Crítica - Anatomia de uma Queda (Anatomie d'une chute, 2023)

Um drama judicial marcante.

Terceira temporada consecutiva trazendo crítica do vencedor da Palma de Ouro aqui para o perfil, os dois anteriores eu não fui fã, como devem se lembrar,  eu gostei de "Titane" (2021), mas achei apenas bom, creio eu que foi feito mais pela ambiguidade do que para ser objetivamente bom, enquanto "Triângulo da Tristeza" (2022) achei mediano para bom, ficando com a impressão de que foi menos do que poderia ter entregado. Fiquei com uma certa desconfiança deste por esse histórico recente, mas devo admitir que dessa vez o prêmio foi a extremamente merecido, que baita filme. Como vocês sabem, sou bastante fã desses dramas que envolvem essa humanidade toda em volta, obras sobre advocacia, julgamentos, direito no geral, jornalismo, investigação policial, tudo isso gera um interesse natural em mim, e ir assistir este longa sem saber nada além da atriz principal e de envolver tribunal, foi uma certa experiência (definitivamente positiva). Não houveram muitas polêmicas aqui, exceto o esnobe dele pela Academia Francesa como candidato do país para o Oscar de Melhor Filme Internacional, cujo creio eu que se deve ao fato de praticamente metade do longa ser em inglês, pelo menos as principais cenas da protagonista, o que pode ter gerado um pensamento na organização que se o filme ganhasse, provavelmente seria pelo fato de ter o idioma dos EUA em boa parte, o que resultou em uma escolha pelo longa "The Taste of Things", que ainda não foi traduzido para o Brasil, mas seria algo como "O Gosto das Coisas", e que dizem ser bem inferior a este.

Sandra Voyter (Sandra Hüller) é uma renomada escritora alemã que vive em uma parte tranquila e isolada na França com seu marido francês, também escritor e professor, Samuel Maleski (Samuel Theis), e o filho do casal, Daniel (Milo Machado-Graner), que sofreu um acidente e tornou-se deficiente visual. Quando Samuel é encontrado morto após uma queda do último andar do chalé, nisso se instaura uma investigação entorno da dúvida: foi suicídio ou assassinato por parte da esposa? Então Sandra, com auxílio de seu advogado Vincent Renzi (Swann Arlaud) busca pela sua inocência perante à lei. Quem dirige é Justine Triet, uma realizadora relativamente novata, já fez alguns trabalhos mas nada de muito relevante, seu longa mais famoso é "Sybil" (2019), que eu não vi, mas contém um grande elenco, cujo uma das participantes é a própria Sandra Hüller, que repete essa parceria aqui sendo a protagonista e tendo a atuação de uma carreira.

Triet tem suas bases, é como eu digo, hoje não tem mais originalidade 100%, ela vem de inspirações prévias e diversas que geram algo diferente. Aqui dá para notar algumas, como "A Separação" (2011), "As Duas Faces de um Crime" (1996) e "Anatomia de um Crime" (1959) - cujo este último é um clássico estrelado por James Stewart, que aqui, notoriamente, é uma inspiração até para o título. O que cria o original é a abordagem, Triet conduz a trama como algo cru, não tem muita composição externa, é tela, personagens e texto, algo bem teatral, que resulta em uma experiência que atinge bem mais o lado pessoal de quem assiste, porque é como se você estivesse vivenciando uma situação no mundo real, a naturalidade com que é mostrada é um grande trunfo, em determinados momentos a imersão torna-se tão grande que há um esquecimento de estar acompanhando uma ficção. Não tem nem trilha sonora, a única música que toca no longa é "P. I. M. P." do 50 Cent, por incrível que pareça, é tudo trabalhado com tanta calma e maestria que você fica lá paralisado assistindo.

