Crítica - Barbie (2023)

Um verdadeiro fenômeno cinematográfico.

Cá estamos para um inesperado evento cinematográfico, eu diria, pois se há uns seis anos atrás viessem me dizer que ocorreria filas e salas lotadas para uma disputa de um filme live action da Barbie e um drama de guerra de Christopher Nolan, eu pensaria que aquela pessoa acabou de sair de um manicômio, mas o fim de semana dos dias 20 até 23 de julho de 2023 ficarão marcados pelo fenômeno Barbenheimer. Confesso que quando vi o anúncio de um longa-metragem sobre a boneca com atores reais nos papéis, eu pensei: "é, acabou a criatividade de Hollywood", só que aos poucos quando os nomes foram sendo confirmados parecia ficar interessante, mas não serei hipócrita, criei meio que uma resistência contra isso, pois há toda essa questão de que eu fui criado colocando na minha cabeça que "Barbie é coisa de menininha" e isso foi me atordoando porque eu não queria ser taxado de "mulherzinha" ou "baitola" por simplesmente assistir um filme que tem atores famosos e que todo mundo vai assistir, é uma masculinidade frágil real que eu fui aprendendo a lidar e ainda bem que eu melhorei, não direi que sou desconstruído, que sou um homem moderno, mas sou bem resolvido enquanto a essas questões, sou um homem heterossexual e não é um filminho que vai fazer milagrosamente uma lavagem cerebral em duas horas, até porque eu vi os dez Velozes e Furiosos e até hoje não sei dirigir e tenho cabelo, então é lógico que não influencia.

Dirigido pela relativamente novata na cadeira de direção, porém já reconhecida Greta Gerwig, e escrito por ela em colaboração com seu marido, o também diretor Noah Baumbach, o casal cria uma história que envolve tudo, tem comédia, drama, ação, aventura, romance, musical, tem crítica social, cena de guerra, discussão política, discussão empresarial, é de tudo um pouco, mesclando elementos que dão à obra esse tom de novidade que estava oco em Hollywood. Aqui, acompanhamos a Barbielândia, um local que tudo é aparentemente perfeito, é como se fosse uma utopia feminina e rosa, onde há um matriarcado, e a grande estrela é a Barbie (Margot Robbie), que é o estereótipo da perfeição e todo mundo a escuta e a segue. Enquanto isso, Ken (Ryan Gosling) é apenas um cara desempregado e pobre que necessita da atenção de sua amada para ter um dia feliz. Quando Barbie começa a notar imperfeições surgindo em seu corpo perfeito, ela precisa ir até o mundo real descobrir o que está acontecendo. Nisso, ela se encontra com Gloria (America Ferrera), uma fã incondicional, e sua filha, Sasha (Ariana Greenblatt), uma adolescente rebelde, que a ajudam a entender seu lugar no mundo e as diferenças do mundo real para o mundo idealizado.

A boneca Barbie foi revolucionária para sua época, já que, como é contado no prólogo, as opções de brinquedos para meninas era limitada a bebês que já colocam à força as garotas para aprenderem a ser mães em que elas tenham noção disso (o que é meio absurdo se parar para refletir). Então, a Barbie, como uma figura adulta, que tem peito e bunda, milhões de roupas para trocar, muda totalmente a dinâmica da brincadeira. A crítica aqui é notável, já que a Barbie 0-1 (por assim dizer) é o estereótipo de perfeição, a mulher bonita que é loira, alta, de olho azul, batom vermelho, maquiada, com o corpo perfeito, em um molde de supermodelo, e assim a boneca de milhares de profissões, que já foi médica, cientista, presidente, atriz, cantora, musicista, astronauta, cowgirl, jornalista, marinheira, advogada e outros, cujo a intenção era empoderar o sexo feminino, na verdade só acaba deixando as mulheres presas numa corrida eterna para alcançar um padrão de beleza quase impossível. Essa é uma discussão bastante interessante de ser retratada e característica da diretora, é retratada com uma maturidade, mas também com bom humor, criticando o machismo estrutural, as funções de gênero na sociedade, à própria Mattel, de uma forma ácida, que são feitas em um tom humorístico que facilita o entendimento e causa um impacto que faz o espectador rir, mas também traz uma reflexão importante para todo mundo que lhe assiste, seja um carinha acompanhando a namorada até uma senhora de quase cinquenta anos que teve o brinquedo e vai ao cinema pela nostalgia.

