Crítica - Zona de Interesse (The Zone of Interest, 2023)
Uma revolução na forma de contar a história do holocausto no audiovisual.
Mais de dez anos após seu último trabalho, o britânico Jonathan Glazer retorna às atividades cinematográficas com um longa imensamente aclamado mundialmente. Glazer é um cara meio louco da cabeça, vem do mundo dos videoclipes, onde trabalhou para grandes artistas, como o Radiohead, por exemplo, cujo foi responsável pelo premiado clipe de "Karma Police". Seus filmes anteriores também são meio fora da caixinha, incluem "Sexy Beast" (1999) e "Sob a Pele" (2014). Mas aqui é algo totalmente diferente de tudo que já tenhamos visto no cinema, trata-se de um filme sobre o holocausto, mas isso não é novidade, existem centenas desses, porém não é um longa onde ele é visto, e sim escutado. Glazer cresceu numa família judia, e sabemos que diretor judeu falando sobre o extermínio de seu povo sempre nos dá excelentes obras, até porque a dor que eles sofreram é imensurável, aqui é indiferente, é espetacular, é uma verdadeira experiência que traz à tona o que a humanidade tem de pior com uma calma tão grande em meio ao caos e crueldade que cercava, literalmente, todo um povo.
Durante a Segunda Guerra Mundial, acompanhamos o Comandante Rudolf Höss (Christian Friedel), o militar nazista responsável pelo comando de Auschwitz, o principal campo de concentração da Alemanha de Hitler durante a Guerra. Vemos Höss lidando com os perrengues no trabalho enquanto precisa lidar com sua esposa Hedwig (Sandra Hüller) e seus filhos morando logo ao lado dos muros que separam a casa dos campos. Cara, que premissa espetacular, trabalhar o holocausto de uma forma mais sonora, onde não faz um showcase de mortes ou cria alguma história lá dentro, mas sim apenas ouvir aquilo tudo. O ponto de partida é bem interessante (sem trocadilho), e a execução (sem trocadilho novamente) consegue ser melhor ainda, pois a história te prende de uma forma tão hipnotizante que chega a ser inacreditável, é algo tão cauteloso, ao mesmo tempo que é tão cruel e assustador, que as palavras não definem tudo, não tem palavras o suficiente no dicionário para descrever, é mais a sensação, a experiência de assistir que você vai entender.
O ritmo é totalmente lento, e não é para todo mundo. Com certeza é o longa ficcional da temporada que gera mais discussões, pois é daqueles que são denominados "cults" (na raíz do termo está correto), literalmente aqui você vai ver os três primeiros minutos com uma tela preta e a trilha sonora, vai ver uma cena de dois minutos do cara apagando as luzes antes de dormir e uma de três onde ele vai limpar a bingola no porão, e não é todo mundo que gosta desse tipo de filme, particularmente também não é muito a minha praia, mas a forma como Glazer conta essa história com tanta frieza, sutileza e calma acabou me hipnotizando de uma forma que eu ficava genuinamente aterrorizado pelo o que estava ouvindo. Jonathan conduz a história com essa calma, ele não entra quase nunca dentro dos campos, não é de seu interesse, o que lhe interessa é mostrar o quão banal era aquilo para quem causava, era um emprego para todo mundo ali, que fazia por prazer, medo, obrigação ou ambos.
Tem essa polêmica de que aqui há a famigerada "banalização do mal", o que eu não enxerguei na minha visão, pelo contrário, o que eu vi foi o mal banalizando os acontecimentos. As pessoas estão muito acostumadas com Hollywood e a glamourização dos extremos, se é mal tem que ser 100% mal e se é bom ter que ser um santo intocável, mas na Europa nem tudo é preto no branco, na realidade é uma grande área cinzenta. Rudolf Höss é mostrado como um pai de família, marido, trabalhador, como um ser humano qualquer, e isso dá a impressão em muita gente de que ele esteja sendo isento de alguma coisa, o que é uma baita mentira, já que no próprio longa isso é contrariado, mostra ele numa cena conversando com a esposa na cama, falando sobre o futuro, fazendo piada e dando risada, para cortar para o dia seguinte onde ele está à frente da fumaça de um dos crematórios. A monstruosidade dele está lá, só não é exagerada como seria em um longa estadunidense, na realidade a maldade vem pela frieza e naturalidade com que ele fala sobre cremar pessoas e a eficiência de cada coisa para matá-las. Se isso não é crueldade, eu não sei o que é.
