Crítica - Drive My Car (Doraibu mai kâ, 2021)
Um dos filmes mais fascinantes de 2021!
🚨🚨 O texto contém spoilers 🚨🚨
Quando as seguintes palavras: "Drive My Car", são ditas, você provavelmente lembra de The Beatles e não, o filme não é baseado na música, mas sim no conto de mesmo nome escrito por Haruki Murakami (que não tem nada a ver com a música também). Sinceramente, esse filme superou minhas expectativas, achava que seria algo como "Drive" (o nome e o poster me davam essa impressão), mas é totalmente diferente, totalmente mesmo, o filme é um baita drama existencial, que fala sobre abandono, amor, traumas e, principalmente, solidão.
Na direção do filme temos Ryusuke Hamaguchi, um diretor que lança filmes há muitos anos mas que só foi conseguindo ganhar visibilidade em 2016 com um filme gigantesco (317 minutos, bicho). Hamaguchi pega um conto de Murakami e transforma em um "épico silencioso" de quase três horas. O que seria um épico silencioso? Eu sinceramente não sei se existe esse termo, se não eu acabei de inventar, mas o que quero dizer é que Hamaguchi deixa o filme com uma narrativa épica, onde vemos o grande protagonista, sua conselheira, os coadjuvantes em sua volta, os conflitos sendo estabelecidos, mas não é um filme de ação ou algo gigantesco em dinheiro ou ação, mas ele é tão arrepiante quanto sendo simples, é um filme que arrepia só pelos diálogos, pelas filmagens, é um filme que para quem gosta verdadeiramente de cinema é um deleite, é um filme lindo.
Hamaguchi faz um filme de três horas parecer ter uma hora e 50 minutos, é um filme que você não sente passar o tempo, eu pelo menos não senti em nenhum momento, minha imersão no filme tava tão grande que se tivesse mais duas horas eu não notaria que tinham mais duas horas, o filme prende muito pela trama e desenvolvimento dos personagens, é tudo muito fascinante desde o início, onde tem um prólogo de 40 minutos e ali já estabelece todas as principais bases do nosso protagonista Yüsuke Kafuku e a gente vai acompanhando e já se apega com ele logo nos primeiros minutos, ao passar do filme eu me sentia já como um amigo dele de tão imerso que eu tava. Hamaguchi também traz uma metáfora envolvendo o carro, o carro não está no título atoa, ele mostra o quanto o personagem se sente livre dentro daquele carro quando dirige, mas também o quanto ele se prende ao passado tentando se lembrar ao máximo de sua esposa, uma metáfora que serve bem dentro de um carro, pois no carro você tem tanto a sensação de liberdade, mas ainda sim estando preso dentro de várias portas.
Yüsuke é um personagem muito bem desenvolvido, vemos ele no início como um homem comum, que é ator teatral, que tem sua vida pacata e feliz com a mulher que ama mais que tudo, mas que também tem o trauma de ter perdido a filha e o trauma se agrava quando vê sua esposa morta ao chegar em casa. Ao longo do filme vamos vendo ele como um metodista, um dos melhores no que faz, mas vemos ele pessoalmente como um cara traumatizado, que daria de tudo para ver a esposa só mais uma vez, apesar de ter sido traído várias vezes, ele ainda amava ela e ela também amava ele (na minha visão, as traições foram mais por ela ter ideias para suas obras durante ou pós o sexo, não por falta de amor), gostei muito de como esse lado romântico de Yüsuke é trabalhado, dá muita humanidade ao personagem, é um sentimento bastante identificável e pesado, confesso que eu chorei de verdade na cena que ele fala sobre ela na neve.
Eu gostei muito de como o Hamaguchi traz quase um equilíbrio para o personagem do Yüsuke ao trazer a personagem da Misaki para a trama, ela que no início é negada por Yüsuke, mas ao longo do filme os dois vão desenvolvendo uma relação lindíssima, uma relação paternal, onde ele é o pai que ela nunca teve e ela a filha que ele nunca conseguiu ter, ver a construção dos dois ao longo do filme é até satisfatório de certa forma, é muito bom ver dois solitários se encontrando depois de vários momentos trevosos que viveram em suas vidas, eles se completam muito bem e a Misaki também é uma personagem absurdamente bem desenvolvida, ela conta a história dela no filme é o peso é sentido, é uma história pesada, difícil até de imaginar sem ficar triste e ver ela tentando superar os traumas é até meio reflexivo, pois o filme te deixa para pensar como deve ser difícil superar traumas de perdas e abusos mentais, eu nunca sofri isso e espero nunca sofrer, mas é algo que pesa na consciência.
A dupla de atores é perfeita também, o Hidetoshi Nishijima tem uma atuação absurda, uma das grandes atuações do ano, ele demonstra muito bem todo o tipo de sentimento e momento do personagem, desde os momentos mais depressivos até os momentos de descontração, mas para mim aonde ele se destaca é aonde o personagem tá interpretando outros personagens dentro das peças, tem uma das cenas logo após a morte de sua esposa que ele tem um diálogo e quando ele sai de cena começa a chorar pois o diálogo lembrou de sua esposa, aquilo é um absurdo de atuação facial, dá para sentir na cara dele tudo o que o personagem tá pensando e se lembrando, incrível. A Toko Miura como a Misaki também é excelente, ela não tem muita expressão propositalmente para demonstrar o quanto a personagem é traumatizada até hoje com seu passado, a cena na neve (minha favorita do filme) ela mostra tudo isso perfeitamente, a dor de ter perdido a irmã/única amiga, a dor de ter tido uma mãe abusiva e um pai que mal sabia de sua existência, é maravilhoso todo o drama que ela passa nessa cena, convence demais o espectador. Destaque também para as atuações da Reika Kirishima como a esposa de Yüsuke, Oto, ela aparece só no início mas a atuação dela é absurda, principalmente na cena envolvendo atos libidinosos onde ela vai criando toda a história de sua próxima obra na sua cabeça, e também destaque para o Masaki Okada, que faz um papel onde ele consegue fazer você sentir afeto por ele mas também faz você sentir um ódio indomável por ele em outras cenas, é uma boa atuação.
Eu amei "Drive My Car", com certeza está no meu top 3 do ano, é um filme que é realmente uma experiência, uma experiência incrível e silenciosamente épica de quase três horas que passam voando. Tem ótimos personagens, diálogos absurdos, atuações excelentes, uma direção sensacional do Hamaguchi que te deixa com vontade de ver o filme infinitamente. Na minha opinião está entre os 50 melhores filmes da história do Japão e é um dos filmes que vai ser memorável até daqui vários anos no futuro, um filme sútil, doce, emocionante, memorável e marcante, que filme lindo!
Nota - 10/10