Gerwig manda bem em fazer worldbuilding, construção de universo, a Barbielândia, que como eu já disse, é um local utópico rosa e feminino que funciona como realmente um mundo de brincadeiras de crianças, que tem um design de produção bastante plastificado, propositalmente estereotipado, com a paleta de cores estouradas no rosa e azul claro, como se fosse a imaginação de uma menina de sete anos brincando com todas aquelas Barbies e aqueles Kens (e o Allan) e seus apetrechos, casas, cenários, objetos como o carro, e o que mais me conquistou, a física inexistente, o Ken rodopiando pelo ar, o carro conversível dando cambalhota loucamente e caindo perfeitamente com o casal sem nenhum arranhão, que realmente me deu uma sensação de voltar à infância, eu nunca brinquei com Barbie, mas me fez lembrar das batalhas épicas que eu criava aos oito anos com o Ben 10, o Batman e o Shrek enfrentando o Homem-Aranha, o Relâmpago Marquinhos e as Tartarugas Ninja onde os brinquedos voavam pelo ar e se espatifavam no chão. Essa questão de design de produção inclusive é garantido na lista de indicados ao Oscar, pois é algo fantástico e realmente diferente, é original. Figurino também, obviamente que um longa da marca Barbie teria vários figurinos diferenciados em uma grande quantidade, usando brilho, roupas extravagantes, sempre na mesma paleta de rosa, branco e azul claro para as mulheres, e preto mesclado com qualquer outra cor para os homens.

Em storytelling, Greta utiliza-se de várias referências, que vão desde as próprias brincadeiras de crianças (que ela trabalha de questão implicitamente pessoal), até outros filmes e em filosofia. A principal base é da casa, "Matrix" (1999), com a Barbie fazendo um papel mais cômico de Neo enquanto a Barbie Danificada (Kate McKinnon) faz uma espécie de Morpheus, e os executivos da Mattel são como versões burras do Agente Smith. Se tem base em Matrix, logo tem base no Mito da Caverna de Platão, o que faz sentido não só com a história da Barbie, mas faz mais sentido ainda no desenvolvimento do Ken de uma maneira mais distorcida da mensagem do conto original. A forma como o casal cria e a Greta desenvolve o longa acaba criando uma sensação que é positiva e nova para as mulheres, e incômoda para os homens, que trata os caras como uns imbecis, mas diferente do que alguns dodóis pensam, não é um longa "anti-homem", eles são utilizados para criar a reflexão dos papéis dos sexos na sociedade. A inversão de papéis gera algumas situações engraçadas, como o fato do Ken não ter casa e a profissão dele ser ficar na praia. Essa retratação estereotipada não serve como uma crítica, como uma humilhação, mas sim como uma reflexão para nós homens pensarmos na forma como agimos, de um jeito que incomoda, que cutuca a ferida e cria o pensamento de que temos muito do que aprender ainda, eu ria por fora, mas por dentro eu pensava: "nossa, eu preciso melhorar". Eu me identifiquei com algumas coisas que os Kens fazem ali e me senti meio mal, mas não tomei as dores pois diferente de um pessoal eu tenho noção de que aquela é a intenção.

Nas atuações, temos duas principais que são de impressionar. Margot Robbie como Barbie é um deleite, a mulher já é basicamente a Barbie, o próprio estereótipo da boneca com todas aquelas características que eu citei alguns parágrafos atrás, inclusive a sacada da Greta e do Noah de colocá-la literalmente como a Barbie Estereotipada foi perfeita, ainda mais com o carisma e beleza inigualável da atriz que faz com que a narradora interrompa o filme para falar que o casal tem noção de que essa atriz chorando por não ser bonita o suficiente é inconvincente, ela tem um sorriso característico que conquista, que se mantém até nos momentos de confusão e de drama, até os dentes dela tem vida própria e conquistam. Ainda conta com esse desempenho caricato, robótico, que realmente lembra uma criança brincando nessa parte do mundo idealizado, é um talento impressionante. Mas o destaque é o Ryan Gosling como Ken, ele que é zoado por não ter expressões e depois exaltado por ter virado o literalmente eu, aqui tem uma performance em fases que começa numa inocência e essa mesma caricatura, que passa para um desbravamento cômico e não falarei mais para não dar spoiler, mas o cara manda bem no drama, é primordial na comédia, ele tem uma parte de aventura, de fantasia e até musical (com direito a um solo de guitarra do Slash em seu número), e ele tem que ir para o Oscar de coadjuvante, é um show, é a melhor atuação da carreira dele.