É um longa tenso ao mesmo tempo que calmo, isso se deve ao fato de que a tensão vem do espectador que vai esperando ver uma coisa e recebe outra, o medo de ver tantas pessoas morrendo causa essa aflição, mas isso é utilizado com maestria pelo Glazer para prender o espectador e contar uma história familiar enquanto utiliza o que acontece por trás dos muros como pano de fundo. Está lá, você sabe que está ali, bem perto, você sabe o que está acontecendo, o longa te faz ouvir os gemidos, os gritos, a desesperança e o desespero enquanto a uma morte inevitável no ápice da crueldade humana, e isso acontece, você sabe que, pelo menos aqui, não vai haver um Schindler para salvar ninguém, ou um Roberto Benigni para fazer palhaçada no campo, é puro, é o cotidiano da Alemanha àquela época. Isso me fez pensar: será que a tal Zona de Interesse refere-se à nossa zona de conforto? Tipo, Höss e sua família estão lá atrás dos muros, sabem o que se passa lá por dentro, tem noção que fatalidades ocorrem todo dia e ignoram como se fosse normal... Não é basicamente isso que todos nós fazemos? Guerra, fome, desastres naturais, tráfico humano, preconceito, assassinatos, latrocínios. As pessoas morrem disso, convivemos com notícias sobre isso, mas simplesmente ignoramos e seguimos em nossos próprios mundinhos. Não é basicamente isso que acontece aqui?
O filme tem um trabalho técnico espetacular, que ajuda a elevar o patamar da obra. O som é, obviamente, o grande destaque, porque a experiência vem por conta dessa ideia de ouvir o desespero por trás dos muros, é algo perturbador, não dá para entender como seres teoricamente "racionais" chegaram ao ponto de fazer algo tão desumano e horrível com a própria espécie, tudo isso por um motivo tão idiota. Ouvir é muito mais aterrorizante do que assistir, porque você não tem certeza do que está acontecendo lá, é apenas uma ideia vinda do seu conhecimento prévio, mas o dúbio é um ponto-chave para a engrenagem da obra. A trilha sonora composta por Mica Levi é outro ponto marcante, já que é uma musicalidade experimental em que são testados vários tipos de sons e variáveis dos instrumentos para indicar o desconforto e a incerteza, é fascinante. Na parte visual, a fotografia do Lukasz Zal é um grande destaque, esse jogo de cores, de ser algo mais claro e saturado para dar a sensação desconfortável em meio a normalidade é muito bem feita, a forma como os planos sempre colocam Auschwitz em evidência de alguma forma é funcional. Parte artística de figurino e direção de arte remetente à Alemanha da época é muito bem feita, é de um capricho e de uma beleza culposa ao mesmo tempo, você vendo aquela casa tão bonita sabendo o que era dá uma sensação de odiar a si mesmo.
As atuações são muito boas também, são sutis, poucos diálogos, mas acabam se destacando e dando a importância necessária para a narrativa. Christian Friedel é ótimo, conseguindo exprimir essa frieza do personagem em relação ao seu emprego, à forma qual pensa e sua maldade em meio ao simples. Você vendo aquele cara com uma esposa e uma porrada de filhos sendo normal, tratado como um cara com emprego, chega a ser bizarro, sendo que era isso mesmo na essência. Não era um emprego digno na questão humanitária, ele matou muita gente, mas ainda era o trampo (não é uma defesa, é só uma reflexão). Essa sutileza não é banal igual muitos pensam, que nem eu falei, é a naturalidade dos absurdos e maldades que ele diz que deixa mais cruel, o Friedel tem uma atuação tão calma e convicta que dá para pegar raiva do ator na vida real por conta dela, a forma como ele se refere ao que ele faz e como ele diz que só pensa como cremaria as pessoas escancara o quão maldoso ele era. Sandra Hüller é uma das melhores coadjuvantes da temporada ao trazer essa esposa que prioriza o estilo de vida à carreira do marido, gostando de viver naquele local e tentando deixar o campo de concentração como apenas uma paisagem fantasma, ela tenta sempre parecer uma mulher atraente, rica, boa mãe e esposa, e que passa essa sensação de donzela perfeitamente. Ela também tem sua crueldade, não é nenhuma santa, ela se denominando "rainha de Auschwitz" me deu um medo genuíno.
Dá para se dizer que é o melhor filme da temporada sobre um homem na Segunda Guerra Mundial que liderou um projeto cujo no final matou muita gente (chupa Oppenheimer). Brincadeiras à parte (na real, não é brincadeira não, é muito melhor que Oppenheimer mesmo, não existe nem comparação para mim), "Zona de Interesse" não é só um filme, é uma experiência, é experienciar da maneira mais crua, dúbia e perturbadora possível, tudo isso sendo levado ao máximo com ajuda de diálogos frios e chocantes, atuações boas que trazem uma normalidade ao mesmo tempo que a crueldade (um puro suco de sociopatia), trilha sonora assombrosa, design sonoro bizarramente assustador, parte técnica que causa um desconforto. Honestamente, é um dos meus favoritos da temporada, não é para todo mundo, seja pelo ritmo ou pela forma de storytelling, mas me impactou, honestamente acho que esse é o filme que mais me assustou na vida e nem é um terror propriamente dito. Não sei se recomendo assistir porque é um filme difícil, mas eu realmente achei uma experiência interessante (novamente, sem trocadilho).
Nota - 9,0/10