas mais tristes que qualquer um com coração se sente tocado (lá ele). É preciso citar a parte técnica, porque é um trabalho espetacular de todo mundo. A edição é sucinta, leve e ajuda bastante na imersão do espectador, não parece que tem mais que duas horas, você se prende tanto ali que no final fica "ué, já acabou?". A construção de cenários é perfeita, cada lugar tem uma personalidade própria graças ao design de produção, os personagens passam por várias casas ao longo da trama e cada uma delas tem cores diferentes na paleta de cores, detalhes diferentes na cenografia, que deixa único, ainda mais sendo uma recriação acurada dos anos 60. Isso de cor que eu citei é mérito de um parceiro de longa data do Spielberg, Janusz Kaminski, que está com ele há tempos, já ganhou alguns Oscars nesse parceria e o polonês entrega mais uma vez algo digno de sua fama como um dos melhores cinegrafistas de Hollywood, porque ele traz uma cinematografia fluída que ao final do filme você entende algo que estava sendo utilizado por ele e Spielberg em todos os enquadramentos e é absurdo o que míseros detalhes dizem tanto sobre a trama e seu momento. Outro parceiro de longa data do Spielberg é a lenda da música John Williams, que faz aqui seu penúltimo trabalho como compositor e entrega uma das composições mais singelas e bonitas no histórico recente de sua carreira, ele que provavelmente é compositor da maioria das trilhas sonoras que você lembra do cinema, vai se aposentando com chave de ouro.

Em "Os Fabelmans" é provado porque Steven Spielberg recebe tamanha aclamação, porque ele é considerado genial, um revolucinário. Eu não vou mentir, achei que ia ser ruim por conta do que ele fez na década de 2010, quando saiu o trailer eu falei que parecia "comercial de margarina" e um "Oscar bait", mas NUNCA se deve apostar contra Steven Spielberg, porque quando você menos espera, ele lança mais uma obra-prima. Esse filme é uma verdadeira carta de amor ao cinema, é tão apaixonante e emocionante que é impossível não gostar. Esse cara mudou o cinema, porque se você gosta de filmes como Star Wars, Harry Potter, Senhor dos Anéis, Exterminador do Futuro, De Volta Para o Futuro, Titanic, Avatar, Marvel, DC, Missão Impossível, isso tudo só aconteceu porque ele foi lá e fez "Tubarão". Tem gente (idiota) que não gosta dele, mas é inegável que ele mudou o jogo e agora, ele tatua seu nome em Hollywood mais uma vez. Um verdadeiro espetáculo que só diretores do nível dele entregam.

Nota - 10/10

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