A diretora também tem outro triunfo que é o jeito no qual ela trabalha a ambiguidade do caso, uma manipulação articulada meticulosamente, aumentando bem mais a imersão em tela. Você realmente não sabe o que aconteceu, se fica do lado da protagonista ou creia que vai haver um grande plot twist e ela terminar sendo culpada, isso é trabalhado até o último terço do longa, onde só no final você entenderá o que realmente aconteceu. As vezes você crê na principal, até porque você vai a acompanhando e vai se apegando a ela de uma maneira ou outra, ela é carismática, mas aí mais provas contra vão sendo apresentadas e acaba que essa dúvida vai se instaurando na sua cabeça, mas é de uma forma que não é forçada, Justine não quer colocar as coisas na sua cabeça para criar uma complexidade desnecessária para fazer o longa parecer melhor do que é, por incrível que pareça isso acontece orgânica e diretamente, as linhas de diálogo são muito diretas ao ponto e impactam o espectador.

A única complexidade é a protagonista, porque a personagem tem a própria ambiguidade, como eu já citei, você não sabe se ela é culpada ou inocente até o terceiro ato, então há essa dúvida enquanto à ela. Nisso, o seu desenvolvimento acaba sendo dado pela visão do espectador, pois ela tem vários motivos para ser ambas as coisas, tem o fato de se sentir renegada e atrapalhada pelo marido, sentir-se abandonada, desamada, presa, sentimentos extremamente críveis dentro de uma relação que já não está nos seus melhores momentos. Acaba que com isso existem diversas motivações para ela ser a responsável pelo delito, fazendo com que a diretora também manipule para haver uma desconfiança enquanto a ela. Mas tem toda a questão dela ser uma grande artista, uma autora de renome e uma mãe, acima de tudo, que se preocupa com seu filho, com os sentimentos dele enquanto ao luto e à possibilidade dele ficar contra ela.

Isso tudo culmina em um elenco sensacional, que cada um entrega com êxito o que necessitava para elevar a qualidade da obra. A Sandra Hüller minha nossa senhora, que atuação impecável, fazendo o trabalho de uma carreira. Primeiro é a atuação em múltiplos idiomas, pois tem ela atuando em inglês, francês e alemão (este último em uma escala mínima, mas ainda fala), o que eu considero uma baita dedicação ao papel, e tem aquilo que eu digo muito: atuação não é só diálogo, é reação, em suma, e ela só reagindo já dá um banho em várias performances de outros longas, há toda essa repreensão quanto a ela mesma, uma complexidade e uma emoção inevitável, e quando ela abre a boca é aí que vem o show, pois ela se entrega de corpo e alma ao papel, sumindo Hüller e assumindo Voyter, onde hão monólogos que nos impressionam, sejam pela honestidade, desabafo ou o próprio subtexto criado pela diretora. É importante também citar o garoto Milo Machado-Graner, que eu não sei se é cego realmente ou não, não achei uma confirmação, mas o moleque manda bem, ele passa uma emoção desgraçada em que onde ele tem, estando presente lá sempre e tendo as cenas mais pesadas do longa, onde ele, com tão pouca idade, precisava entregar um nível que poucas crianças conseguiriam, e ele destrói. O Swann Arlaud como o advogado também é um destaque a ser feito, por ele ser uma mente sensata ali no meio e que sempre tenta buscar o máximo essa inocência da sua cliente através de argumentos convincentes.

Creio que aqui seja o teto para comentar sobre o longa sem spoilers, só tenho mais um destaque a fazer, que é o cachorro, o Snoop, que é muito bom, tem cenas boas e importantes para o longa, e também gostaria de destacar que ele me fez descobrir que tinha um prêmio para melhor atuação canina em Cannes, então aí está uma boa curiosidade. "Anatomia de uma Queda" é uma aula dada por Justine Triet de como criar uma protagonista tão interessante com uma atuação tão brilhante, de como manipular o espectador a cada segundo com a ambiguidade de sua narrativa e também criação de um excelente drama judicial, que com certeza é bem marcante e é um dos melhores do ano. Sandra Hüller simplesmente brilhante em sua atuação, entregando 100% de si em uma performance de brilhar os olhos. Uma pena que seu esnobe pela Academia Francesa prejudique na sua caminhada ao Oscar, vejo chances em Melhor Roteiro Original e Melhor Atriz, mas por mim entraria fácil como Melhor Filme, Direção, Montagem e, talvez, até Ator Coadjuvante para o menino. É simplesmente brilhante, assistam se também curtem esse estilo de filme.

Nota - 9,0/10

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