Crítica - Resistência (The Creator, 2023)
Finalmente um blockbuster original, pena que fica aquém do que podia.
A escassez de originalidade em Hollywood vem se provando cada vez mais, claro, óbvio que estão tendo longas originais, mas em blockbusters é cada vez mais raro. Filmes direcionados para o grande público tem base em livros, quadrinhos, personagens famosos, games e as cinebiografias de pessoas reais, é cada vez mais difícil ver um longa que não é baseado em nada criado anteriormente (sempre bom lembrar que base e inspiração são coisas bem diferentes). Recentemente, acho que o único exemplo de original que tivemos nesse quesito foi com o Jordan Peele fazendo "Não! Não Olhe!" (2022). Quem arrisca é Gareth Edwards, responsável por filmes de grandes franquias, como o reboot de "Godzilla" (2014) e o spin-off "Rogue One: Uma História Star Wars" (2016), cujo sempre quis realizar um grande projeto de ficção científica, que ficasse no tier mais alto ao lado de inspirações notáveis como "Blade Runner: O Caçador de Andróides" (1982) e até a própria franquia Star Wars. O trailer é sensacional, na minha opinião o melhor do ano tocando "Dream On" do Aerosmith, deu arrepios, então a expectativa foi criada e a promessa de um novo fenômeno sci-fi também. Todavia, correspondeu ao hype?
Em um mundo onde a inteligência artificial foi introduzida em meio à população, tendo cargos como faxineiros, cozinheiros e até na segurança pública, um desastre nuclear aconteceu em Los Angeles, quando a máquina criada para proteger a humanidade, tentou destruí-la. Com isso, o ocidente proibiu a IA em seu território, no entanto, a Ásia se recusou, fazendo com que iniciasse uma guerra mundial, onde os ocidentais (obviamente liderados pelos EUA) vão atrás dos robôs no oriente. Joshua Taylor (John David Washington) foi um agente infiltrado dos EUA no outro lado do mundo e se casou com Maya (Gemma Chan), que faleceu. Anos depois da morte da moça, nosso protagonista é enviado de volta em busca do Nirmata, o desenvolvedor da IA, que é o tal Criador (que dá o título original ao longa), no entanto, o que ele encontra é uma criança andróide, Alphie (Madeleine Yuna Voyles). Então, Joshua se vê num dilema entre fazer o certo pelo seu país ou pela sua própria moral. Edwards tenta desenvolver todas as discussões que as melhores ficções científicas tem: avanços tecnológicos, relações interpessoais, religião, meio ambiente, população, ética, moral e conflitos (pessoais ou burocráticos). Isso funciona bem... Nos primeiros quarenta minutos, pois de resto, bem... Deixou a desejar, pecou no desenvolvimento.
No papel, é tudo muito bom, a trama, a ideia, a crítica, as reviravoltas, só que, como diria o narrador Milton Leite: "a ideia até que foi boa, mas a execução... Meu Deus...". Claro que não é ruim, não chega a ser desgostoso de assistir, mas é preciso ter uma conexão que infelizmente eu acabei não criando. Como disse, os primeiros quarenta minutos não são apenas bons, são excelentes, uma obra-prima, puro suco do melhor que o gênero tem a oferecer, as discussões, o desenvolvimento do personagem amargurado, os traumas, o que levou ele até aquele momento e seus objetivos. Esse primeiro ato tem excelente trabalho encima das questões do personagem, sua falta de objetivo, falta de crença, é um cara que já perdeu tudo que lhe importava, que está apenas vivendo por viver, não gosta do seu emprego e vai ao psicólogo para lidar com o que ocorreu e o que não aconteceu. Serve para entendermos como ele ficou assim, mas foi insuficiente para pegar apreço por ele, existe empatia, porém não conexão, até aí ok, esperava que seria melhor trabalhado ao longo da narrativa. Infelizmente não alcancei uma sintonia com ele, gostei da atuação (falo mais depois), mas a relação com a esposa chega uma hora que fica forçado, assim como os plot twists que são postos.
Edwards é bom na ação, os momentos tensos dentro das situações na qual Joshua se encontra são muito bem trabalhadas na direção, mas o problema do diretor é que ele não consegue sustentar o que funciona, pode perceber que tudo que ele faz tem começos extraordinários, mas que não mantém as coisas boas que fazem essa funcionalidade. Em "Godzilla" ele mata o interesse e a credibilidade junto com o personagem do Bryan Cranston, gerando um protagonista sem graça e um Godzilla que só aparece oito minutos e sete desses no escuro absoluto. Em "Rogue One" era algo totalmente diferente de tudo já visto antes na franquia, sei que muita gente adora, mas para mim uma hora a história havia virado uma lore de brincadeira infantil que foi salva pelo Darth Vader no final. Aqui ocorre algo semelhante, já que tudo no início beira à perfeição, mas depois, no segundo capítulo (inclusive divisão de capítulos TOTALMENTE desnecessária), quando ele começa a desenvolver a menina robô overpower, perde um pouco da graça, já que o ritmo dá uma acalmada e Edwards não se importa em criar aproximação com a andróide, ele provavelmente achava que não era necessário pois na cabeça dele a ideia já foi tão genial que fazia o trabalho por ele. Ainda inventam um plot twist envolvendo essa garota que... Com todo respeito, é inacreditável até para uma ficção científica. A ideia base da reviravolta de relacionar o protagonista com o dito Nirmata é ótima, agora a parte da criança eu não tankei.
