Crítica - Edward Mãos de Tesoura (Edward Scissorhands, 1990)
A magia inenarrável de Tim Burton.
É uma honra falar deste filme na página, já o citei em muitos posts, mas agora fazer uma crítica sobre é certamente especial. Não é um dos meus filmes favoritos, nem de longe, mas indubitavelmente estamos falando de um clássico aqui, do cinema, da década de 90, da Sessão da Tarde e de Tim Burton, na época que suas obras funcionavam. Burton sempre buscou pelo inesperado em seus longas, buscando pegar histórias, mitos ou lendas já conhecidas e moldá-las ao seu jeito maluco e fantasioso de contar histórias, como no memorável "Os Fantasmas Se Divertem" (1987), onde ele esculpe o conceito de fantasmas/espíritos à sua maneira, e neste ele cria sua versão do Frankenstein, onde ele trabalha com seu protagonista uma versão inacabada de um homem criado por um cientista maluco. Sendo ambientado em meados do Século XX, temos uma obra certamente inesquecível pela sensação única que causa.
Quando uma vendedora de cosméticos chamada Peg (Dianne Wiest) está tentando vender seus produtos ela acaba parando em um castelo no alto de uma colina, aparentemente abandonado, porém, ela descobre Edward (Johnny Depp), um experimento criado por um falecido inventor (Vincent Price), que morreu antes lhe dar as mãos, fazendo com que Edward tenha tesouras no lugar das mãos. Peg o acolhe em sua casa, fazendo com que o moço torne-se uma sensação da cidade pela sua habilidade com cortes de cabelo e grama, mas também que acabe se apaixonando por Kim (Winona Ryder), a filha de Peg, que é uma adolescente em uma fase de rebeldia, mas que acaba correspondendo o sentimento. A estética de Burton é, facilmente, uma das mais reconhecíveis do cinema, o sentimento fantasioso em volta, a forma fabulosa que ele conta suas histórias, e considero esta sua obra mais emocionante, seus outros principais trabalhos são majoritariamente calcados em um tom cômico, este é um conto de fadas, é quando a estranheza torna-se fantástica e, posteriormente, trágica.
O tom mantém-se nessa vibe, você nunca sabe o que virá depois. Burton vai apresentando como uma fábula, Edward é um personagem fabuloso, ele tem uma inocência e uma bondade gigantesca, nisso fazendo com que todos à sua volta se encantem por ele, futuramente termina com que ele seja caçado até a morte. A construção que o diretor faz é magnífica, você vai acompanhando lentamente a jornada deste homem, como as pessoas se fascinam por ele, pelo seu talento, como ele vai tendo uma aceitação de si mesmo e parando de enxergar as mãos de tesoura como uma falha, mas sim como um diferencial, transformando-o em um habilidoso escultor e cabeleireiro. Essa jornada também passa pela sua relação com a população daquela área, o longa se passa em meados da década de 60, na época onde a televisão era novidade e a moda feminina era ser uma dondoca, e Edward, com seu dom para cortar cabelo, acaba-se tornando um fenômeno naquela área, fazendo até com que ele, que seria considerado uma aberração pelo preconceito da sociedade, ficasse até desejado pelas mulheres da rua.
Como já citei, Edward é um tanto quanto inocente, e é isso que o torna um personagem interessante. Sua ingenuidade dá este tom de fábula ao mesmo tempo que é por isso que surge a comicidade na narrativa, tendo situações onde ele é colocado e não sabe como agir. É isto que eu acho sensacional sobre este filme, a subversão de expectativa, pois imagine se não existisse a obra e surgissem com a ideia de um personagem com lâminas ao invés das mãos? Claramente hoje em dia seria um slasher dos bem vagabundos, e é essa a natureza do pensamento, facas e tesouras remetem espontaneamente à violência, e transformar esse conceito deste personagem num homem extremamente bondoso e puro. Até quando Edward comete erros, não é por querer ou sem necessidade, no final ele acaba matando o antagonista, Jim (Anthony Michael Hall), porque era a única coisa a se fazer.
