Crítica - Homem-Aranha no Aranhaverso (Spider-Man: Into the Spiderverse, 2018)
Uma animação revolucionária.
O Homem-Aranha sempre teve desenhos animados ao longo de sua história, porém todas em formato de série infanto-juvenil, geralmente dividida em várias temporadas e que passava bastante na televisão, tanto aberta quanto fechada. Tem a clássica de 1994, "Homem-Aranha" (1994-1998), depois veio algumas que não fizeram tanto sucesso, até chegar à nostálgica "O Espetacular Homem-Aranha" (2008-2009), que é espetacular (perdão pelo trocadilho), teve "Ultimate Homem-Aranha" (2012-2016), essa também era bem legal, onde o herói quebrava a quarta parede e tinham várias participações especiais de outros heróis, e por fim, mais recentemente teve uma entitulada apenas "Homem-Aranha" (2017-2020). Praticamente tradicional na televisão e no cinema como live action, demorou até para lançarem uma animação do Miranha nos cinemas, isso até tem um pouco de sentido, pois a Marvel sempre foi abaixo nessa questão de animação, principalmente no cinema, e ficava ainda mais fundo quando chegava a comparação com a rival DC. Mas, quando foi lançado, simplesmente veio algo que revolucionou, por ora, a história da animação no cinema, trazendo não só uma maturidade e profundidade para um longa, teoricamente, infantil, mas também por sua estética, sua técnica diferente e a falta de vergonha em utilizar os artifícios da a animação, um lado lúdico que mudou a forma dos estúdios enxergarem a animação recentemente.
Diferentemente das séries animadas citadas no parágrafo anterior, o protagonista do filme não é Peter Parker, mas sim Miles Morales (Shameik Moore), que também ganha poderes após ser mordido por uma aranha geneticamente modificada e ganhou poderes, porém, ao ver o Homem-Aranha Peter de seu universo (Chris Pine) morrer na sua frente, Miles decide se tornar um herói para ajudar as pessoas de Nova York, no entanto, ao visitar o túmulo do herói... Surpresa! Aparece outro Peter, chamado de Peter B. Parker (Jake Johnson), que veio de outro universo e acaba sendo o mentor de Morales enquanto eles descobrem o Multiverso e várias outras versões de Miranhas, incluindo a Gwen-Aranha (Hailee Steinfeld), o Homem-Aranha Noir (Nicolas Cage), Peni Parker (Kimiko Glenn) e seu robô, e ele, o magnífico Porco-Aranha (John Mulaney). É bastante corajosa em todos os quesitos, mas um dos principais é colocar o novo Homem-Aranha como protagonista, pois o Miles é muito recente, ele surgiu em 2011 e a animação começou a ser trabalhada em 2014, ou seja, fizeram um filme sobre um personagem de quadrinhos com três anos de existência, e quando lançou foram sete, muito pouco tempo, mas que já fascinou o público a ponto de já ter um filme e um jogo em menos de dez anos de existência. É um personagem muito legal, de fácil identificação e cativante demais, que merecia sim esse espaço para o público geral conhecê-lo, já que ele não é só um coadjuvante do Peter, é um personagem próprio que vem trilhando um caminho impressionante.
É considerado revolucionário dentro do universo das animações ocidentais, em questão técnica de animação e da própria qualidade. Geralmente as animações são vistas como uma forma de entretenimento inferior, que as pessoas enxergam apenas como uma bobice direcionada para o público infantil, um pensamento que se reforça quando na década passada o cinema para as animações se resume a franquias como "Hotel Transilvânia", "Meu Malvado Favorito" e uma infantilização demasiada em estúdios como a DreamWorks, na qual as pessoas foram se cansando e o preconceito indo aumentando. Porém, do desacreditado estúdio Sony Animation (estúdio de "Emoji: O Filme"), da Marvel que é desacreditada no meio, chegou uma obra lotada de fantasia, lúdica, criativa e, especialmente, cheia de carisma e extremamente passional, é lindo de se ver. Primeiro gostaria de falar dessa técnica, a mistura do 2D com 3D, que não é original deste longa, mas foi popularizado pelo mesmo, e cara, é um encaixe perfeito. O estilo consegue fazer a simulação perfeita de uma HQ, que traz basicamente uma demonstração de como seria um quadrinho em uma animação 3D. Mas não é só estilo, existe toda uma questão mais complexa, no caso o framerate, o famigerado FPS (frames per second, ou em português: quadros por segundo), na qual cada elemento tem uma renderização diferente do outro, somado ao uso de glitches, dá uma originalidade técnica impressionante, é verdadeiramente inacreditável.
