Crítica - O Mundo Depois de Nós (Leave the World Behind, 2023)
A distopia mais realista e assustadora que poderia ter sido lançada neste momento.
Eu não pretendia falar sobre este filme, achei que iria ser mais um daqueles da Netflix que vem, ficam uma semana no top 10, e somem, mas, ele ficou, e foi isso que atiçou o meu interesse, porque se ele continuou em pauta, é porque tem algo a mais. A questão é que há a reclamação clássica de longas de terror atuais: "o final é aberto", "não faz sentido", "a mensagem é confusa" e por aí vai, mas esse tipo de frase (e de pessoas que as comentam) é justamente uma das críticas que são feitas por Sam Esmail. O diretor e co-roteirista é responsável pela famosa série "Mr. Robot" (2015-2019) e aqui ele pega um livro homônimo (que dizem ser mais ambíguo) e tenta criar uma espécie de "apocalipse realista", utilizando de crises políticas e ambientais para gerar um colapso em um longa desconfortável, intrigante e esteticamente inteligente, que apesar de ser bastante expositivo, acaba sendo bem mais interessante do que aparenta, termina que é um "apocalipse palpável", mostrando coisas que poderiam ter acontecido já há muito tempo, o que pode ser comprovado pelo fato de termos Barack Obama, ex-presidente dos Estados Unidos, como um dos produtores executivos (de longe um dos frames mais assustadores é o nome dele nos créditos).
Quando decide fazer um programa diferente em família, Amanda (Julia Roberts) aluga um casarão no Airbnb para ela, seu marido, o professor de faculdade Clay (Ethan Hawke) e seus dois filhos: o gamer Archie (Charlie Evans) e a caçula fanática por séries Rose (Farrah Mackenzie). No entanto, quando bizarrices começam a acontecer, como um navio encalhar no meio da praia onde estavam e as comunicações e a internet caírem, o casal se vê em uma situação bizarra, que se agrava quando batem à sua porta o classudo G. H. Scott (Mahershala Ali) e sua filha Ruth (Myha'la Herrold), cujo são os donos da casa e querem passar a noite nela, pois a cidade está um caos. Nisso, as duas famílias acabam criando laços para entender o que está rolando e tentar buscar até a última gota de otimismo que escaparão dessa situação. Esmail busca inspirações em Jordan Peele e M. Night Shyamalan para nos contar essa história, mas ao invés de apelar para o sobrenatural ou para alienígenas, como seria a tendência, ele decide utilizar um contexto real na sua trama, com desde o início alertando que algo está por vir através da trilha sonora ou de frames ambíguos que acabam gerando curiosidade.
A questão é que, na minha interpretação, ele critica uma espécie de negligência do povo estadunidense com tudo que é causado pelo país ao redor do mundo e que quando chega até eles, não há salvação, nem justificativa, apenas aceitação. O que melhora é a abrangência, pois se estende à uma crítica aos humanos em relação ao mundo, pois é só notar tudo que vivemos, estão acontecendo desastres em nossas frentes, a natureza está se decompondo por culpa nossa, tem queimadas, derretimento de geleiras, movimentos de placas tectônicas, clima desordenado e por interferência humana. O ser humano é ingrato, recebe uma natureza tão bela de graça e a banaliza, hão várias mensagens de conscientização em relação ao uso de água, emissão de gases, para nós tomarmos cuidados com isso, enquanto várias empresas (que às vezes fazem propagandas quanto a isso) são igualmente culpadas. A Terra esgota seus recursos anuais em agosto, a gente exige demais do planeta e acaba gerando isso. Eu mesmo quando olho as notícias acabo tendo crises de ansiedade em alguns momentos por tamanhos absurdos que vem acontecendo e é essa a mensagem que o diretor quer, ele quer que você se sinta desconfortável, se sinta culpado, porque é perceptível que a mensagem bateu tão forte que é só refletir sobre o que eu acabei de escrever.
Agora voltando ao contexto mais político da coisa, há toda essa questão de que é um ataque aos EUA que está pagando por tudo ao que fez ao mundo, o que é realidade, se não existisse Estados Unidos o mundo teria muito mais paz (e pode crer que talvez metade do parágrafo anterior não teria sido escrito, ou o texto inteiro, porque é um filme norteamericano), o tanto de guerras que esse país causou ou se meteu sem ninguém chamar é impressionante, e o que acabou confundindo o pessoal é justamente isso, é uma mensagem que eu sinceramente achei tão simples de entender, porque é literalmente exposta no diálogo final entre os protagonistas masculinos, e dizem que no livro acaba sendo mais complexo ainda, então essa conversa deu uma salvada. Acaba que pela minha interpretação não é o fim do mundo, é um ataque combinado entre vários países à terra do Tio Sam para dar um fim a tudo que eles começaram.
Agora depois de literalmente meter um final explicado, bora falar sobre o filme em si. A direção é boa, acho que em alguns momentos dá uma caída, não se sustenta totalmente, mas é sensacional nos pontos-chave, pois ele tem uns joguinhos de câmera criativos que causam o tal desconforto que eu já falei, seja pelo ângulo, pelo foco no rosto de alguns personagens, é como se estivesse passando para você que não tem nada em ordem, mesmo quando são apenas conversas corriqueiras, tem algo ali para incomodar. Ele cria meio que esse clima de terror lentamente, com a montagem e a trilha sonora ao seu favor, criando esse clima que remete a esse terror mais natural que foca em um certo grupo de pessoas dentro de uma catástrofe maior, usando até o clichê do gênero de ter um convidado indesejado no local, que geralmente é tratado como um possível vilão. Aqui, a aparição de G.H. e Ruth serve quase como um teste social para o casal protagonista, pois vemos um homem bem vestido, com uma demasiada classe, vocabulário impecável, dirigindo um carro de luxo e com um conhecimento cultural fascinante, mas que é negro, o que acaba liberando até uma espécie de racismo na mulher, que age feito uma Karen em muitos momentos.