Mas um fato é que Edward não seria nada sem Johnny Depp no papel, no que eu considero a melhor atuação de toda sua carreira. Hoje em dia nos acostumamos a ver o ator entregando papéis completamente surtados, personagens expressivos e excêntricos até o talo, como Jack Sparrow de "Piratas do Caribe" (2003-2017), Willy Wonka de "A Fantástica Fábrica de Chocolate" (2005), Chapeleiro Maluco de "Alice no País das Maravilhas" (2010) e até atribuindo esta vibe a outros personagens como o Grindelwald de "Animais Fantásticos e Os Crimes de Grindelwald" (2018), mas aqui ele se vê calado e contido, entregando uma atuação sutil e detalhista. O olhar dele diz muita coisa, é uma mensagem de conhecimento ao mesmo tempo de confusão e incauta que nos fascina nessa história, ele atua de uma maneira bem travada, que tem essa questão de adaptação ao mundo urbano e a descoberta de uma nova realidade. Depp faz com que criemos afeição com algo que em qualquer outra abordagem seria violento e asqueroso, mas graças a sua performance, é fofo e carismático.
Também dá para se dizer que não seria a mesma coisa sem a relação de Edward com Kim. A garota é, inicialmente, apenas um retrato de uma juventude rebelde daquela época dos Estados Unidos, jovens descolados que saem de casa e voltam tarde, passeios em shoppings, música alta e televisão como lazer, ela e seu grupinho são insuportáveis no início, no entanto, à medida que Edward se encanta com a moça, os espectadores vão se encantando junto. O romance entre eles é rápido, mas através da abordagem de Tim Burton você sente o amor, a paixão, a magia, essa reciprocidade que vai se constituindo naturalmente e criando um casal memorável da época. Entretanto, é disso que surge o calcanhar de Aquiles do longa na minha visão, que é o vilão, o namorado da Kim, que não passa de um valentão babaca que virou um corno revoltado, é apenas isso, a motivação dele é matar o cara que colocou chifre nele, é bem meia boca. Claro, na época funcionou, mas nos moldes atuais da indústria acaba que isso perde a força, e como sabemos que naquela época já existiam vilões excelentes há tempos (a distância desse filme para hoje em dia é semelhante a distância para "Psicose"), acaba sendo um ponto negativo.
Falando por último de parte técnica, é uma construção absurda. Questão de design de produção, a cena inicial é absurda até hoje, tudo bem que vendo em uma tv com mais qualidade é perceptível que é uma maquete, mas mesmo assim ninguém se importa, o que a equipe técnica fez ali para criar o castelo no alto da colina e filmar em algo semelhante a um plano sequência é magnífico. A fotografia é um absurdo, a paleta de cores vai mudando conforme a cena e o ambiente, mas sempre mantendo uma qualidade impressionante, especialmente em momentos onde este lado mais gótico toma conta. Outro destaque é a maquiagem, não só do Edward com todas seus detalhes inacabados e cicatrizes, como também da Winona Ryder idosa, que é quase imperceptível. Mas a melhor coisa disparada é a trilha sonora marcante de Danny Elfman, que traz tudo isso que eu já citei à tona: é emocionante, há uma melancolia gótica, tem o tom natalino e a vibe de contos de fadas que fascina pela tamanha sutileza quando em tela, definitivamente uma das melhores do cinema, na minha opinião.
Não tem muito para onde fugir, "Edward Mãos de Tesoura" é um clássico indubitável das festas de fim de ano, de sua época e da filmografia de Tim Burton. Com um estilo fantástico e lúdico que subverte o conceito de Frankenstein para um jovem homem ingênuo e bondoso. Há uma emoção presente em todo o longa, é realmente a sensação de presenciar um clássico em nossa frente. Com Johnny Depp na melhor atuação de sua carreira, entregando um personagem inocente, ao mesmo tempo que é carismático sem quase falar, com Tim Burton no auge da lucidez, entregando uma direção espetacular que remete a contos de fadas e fantasia, e Danny Elfman inspirado trazendo uma das melhores trilhas do cinema, com certeza temos um filme inesquecível para quem assiste, é simplesmente fantástico em todo e qualquer sentido.
Nota - 9,5/10