Crítica - Anora (2024)

Choro de puta, Deus não escuta.

Nos últimos anos, os vencedores da Palma de Ouro no Festival de Cannes sempre vem chamando a atenção e sobrevivendo à repercussão do festival, ficando na memória por muitos meses e chegando até a temporada de premiações. Foi assim com "Triângulo da Tristeza" (2022), de Ruben Östlund, chegando ano passado no final e conseguindo três indicações ao carecão dourado, e na temporada passada deste ano tivemos o grande "Anatomia de Uma Queda" (2023), que foi um sucesso que chegou mais longe do que aparentava, beliscou várias indicações importantes e conseguiu vencer como Melhor Roteiro Original, mesmo sem ser selecionado pela França como seu representante. Agora, em 2024 para a temporada 2025, vem Sean Baker com seu "Anora". Baker é o cineasta conhecido por gravar seu "Tangerine" (2015) num iPhone, depois fez o famoso "Projeto Flórida" (2017) com Willem Dafoe, e agora lança seu projeto que irá lançá-lo a outro patamar em Hollywood, irá torná-lo um indicado ao Oscar. Com uma história na qual ele já tá acostumado a trabalhar, com uma atriz em ascensão chamada Mikey Madison no papel principal, temos um dos grandes longas do ano.

O longa conta a história de Ani (Mikey Madison), uma garota de programa e stripper de 23 anos que trabalha na boate HeadQuarters, em Nova York. Um dia, ela conhece Ivan (Mark Eydelshteyn), um jovem russo milionário que se afeiçoa por ela. Ele começa a chamá-la em sua casa, dar presentes, oferecer exclusividade para ele, em uma troca de favores com benefícios mútuos. Quando um dia eles estão em Las Vegas e decidem se casar, é descoberto que a família de Ivan é uma grande organização criminosa russa e armênia, que não aceita o casório do garoto com uma mulher da vida. Nisso, ele acaba fugindo, e vemos uma jornada dela em busca do agora marido com ajuda dos capangas da gangue, incluindo o novato Igor (Yura Borisov), o responsável Toros (Karren Karagulian) e o cão de busca Garnik (Vache Tovmasyan). É um filme que trabalha novamente essa questão dos "trabalhadores da felicidade" dentro da filmografia do diretor, em "Projeto Flórida" ele já fazia isso, colocava a mãe da protagonista sustentando a criança trabalhando com isso, depois com "Red Rocket" (2021), onde vemos o Simon Rex interpretando um ex-ator pornô (esse filme eu não vi, inclusive, eu só pesquisei para o texto). Novamente vemos uma premissa que parte disso, e olha, que filme bom, que filme divertido, é muito bem feito.

O Sean Baker sabe criar um filme muito legal de se assistir, porque ele é bom em tudo que faz, a direção é boa, a história, o roteiro, como as coisas vão se amarrando, as atuações, tudo excelente, mas isso é complementado com o quesito "cool". É o estilo de filme que me agrada, aquele filme que é engraçado, divertido, mas que é realmente bom, que o que tem dentro dele é bem trabalhado. Baker usa de uma velocidade caótica para criar essa tragicomédia, mais comédia do que trágica, mas ainda assim a comicidade vem da desgraça e do absurdo que acontece a história inteira. É um longa meio anárquico, as coisas vão acontecendo numa velocidade, a montagem é frenética, você vai adentrando àquela história maluca. O início não para, é sem freio, vai cortando a cada dez segundos, até incomoda quem estiver mais desavisado. Eu não me incomodei em nenhum momento com a edição, achei esse frenesi proposital e funcional naquilo que o diretor queria mostrar. Mas aí, meu parceiro, depois de uns quarenta minutos, o filme entra numa crescente, na qual ele não desce mais.

A maneira na qual Baker vai conduzindo a trama, ela entra numa crescente, onde você vai ficando tenso, mas é uma tensão engraçada, é algo tão absurdo que vai acontecendo ali que chega a ser inacreditável, é cada coisa bizarra que vai acontecendo, o filme não respira, vai rolando uma coisa atrás da outra e cada coisa vai melhorando o longa num geral. O timing cômico é muito preciso, seja pelas atuações, seja pela Mikey Madison mandando ver no papel principal, seja pelas falas e cacoetes que colocam na trama. Como tem a cena onde ela começa a gritar na mansão e os capangas patetas começam a bater cabeça sobre o que fazer com ela, um humor físico onde as vezes vemos os personagens em algumas situações "diferenciadas" envolvendo sua fisicalidade, ou pela burrice de alguns deles. É muito bem feito, é aquela comédia que não fica famosa por ser tão engraçadona, apesar de gerar ótimas risadas como um todo, mas ele tem essa vibe "cool", ele é legalzão, daqueles que você vai gostando pelo carisma e tudo mais, mas principalmente pela trama maluca, o estilo diferente me conquistou, esse sentimento foi me consumindo, é um daqueles que me dá vontade real de rever algum dia.

