Crítica - O Assassino (The Killer, 2023)

Fincher voltando a fazer o que faz de melhor.

Nesse primeiro parágrafo eu geralmente introduzo o diretor, o contexto do longa e o que o realizador gosta de explorar, mas aqui nem precisa, pois é inacreditável o tanto que eu já falei de David Fincher na página, lá em 2020 quando a página era menor eu fiz um pequeno especial com críticas de seus filmes como preparatório para "Mank" (2020), eu falei sobre "Seven - Os Sete Crimes Capitais" (1995), "Clube da Luta" (1999) e "A Rede Social" (2010), que como vocês devem estar fardos de saber, é um dos meus filmes favoritos. Depois eu falei sobre "Garota Exemplar" (2014) também, outro grande longa. Então aí já vem a carteirada, olha a carreira desse cara, ele pode fazer o que quiser porque não precisa se provar mais para ninguém (isso que eu nem citei tudo). Seu último longa, Mank, é bem divisível, eu vi duas vezes e particularmente acho bastante mediano, e aí acabou criando dúvidas se ele estava enferrujado ou se chegou no teto, mas então ele decide voltar para o thriller, o gênero por qual ele ficou famoso, e decide adaptar uma história em quadrinhos francesa homônima na qual já é o suficiente para dizer que ajudou a salvar o ano sofrível para as HQs no cinema (que o digam "Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania", "As Marvels" e "Besouro Azul"). Lançado pela Netflix e um fenômeno inicialmente, estando como o top 1 mais assistido do mundo no momento que estou escrevendo, dá para dizer que traz a carreira de Fincher na direção de volta aos trilhos.

Acompanhamos aqui um assassino profissional (Michael Fassbender) que é metodista, perfeccionista, frio, efetivo e que manja dos paranauê. Quando um de seus trabalhos falha e ele mata a pessoa errada, sua namorada, Magdala (Sophie Charlotte), acaba sendo brutalmente espancada e deixada no hospital. Nisso, o nosso protagonista decide sair em busca de vingança contra os agressores e enfrentando vários obstáculos durante o percurso. Fincher trabalha o longa como se fosse um videogame, temos esse personagem principal que mal fala (a grande maioria de suas falas são em voice overs) e que tem que passar por várias quests até seu objetivo final, tendo que passar por diferentes fases em diferentes locais com uma estrutura neo-noir que remete claramente a Alfred Hitchcock. É um suspense muito bem trabalhado, em que o foco central é o protagonista e suas motivações, enquanto sua missão acaba por ser um artifício que faça nos gostarmos daquele cara e criar uma afeição por ele e seus motivos. É uma mistura do que mais funciona no cenário atual de filmes e séries e do que mais chama o público, tem um quê de John Wick (claro que sem a ação espalhafatosa, mas a vibe é parecida) e dos suspenses contemporâneos que dominam os tops da Netflix, e também tem o quê do que funcionava no neo-noir e até no western do passado, nos anos 50 e 60.

Essa estrutura de games que o Fincher cria é muito legal de se acompanhar, mas acaba trazendo o principal problema da obra. É interessantíssimo e com muito valor de entretenimento ver esse protagonista passando por essas fases e vencendo os vilões com diferentes métodos, precisando as vezes usar mais criatividade, outras vezes precisar apelar para a brutalidade, outras vencer apenas na conversa e por aí vai. Tem um ar muito bacana em ver o assassino passando por todos aqueles perrengues na busca pela sua retaliação, cada um em um lugar diferente e você vai acompanhando torcendo por ele, pois apesar dele ter um emprego que não é lá dos mais dignos, a motivação dele é extremamente justificável e seus métodos na vida real seriam horrorosos, mas como é ficção, acabam sendo incríveis. O tal problema que eu falei acaba sendo que nessa estrutura, os coadjuvantes são praticamente inúteis e não cumprem o seu propósito de elevar o protagonista, seria muito mais legal se esses personagens secundários fizessem frente e conseguissem desafiar mais o principal na questão dos diálogos, tem alguns que mereciam ficar mais tempo em tela para que a atuação deles favorecessem a eles mesmos e ao Fassbender, acaba que isso não acontece e a única que se sai desse bololo é a Tilda Swinton, que como sempre, entrega uma excelente performance e em uma cena acaba tendo diálogos marcantes.