Indo para questão narrativa, eu adoro todos os personagens. Miles, que personagem incrível! Primeiro que é muito legal ver ele no cinema sendo apresentado e o pessoal gostando, e cara, é muito legal, eu adoro como ele é desenvolvido aqui. Miles é retratado como um jovem inteligente, um pouco tímido, extremamente talentoso e um quase rebelde que vai para uma das escolas mais badaladas do país, mas que preferia ter continuado no Brooklyn com sua família e em uma escola pública com seus manos. Porém, ao adquirir os poderes, entra o grande lema do Homem-Aranha diretamente na trama: "com grandes poderes vêm grandes responsabilidades", e isso se dá com ele tentando superar uma pressão que ele mesmo sente ao tentar seguir o legado do Peter de sua Terra. Esse desenvolvimento é feito calmamente, com ele só descobrindo o significado do símbolo e o que ele quer representar usando-o lá no final, com ele maturando ao longo das vivências em meio à ação e loucura vivida nos minutos passados. Uma coisa que eu adoro é como trazem a cultura negra americana no longa através do protagonista, não se esquecem das origens do personagem e não façam que seja apenas um detalhe, Miles é a pura representação do hip hop, o cara que faz grafite, usa Air Jordan, escuta rap e tudo mais, o que traz um trabalho de representatividade importantíssimo naturalmente, ouvindo relatos de pessoas negras sobre a relação que tiveram com o Miles é algo muito legal de se ver. Outra coisa que eu curto muito é como os poderes "inéditos" dele funcionam com sua personalidade, dão um sentido para a eletricidade e para a invisibilidade, que é, óbvio, o fato dele ser ansioso e tímido, respectivamente.
O elenco de apoio é outra coisa muito boa, entregando uma equipe inusitada, mas extremamente funcional de Aranhas. O nosso Peter é chamado de Peter B. Parker, que é um perdedor, basicamente. Pete é fracassado, medroso, depressivo, um bêbado gordinho que tem medo de encarar os desafios da vida pessoal dele, é um cara que já perdeu muito e que o traje e ajudar os outros foi a única coisa que lhe restou. Esse desenvolvimento dele e como o Miles e ele vão se ajudando, se melhorando e completando um ao outro nessa relação nada convencional de mestre e aluno é sensacional, você se importa com esses personagens criados por computador como se eles fossem próximos de você, um grande acerto da equipe de direção. Pode ter Tobey Maguire, Andrew Garfield, Tom Holland, mas meu Peter favorito é esse do Jake Johnson, que com a voz traz toda essa desesperança que tem o personagem, que parece que já desistiu da vida e seu único objetivo é o fundo da garrafa, eu realmente adoro essa performance.
Sobre os outros, temos a Gwen-Aranha, que eu chamarei de Spider-Gwen para soar menos esquisito, que é muito legal também, é o carisma personificado. A Gwen tem toda a questão de ter perdido o melhor amigo e ela encontrar essa amizade novamente (e mais do que isso) no relacionamento com o Miles, que tem um desenvolvimento bem agradável, funcionando bem para o lado dramático do longa, e não tem como não gostar dela, ela é demais. Os outros pendem para o lado cômico da história, nisso entregando algo sensacional. O Homem-Aranha Noir é muito bom, primeiro que é o Nicolas Cage interpretando o papel (e no mesmo ano de lançamento, 2018, ele também deu a voz ao Superman em "Jovens Titãs em Ação! Nos Cinemas", ou seja, um ator lendário que interpretou dois dos super-heróis mais icônicos em animações no mesmo ano) e o Cage dá esse ar misterioso proposital à variante, ele é engraçado sem ser piadista, é mais pela situação dele ser extremamente sério, um protagonista de filme dos anos 40, em meio aos outros, sem contar o fato dele enxergar tudo em preto e branco, uma piada recorrente engraçadíssima. A Peni Parker é meio inútil, mas ela representa outro estilo muito interessante: o anime, cujo é um dos elementos com um framerate variado e que dá esse dinamismo da animação técnica. Já o Porco-Aranha é um personagem cartum, assumidamente inspirado nos desenhos clássicos da Warner, que tem um funcionamento cômico incrível, no qual eles conseguem trazer toda essa excentricidade clássica através de frases de efeito e elementos absurdos, como o piano que vem do céu, por exemplo.