Outro destaque do elenco é o Michael Cera como Allan, ele é incrível, extremamente engraçado, tem momentos de quebra de tensão funcionais e tem rumos surpreendentes na história, chegando até a relembrar suas origens de Scott Pilgrim em uma cena e sair metendo a porrada em uns dez caras, literalmente toda a aparição dele é uma risada garantida. A America Ferrera como Gloria é um espetáculo, sendo ela como a personagem arquétipo do Mito da Caverna para o lado feminino, ela tem um discurso espetacular que só não garante uma nomeação ao Oscar porque ela não é famosa, mas é um dos momentos mais impactantes que temos no longa. Entretanto, sua relação com sua filha, Sasha, soa um pouco genérica, até porque é um arquétipo batido e a Greta entende isso (ela inclusive já se utilizou dele em "Lady Bird" - A Hora de Voar"), mas o que me incomoda é como rapidamente a garota se reconcilia com ela, o conflito existe e acaba num piscar de olhos, senti falta de desenvolvimento nessa parte. Outro ponto que não curti é o Will Ferrell e o arco da Mattel, que serve como crítica social, tem excelentes piadas, mas que são esquecidos por boa parte do longa e perdem o propósito em algum momento, no qual eu já tinha até esquecido que eles existiam, poderia ser melhor explorado a partir daquele certo ponto de virada. Ferrell ainda repete o papel de Presidente Negócios lá de "Uma Aventura Lego" (2014), o que me deu um sentimento de falta de originalidade, já que a sensação de ver ele num papel de líder engravatado caricato era familiar e contribuída à sua utilização, faz com que deixe uma mancha na minha experiência.

O filme tem um soundtrack original gigantesco, tem muitas músicas compostas especialmente para o longa que são feitas e interpretadas por grandes artistas da atualidade. Produzida pelo renomado Mark Ronson, temos gente como a Dua Lipa com "Dance the Night", Lizzo com "Pink" e Billie Eilish com "What I Was Made For?", além do número musical "I'm Just Ken" performado pelo Ryan Gosling. Vai estar no Oscar de canção original, quase certeza, agora é saber qual, eu acho que a que tem mais cara de indicação pelo histórico na categoria é essa da Billie Eilish, até pelo contexto em que a música é tocada. Também destacar o marketing, porque é inacreditável o quão bem feito foi tudo isso, anunciando pouco a pouco os nomes, depois lançando as imagens de vez em quando e cada uma bombava na internet, com os visuais da Margot Robbie, do Ryan Gosling, imagens de bastidores (uma até com uma bandeira do Brasil no fundo), aí vem a agressividade de propaganda esse ano, com um trailer referenciando "2001 - Uma Odisseia no Espaço" (1968), mostrando ali que já seria diferente, depois mais um trailer, depois imagens, revelação do álbum com a música da Dua Lipa como single, entrevistas dos atores, circuito de entrevistas, todas as lojas estão rosas, tem hamburguer rosa, pizza rosa, macarrão rosa, roupas rosas em destaques nas lojas, brinquedos da Barbie sendo vendidos loucamente, é um fenômeno cultural maior do que o esperado, que neste primeiro final de semana já fez mais de U$337 milhões, é inacreditável, nunca vi nada igual (acho que o filme já se pagou só nessas vendas, e tem gente chamando de anticapitalista).

Um blockbuster importante, reflexivo e qualitativamente surpreendente, "Barbie" não é um filme de menininha, é realmente uma adaptação, utilizando uma personagem famosa e enraizada na cultura pop como a Barbie para criar uma discussão interessantíssima, uma reflexão genuína e uma mensagem que é importante de verdade. É uma mensagem que sendo passada desse jeito caricato e cômico causa muito mais impacto pelo humor irônico, sobre os papéis tanto dos homens quanto das mulheres na sociedade, a função em que a mulher é colocada no patriarcado e qual deve ser a verdadeira ambição de uma mulher. É óbvio que é um filme feminista e não há nenhum problema nisso, não foi feito para denegrir os homens, mas sim para ser uma obra impactante para as mulheres, porque pelo visto a Barbie é um evento catártico para elas, já que eu não vi nada igual na minha vida mexendo tanto com elas em relação ao cinema, eu nunca vou saber o impacto, mas para mim, foi um ótimo filme, um ótimo ponto de reflexão sobre atitudes, o que se deve fazer ou não fazer com as mulheres, eu sinceramente sinto que eu sai um homem um pouquinho melhor do que eu entrei, e sinto que isso basta. Apesar de alguns erros e conveniências clichês, é um trabalho de mestre da Greta Gerwig na direção e atuações brilhantes da Margot Robbie e do Ryan Gosling, é realmente um grande filme e um fenômeno justificável, vai ser lembrado no futuro.

Nota - 8,5/10

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