Existe esse estilo imprimido no que o Sean Baker quis fazer, é um estilo que vai muito mais para o dinamismo, para a locomoção da câmera, as cores mais vivas e que passam essa sensação do luxo que a personagem busca. A paleta de cores vai dessa Nova York suja, as ruas escuras e sombrias, para dentro da casa das primas, com aquelas cores vibrantes e piscantes, um roxo predominante, um rosa; depois para mansões chiques, hotéis, Las Vegas, cores mais felizes, mais vivas, mais reais, até se estabelecer num realismo mais polido, em uma Nova York mais idealizada pela visão luxuosa e de interesse atingida por Ani. A edição é muito dinâmica, é feita pelo próprio diretor e ele sabe muito bem o que quer, ele sabe encaixar muito bem a comicidade de algumas cenas, mesmo que várias delas não sejam exatamente piadas, ele sabe como encaixar em um momento onde um corte seco transforme uma cena de sexo em uma piada, pois a imprevisibilidade entrega uma risibilidade, tem a cena do tribunal que é uma bagunça e consegue tirar o riso com o Toros falando "objection" a cada dez segundos, ou então a cena do avião e da assinatura, que se eu falar mais é spoiler, mas são cenas tão absurdas e que, por consequência, são muito boas na comédia.

Mas, o grande destaque mesmo acaba por ser a personagem principal, a Ani, ou Anora. Meus amigos me falaram que há uma crítica negativa sobre o filme, dizendo que este só foi feito para degradar a protagonista, mas eu tenho de dizer que é o oposto: Anora é uma personagem absurda de boa. Ela carrega bem o filme, pois você começa acompanhando ela, de forma meio avulsa, ela é uma dentre várias, ela vai seduzindo os caras, fazendo seu ganha-pão, ela é tratada como só mais uma lá dentro, ela não é como se fosse a melhor de todas, a funcionária do mês, ela é só uma das garotas do bordel e eu gostei dessa abordagem, não existe aquilo de "escolhida", de "melhor de todas", ela é mais uma, e nessa abordagem acaba que não existe um fascínio por ela igual existiria nos demais filmes, você acaba gostando dela pelo o que a atuação da atriz proporciona. Eu também gostei dessa personalidade dela, ela é meio exagerada, maluca, quase uma Karen, e tudo que ela faz é por puro e simples luxo, ela quer o melhor dos melhores, ela quer ser uma encostada, uma esposa-troféu, ela quer ter dinheiro, encontrou a oportunidade de uma vida se casando com um riquinho russo mimado e ficou simplesmente irritada quando vieram tirando isso dela sem mais nem menos.

A tal da Mikey Madison também é sensacional, ela entrega bem nesse papel, ela tem um timing excelente para as situações. Existe toda uma entrega física também, eu me sinto na obrigação de elogiar isso, pois deve ser difícil para uma atriz se expôr dessa forma, ficar pelada em 40% do filme, ficar rebolando a bunda, usando fio dental, não é fácil para uma mulher se colocar dessa forma, então isso é um bônus para ser destacado. Mas ela manda muito bem, ela é muito carismática, muito expressiva, ela tem a lábia, ela sabe como manipular as pessoas para cair no papinho dela, não é à toa bem sucedida no seu lounge. Ela consegue trazer um tom cômico na sua performance, quando é necessário gritar, ela grita, e não são aqueles gritos performáticos para gerar uma performance vencedora de Oscar (por mais que ela vá ganhar, está quase na mão), mas ela grita por sua personalidade exagerada, de querer se aparecer, de ser aquela que chama atenção devido ao seu trabalho. Mas ela também é cheia de personalidade, ela tem uma força ali, ela sabe o que quer da vida (que nem eu falei no anterior), ela vai se guardando até que, ao final, quando tudo passa, ela desabafa e fala a verdade, e não é gritando e sendo exagerada, ela acerta no tom de raiva passiva e traz uma sensação de ter sido enganada que convence. Ela tem ótimos momentos e acaba se firmando como uma das melhores performances do ano, ela que era conhecida como a menina que pegava fogo nos filmes, agora fica conhecida como a menina que tem fogo no rabo.

É claro que ela sozinha não sustenta um filme, tem os capangas patetas que colaboram muito para este lado cômico da obra. Primeiro que eles são desajeitados, meio idiotas, eles não sabem como agir direito lidando com alguém como a Ani, que é toda gritona, brava, reclamona, acaba que eles deixam ela isso tudo duas vezes mais. O fato deles serem burros era o esperado, capanga inteligente estraga a graça do cinema, mas tem coisas neles tão idiotas que geram um riso tão gostoso, como eles apanharem para a própria Anora, que consegue fazer com que eles fiquem mais idiotas ainda. A cena deles tentando fazer ela de refém e ela sempre contornando a situação é sensacional, acaba que gera bons momentos, especialmente demarcando um momento de virada na trama. Os três atores são bons, o Vache Tovmasyan que faz o Garnik é o mais apagado, mas é o mais burro também, ele gera algumas falas bem engraçadas, ele comete erros que nem você acredita que são possíveis numa situação da tela. O Karren Karagulian que faz o Toros manda muito bem, ele é meio que o chefe daquela "missão", ele é o responsável por Ivan, e ele é muito engraçado, ele falando "objection" na cena do tribunal é um dos grandes momentos do longa, além dele ficar perguntando para as pessoas se viram o Vanya mostrando uma foto dele transando com a Anora (uma das melhores piadas). Agora, o com mais destaque é o Yura Borisov, que interpreta o Fragmentado, digo, o Igor, que é jogado naquela situação meio que de graça, ele não queria estar ali, ele nem sabe ao certo porque está ali, ele só caiu de paraquedas e decidiu ajudar. Ele tem bons momentos, nos últimos minutos ele se torna um destaque, mas é só mais uma participação divertida também, não é algo para ser indicado para premiações de coadjuvante, como ele está sendo, mas não tira o mérito dele, ele é realmente bom.