Também precisamos falar sobre o Rei do Crime (Liev Schreiber), que é um baita de um vilão, e digo até bastante subestimado. A motivação dele é apenas uma: família, ele perdeu a esposa e o filho por causa do Homem-Aranha e só quer buscar vingança, mas isso se justifica pela humanidade que colocam nele ao explorar esse passado onde as duas pessoas que ele mais amava foram embora. Ele tem sim uma índole vilanesca, uma maldade natural, mas você sente pena dele apesar de tudo, há uma conexão ali que é bem legal. Já o Duende Verde (Jorma Taconne) é meio desperdiçado, subjugado a um vilão genérico quase sem falas, enquanto a Liv Octavius, a Doutora Octopus (Kathryn Hahn), versão feminina do Doutor Octopus, tem excelentes cenas, uma imponência impressionante em cenas de ação e tem seu timing cômico também muito bem explorado. O Gatuno (Mahershala Ali), ou também chamado de Tio Aaron, é um personagem bem interessante, que motiva o Miles, é a relação dele com o protagonista que possibilita a existência do final do longa, e é uma interação bem legal, um escape do personagem principal, porém que é triste a forma na qual se desfecha, e se tem um problema no longa, é a forma na qual o Aaron morre, mas dá para relevar pela qualidade geral de todo o resto.
Sobre o storytelling, é impressionante como tudo é muito bem feito, como essa história é criada, desenvolvida e contada. Reinventou o gênero de super-herói, ponto. Não só isso, como trouxe uma nova identidade para as animações, uma mensagem para os estúdios não terem medo de fazer suas animações utilizarem todos os artifícios possíveis para que surja algo original e cativante. A vibe que passa é perfeita, tem tudo que precisava ter em um filme do Miranha: ação, aventura, comédia, aprendizado, emoção, fantasia, ficção científica, ciência, loucura, mensagens sobre perda, amadurecimento e responsabilidade. Nitidamente quem fez isso sabia do que estava falando e o que estava retratando, é isso que é o Homem-Aranha, é isso o que esse símbolo representa, é tudo que quase todo filme de super-herói deveria ser, pelo menos a vibe de diversão equilibrada com emoção. É emocionante, é passional, você sente vibrando em suas veias, arrepios, é tão bom que dá vontade de ver várias e várias vezes, que deixa os olhos brilhando pela tamanha grandeza. Só aproveitando aqui também para elogiar as canções originais, "Sunflower", que é altamente marcante e que todo mundo gosta, e "What's Up Danger", que toca em um momento icônico da animação.
Louco e revolucionário, "Homem-Aranha no Aranhaverso" é uma das melhores animações de todos os tempos, uma das melhores adaptações da Marvel da história e também o filme que melhor adapta os quadrinhos para o cinema, não só na questão técnica da animação, mas em emoção, loucura e storytelling também. Cara, é isso, é lotado de ação, de sci-fi, fantasia, aventura, em um equilíbrio perfeito entre dramaticidade e comicidade, em que você entra se divertindo e sai mudado, porém ainda rindo. Com personagens espetaculares, bons vilões, um protagonista que merecia demais esse destaque e uma trilha sonora maravilhosa, temos aqui um clássico da animação, que cativou rapidamente o público e deu um grande upgrade nas animações que vieram depois, demorou um pouco porque o estilo de animação demanda muito tempo para ser feito, mas que mudou o jogo, isso é inegável. Eu amo esse filme, vi várias vezes quando lançou e estou ansioso para estar lá no cinema semana que vem apreciando a sequência.
Nota - 10/10