Enquanto para o marido, G.H. não é suspeito e parece estar falando a verdade (no final ele estava certo), mas ele recebe outro teste mais à frente quando tem de lidar com uma mulher latina pedindo ajuda no meio da estrada e ele recusando. O que acaba sendo um ponto hipócrita ao final quando ele implora chorando para um homem em busca de ajuda para o filho doente. Cada um do casal tem uma frase que expõe suas verdadeiras personalidades, Amanda diz no início: "eu percebi que talvez eu apenas odeie as pessoas" e Clay no final fala: "sem internet e GPS eu sou um inútil", o que acaba refletindo muito na nossa sociedade atual, pois falamos aqui sobre impaciência, falta de compaixão, dependência eletrônica, a sociedade de hoje não consegue mais se suportar entre si e tem uma necessidade inexplicável de ter que gravar tudo, fazer registros que serão vistos poucas vezes e cairão no esquecimento sendo apagadas para liberar espaço no celular. A verdade é que, tirando o G.H. e a garotinha fã de Friends, são todos pessoas horríveis.
Em atuações temos um prato cheio de belas entregas. Começando pelas próprias escalações: uma estrela de cinema dos anos 90 que sustenta a própria fama até hoje, um vencedor de dois Oscars de atuação na década passada, um ator mega renomado que vem escolhendo seus projetos a dedo e aprimorando cada vez mais sua filmografia, uma novata em ascensão, e o Kevin Bacon com uma pontinha impactante no final. Julia Roberts faz um projeto de Karen, como já falei, é aquele tipo de pessoa irritada com tudo e todos, que vive agindo por impulso, tem preconceitos e um ódio interno por tudo, ela entrega isso de maneira crível que impacta, a cara dela de raiva constante é muito convincente. Ethan Hawke faz o papel de pai (ele que é especialista nisso), mas ele faz um covarde, um cara infeliz que prefere interiorizar seus pensamentos e viver sem stress, mas pelas atitudes tomadas por ele você sente que há uma preocupação, mas percebe que é na verdade tão medroso quanto as crianças, e ele é brilhante em várias partes, entregando diferentes momentos do mesmo personagem com tanta verdade que você não enxerga mais o ator.
Mahershala Ali é incrível, eu sou muito fã desse cara, porque ele tem uma classe absurda, o cara é fino, escolhe papéis variados e entrega cada um de forma e jeito diferente, e aqui ele faz um personagem que não foge muito da personalidade real dele, mas impacta pelo nível de excelência que ele coloca, tem de longe as melhores falas do filme e consegue fazer com que você se importe com ele genuinamente, ele é um cara culto, com bom vocabulário e dicção, conhecimento absurdo e uma inteligência e senso que nenhum outro personagem possui. Na minha visão, ele poderia estar nas cabeças por uma vaga ao Oscar de coadjuvante sem nenhum exagero. Myha'la Herrold é uma boa revelação, entrega boas cenas e demonstra um potencial enorme, pois a versatilidade dela aqui é impressionante, ela é insuportável no início, nariz empinado, mas com o passar você vai notando as inseguranças dela e entendendo o lado pessoal, a garota tem futuro. Tem os dois filhos da Julia Roberts e do Ethan Hawke, o mais velho que é um adolescente insuportável que só quer saber de videogame e masturbação, e a garotinha que não liga para o mundo exterior e só quer saber de terminar sua série, o que é um bom retrato da galera (tipo eu) que vê problemas acontecendo ao redor e utilizam séries, filmes ou música para criar um escape da realidade, e a escolha por "Friends" ser usado como o vício dela é ótima por justamente ser uma série que quem é fã não se cansa e vê milhares de vezes pelo conforto que causa estar em meio àquela história que você cria uma familiaridade, eu tenho isso com "How I Met Your Mother" e "Dois Homens e Meio", por exemplo.
Tem alguns problemas, acho que principalmente em relação ao ritmo, onde em algumas cenas fica sonolento, aquelas famosas partes onde você pega no celular e deixa seguindo, tem também uma falta de comunicação muito grande, não falo por mim, mas se muita gente não conseguiu entender é porque teve erros ali para facilitar o entendimento do espectador, mas dane-se porque o que importa não é entender, é sentir. E dá para se dizer que "O Mundo Depois de Nós" te faz sentir muitas coisas: angústia, raiva, confusão, culpa, choque, incomodação e vários outros. Não tem piadas, não tem interesse em ser entendido (apesar da mensagem ser mais exposta que uma fratura de um motoqueiro acidentado), o interesse é te mostrar as consequências de problemas causados pela própria prepotência, uma mensagem que acaba sendo muito mais abrangente do que parece. Elenco sensacional, ótima trilha sonora e um apocalipse possível causando ainda mais o terror do longa, temos um bom objeto de discussão e um filme muito bem feito.
Nota - 7,5/10