Outro problema é o desperdício de bons atores no elenco. Ken Watanabe lotado de CGI e tendo poucas linhas de diálogo, quando abre a boca não fala muita coisa que importa, é redundante a participação dele na minha ótica. A Gemma Chan é resumida a trocar uns beijos com o John David Washington, aparece tempo demais para poucas falas e a relação dela com o Joshua é até bem construída, flashbacks que dão alguma credibilidade, mas para a importância que ela tem na história ainda é uma participação bem pequena, poderia ter mais desenvolvimento ao redor dela. Esses dois são até razoáveis, mas agora o que fazem com a Allison Janney é imperdoável, transformam ela numa versão genérica do General Quaritch de "Avatar" (2009), que é pior em tudo, não tem imponência, motivação mais rasa que uma piscina de criança e a resumem em uma militar genérica. Cara, é uma figura antagônica que não põe medo algum, a sensação quando ela aparece na tela é totalmente nula. Quem se salva é o John David Washington, que é um cara que herdou o dom do protagonismo, ele sabe como carregar uma obra sozinho se for preciso, e aqui ele faz o máximo para que você tenha relação com algo na tela, ele se esforça para que pelo menos você consiga empatizar com aquela situação e manda muito bem.
Uma coisa muito boa é a mensagem quanto à inteligência artificial e ao ser humano. Esse ano a IA vem sendo a grande novidade e muitos pensam que ela pode tomar o lugar da população, de não ter mais empregos e coisa parecida. Primeiro que é besteira ter medo desse bagulho, robô não sabe nem reconhecer o que é semáforo, como é que irei temer esse negócio? Segundo que a história da humanidade é essa, funções são extintas, mas outras são criadas, só olhar o exemplo do Ford e o Fordismo, onde até hoje tem milhões de pessoas empregadas na companhia mesmo com robô construindo o carro. Há todo um debate se a inteligência artificial vai acabar com o cinema, substituir os roteiristas, os atores, mas particularmente eu acho muito difícil, já que é uma comoção que teve com a internet e outras tecnologias, que tornaram-se auxiliares na indústria. E é exatamente o que acontece aqui, já que a ia tornou-se auxiliar do ser humano, robôs fazendo segurança pública e tals, mas no fim acabaram se provando fúteis num geral, porque o que verdadeiramente ferrou com a humanidade nesse universo do longa acabou sendo o próprio ser humano, o verdadeiro mal da humanidade é ela mesma, não é um robozinho, não é a internet, é uma autodestruição que beira o masoquismo, só olhar o que acontece aqui, colocaram a culpa do quase apocalipse nos androides, mas que foi uma falha dos humanos que erraram na programação. Nenhuma tecnologia é problemática, o problema é a forma com que as pessoas a usarão, e essa mensagem é importantíssima.
O maior destaque é a parte técnica, já que, por enquanto é o filme visualmente mais bonito de 2023, ao lado de mais um ou outro. São U$80 milhões de dólares investidos, apenas, é menos que a metade de supostas "superproduções" desse mesmo ano, como "Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania", "As Marvels" (que são da mesma distribuidora!!!) e "The Flash" e até inferior a de longas que não usam nem tantos efeitos computadorizados, como "Oppenheimer", "John Wick 4: Baba Yaga" e "Assassinos da Lua das Flores". É invejável, uma qualidade impressionante, são efeitos tão bonitos, tão polidos e que são em uma enorme quantidade, são centenas de robôs comuns ou com o rosto dos atores, mesmo assim há uma individualidade em cada um quando mostrado, não tem nada bizarro, a qualidade gráfica é impressionante, daria um excelente videogame da nova geração. Provavelmente será indicado ao Oscar de Efeitos Visuais e por mim é facilmente o vencedor. Também colocaria em outras categorias como design de produção, fotografia e som. Principalmente design de produção, onde o worldbuilding é impressionante, a demonstração desse futuro pós-apocalíptico, com ar tóxico, uma desesperança que paira os ares, ajudado pela fotografia onde passa para nós esses perrengues através de uma paleta de cores remetente a grandes obras do gênero, e a construção visual, a cenografia, design dos robôs, dos jatos, da grande nave do governo americano, é tudo espetacularmente bem feito.
Entre erros e acertos, "Resistência" (péssima tradução inclusive, tira o sentido da mensagem do filme e não tem nenhuma relação com o título original) acaba por ter um potencial desperdiçado, começa no primeiro ato prometendo uma nova obra-prima da ficção científica, entregando muita ação e conceitos interessantíssimos, porém se perde depois ao pôr o pé no freio e nos deixar com a construção de uma forçada relação de pai e filho, plot twists que no papel são bons, mas a execução deixa a desejar, não impactam e quando impacta é pela incredibilidade. Desperdiça um elenco de bons atores, com exceção de John David Washington, que carrega bem a trama, todos os outros são utilizados de maneira pífia e genérica. Tem uma boa mensagem sobre humanidade e IA, mas a verdadeira mensagem que me passou foi que não adianta ser original e ter a melhor qualidade gráfica do ano, tem que ter um diretor que saiba aproveitar potencial que tem em suas mãos, nisso ficando aquém do seu potencial, o que é uma pena.
Nota - 6,0/10