Outro que manda bem é o Mark Eydelshteyn, o Ivan, ou Vanya, como é seu apelido, também conhecido como o marido fornecedor da Ani. Cara, esse moleque manda bem, porque ele começa entregando um personagem mimadinho, riquinho idiota, com trejeitos meio... como posso dizer... suspeitos? Não pelo caráter, mas pela orientação de outra coisa... Aí ele conhece a Anora, começa a se comportar que nem um ricasso, agindo que nem um coach de internet que se paga de sigma, usando um óculos escuros que deixa ele a cara do Timothée Chalamet em "Um Completo Desconhecido" (2024). Mas, no final, vemos que ele é realmente só mais um moleque mimado, que gasta dinheiro sem nem saber direito o que quer, que toda atitude que ele toma é realmente constrangedora por um lado ou pelo outro. Quando a Anora fala que ele não passa de um frouxo, de um baitola, eu comemorei, porque era exatamente isso que ela deveria ter feito desde o início. No arco dele, eu gostei muito da participação dos seus pais, especialmente da mãe, interpretada por Darya Ekamasova, que poderia estar na temporada de premiações, ela tem uma sequência de quatro cenas muito boa, as únicas que ela tem, mas que ela consegue passar bem como uma mãe agiria numa situação dessas, toda a raiva que ela tem com a incompetência de seu filho, todo o desgosto que ela sente, todo o desprezo por Anora. Eles fogem do óbvio, dão essa plausibilidade para suas ações e não apelam para a comicidade óbvia, que seria ela ficar chamando a protagonista de "bitch" o tempo inteiro.

Na parte técnica, já falei bastante da montagem, que é bem dinâmica, nos induz bem àquela vivência, àquela história, esse ritmo maluco e caótico do cinema de Baker, o diretor sabe bem quando cortar, é decidido no que quer contar e consegue trazer bem isso, eu gostei bastante dessa abordagem. A fotografia também é bem interessante, especialmente na movimentação da câmera, a forma como ela vai acompanhando os personagens, como a perspectiva de movimento segue quem é o foco da cena, assim proporcionando uma tensão no que eles vão encontrar. A cena que eles estão na boate, do meio para o final do longa, é muito boa, vai acompanhando eles até encontrarem o Vanya perdido em algum dos quartos, passando por três paletas de cores diferentes. Outro destaque é esta coloração, são cores bem vivas, que saem desta seleção mais puxada para o neon, para a iluminação na boate, até momentos mais beges e polidos nas localizações dos ricos, como a casa e o jato. Mas uma coisa que merece o destaque é a seleção musical, pois o soundtrack daqui é maravilhoso. A música inicial que toca na abertura é "Greatest Day", da banda Take That, e ela já dita como vai ser o tom do longa: divertido, sensual, um pouco mais lento quando for sério. Tem outras músicas muito boas que tocam, como a famosa "All the Things She Said", da banda russa t.A.T.u, que além da referência pela nacionalidade, ainda é uma cena sensacional, que combina perfeitamente com o momento. E de fundo toca outras várias músicas de striptease, tem até "Where the Hood At?", do DMX, que foi a única que eu reconheci.

Encerro dizendo o óbvio, o que vocês provavelmente esperariam de mim, que "Anora" é um dos melhores filmes do ano, provavelmente o melhor do diretor (eu só vi um além desse, mas duvido que os que eu não vi sejam melhores). É uma ótima dramédia, mais comédia que drama. Existe um drama bem construído, um desenvolvimento da personagem principal muito bem feito, mostra ela sendo bem feita, a lábia de uma mulher da vida, ela sabe bem como manipular os outros e as situações ao seu favor, uma decisão que gera discussões sobre o longa. Uma comédia muito bem construída, cenas realmente bem engraçadas, momentos cômicos cínicos. Boas atuações, especialmente a Mikey Madison, que é incrível. Sobre Oscar, provavelmente, deve ganhar como melhor filme, atriz e roteiro original, praticamente ganho por agora nesse momento da temporada. Deve brigar por melhor direção e montagem também, além de que deve vir uma indicação para o Lex Luthor russo (não concordo, mas ok, tem piores). E olha, realmente merece a aclamação, é o tipo de filme que eu gosto e que eu veria várias e várias vezes.

Nota - 9,5/10

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