Dito isso, dá para se dizer que é quase um estudo de personagem, focado 100% no protagonista e suas ambições. Primeiro que ele não tem nome, pelo menos eu não lembro de ter sido citado no longa, nas HQs aparentemente ele se chama Christian, mas não tem nem necessidade de falar isso aqui, pois o Fincher faz com que você se importe com ele só pela ambição e pela frieza, é remetente ao Keanu Reeves como John Wick e ao Clint Eastwood como o Homem Sem Nome da Trilogia dos Dólares, essas duas bases colocadas em meio a algo tão hitchcockiano acabou tendo um funcionamento tão perfeito que chega a ser um dos melhores personagens que o Fincher trabalhou em sua carreira, pelo menos um dos mais interessantes, esse mistério de porque ele está ali e a imprevisibilidade dos seus métodos acaba deixando muito mais legal. Outra coisa que eu acho que melhora é como o Fincher trabalha a dubiedade do trabalho, pois você percebe que é uma coisa que está envenenando a cabeça dele e que deixa-o mais brutal e insano, mas que ao mesmo tempo ele faz apenas por negócios, ele não faz porque gosta, ele tenta ser o mais rápido e efetivo o possível para que acabe logo e ele volte para casa, para seu último feixe de bondade, que é sua namorada (a questão dele com a namorada poderia ser mais desenvolvida que duas cenas também, outra coisa que ficou devendo).

No mais, é preciso dizer o quanto é bom ver o Michael Fassbender tomando rumo na carreira novamente, entregando uma atuação boa em um longa igualmente bom. Essa frieza de pistoleiro dele, como realmente um personagem noir, eleva muito o nível do longa, se não fosse ele ali, dificilmente teria a mesma qualidade, já que ele entrega esse descaso pelo emprego de forma tão sútil que a maioria dos outros atores provavelmente seriam criticados por inexpressividade ou por falta de carisma, ele consegue entregar um personagem que é cativante de maneira muito específica, ele é ao mesmo tempo que é bem calculista e metodista. A complexidade disso é bem trabalhada e ganha o auxílio de um roteirista que volta a trabalhar com Fincher depois de quase 30 anos, Andrew Kevin Walker, roteirista de "Seven", que aqui retoma seus bons momentos e traz diálogos espetaculares, especialmente os voice overs do Fassbender, nos quais você sempre pega-se refletindo, pois não são aqueles diálogos que tentam parecer inteligentes para causar uma obscuridade, mas fazem você acabar repensando sobre o cotidiano de alguma forma. Com certeza fica como um grande destaque daqui, esse combo do ator com as falas foi muito funcional.

Na parte técnica, não dá para destacar individualmente, pois é um exímio conjunto que Fincher unifica a favor da experiência, utilizando a cinematografia para emular os planos de uma graphic novel, nota-se nas transições que ele tenta buscar por essa estrutura que funciona muito bem, na minha visão, pois tem a sensação de estar lendo a HQ. Essa mistura estrutural entre HQs, games e o noir é muito bem trabalhada na edição, e só tendo um diretor como o Fincher para trabalhar tudo isso sem parecer um desastre, ele não equilibra, mas mescla isso, e é incrível. A fotografia utiliza uma paleta de cores com um azul mais claro, um cinza, um marrom, que dão esse ar neo-noir perfeitamente, a mescla da claridade com a escuridão beira a perfeição, faz com que você entre de cabeça naquela jornada, porque é um visual lindíssimo que dá gosto de assistir. O som também é um absurdo de bom, ajuda na ambientação e na construção da tensão, há um exímio trabalho de mixagem onde o som ambiente e a trilha sonora acabam se mesclando e gerando uma grande experiência sonora. Trilha esta que é composta pelos grandes Trent Reznor e Atticus Ross, dupla da banda Nine Inch Nails que firmaram essa parceria com o Fincher há mais de treze anos e continuam firmes e fortes. Aqui eles trazem essa modernização de Hitchcock na trilha, remetendo ao clássico diretor e ao gênero nos anos 50. As vezes,  até pelo silêncio do protagonista, a trilha toma conta e você percebe o quão boa e o quanto combina, capta exatamente a essência necessária.

Sobre Oscar, como a Netflix não escolheu esse como seu foco nas categorias principais, acaba que também será prejudicado em outras categorias. Hoje apostaria que a única indicação que pega é em som, colocando também uma pequena chance em fotografia e montagem, mas mais do que isso só se envolver uma reviravolta nesses últimos dois meses antes da revelação dos indicados. Encerro dizendo que "O Assassino" tem problemas, faltam coadjuvantes de peso, o arco do protagonista com sua namorada poderia ter sido mais explorado, mas inegavelmente é um ótimo filme, é o Fincher fazendo o que faz melhor, um suspense que dá gosto de assistir. Um exímio trabalho encima do protagonista, que é realmente bad-ass e remete ao Clint Eastwood e ao John Wick, ainda contando com uma excelente performance do Michael Fassbender finalmente fazendo um filme bom. É muito bom, esse é o Fincher que eu conheço e adoro

Nota - 8,0/10

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