Crítica - Godzilla Minus One (Gojira -1.0, 2023)

As consequências da Guerra e um Godzilla realmente ameaçador.

Finalmente esta crítica saiu, era para ter sido postada no início do ano, mas vários imprevistos acabaram atrasando minha primeira visita ao filme em praticamente nove meses (literalmente alguma mulher engravidou e deu a luz nesse tempo, para entender a demora). Acontece que este, apesar de ser um longa sobre o Godzilla, um monstro famoso, um personagem icônico, enfrentou vários problemas quanto a distribuição. Foi lançado em poucas salas no Brasil lá em dezembro, devido a questões contratuais, e terminou que na minha cidade as únicas sessões eram muito tarde e acabou que preferi ver quando vazasse. Aí passou janeiro, fevereiro, passou o Oscar, onde este venceu na categoria de melhores efeitos visuais, e nada. Até que chegou no streaming, de surpresa, quando a Netflix o liberou no mundo inteiro, só que aí eu já tinha outras prioridades na minha lista, tanto filmes quanto séries, e terminou que deixei para depois novamente. Mas o depois chegou, já assisti a tudo que pretendia antes deste e cá está a sua vez. E olha, meus caros seguidores, eu me arrependo de ter demorado tanto para assistir. Que filmaço, que espetáculo! É uma amostra perfeita do quão bom pode ser um kaiju, um subgênero de ação marginalizado por Hollywood e suas adaptações pífias de obras orientais, se for bem feito e produzido com vontade.

Logo após a Segunda Guerra Mundial, vemos as consequências no Japão quanto aos impactos, às perdas e ao sofrimento que o povo japonês passou por esse período conturbado da civilização, onde uma parte da população foi simplesmente apagada com o lançamento de bombas atômicas jogadas pelos Estados Unidos em Hiroshima e Nagasaki (maldito Cillian Murphy). Entretanto, a radiação nuclear de um teste feito nas águas acabou gerando uma criatura monstruosa, reptiliana e titânica, chamada de Gojira (ou Godzilla, como conhecemos aqui no ocidente). Acompanhamos esta história pela visão de Kōichi Shikishima (Ryonosuke Kamiki), um piloto de guerra do exército kamikaze japonês, que vive com sua parceira, Noriko (Minami Hamabe), e estava presente no primeiro ataque do monstro a uma base das forças de seu país, que lhe traumatizou e é a causa de seus pesadelos. Quando o titã está cada vez mais perto de atacar a civilização, o Japão em um período sombrio precisa tentar aprender a lidar com mais uma ameaça e mais um trauma em um momento pós-traumático. Olha, eu já falei inúmeras vezes dos meus problemas com o Godzilla dos americanos, especialmente o do Monsterverse, que os caras não sabem trabalhar com o personagem, transformam ele num coadjuvante da própria franquia para focar em humanos sem graça que você não se importa, e ainda transformam ele num secundário quando se encontra com Kong. Este aqui parece que agarra os longas americanos pela nuca e arrasta no chão sem um pingo de dó, porque literalmente tudo que é ruim lá, aqui funciona.

O responsável pela direção é Takashi Yamazaki, geralmente diretor de animações, mas que é um fã incondicional do personagem e aqui assume no seu primeiro trabalho com live-action. O que ele faz é o que o pessoal da Warner tá tentando fazer até hoje, eu fiquei vendo e me lembrava tanto do longa de 2014 dirigido pelo Gareth Edwards, quanto a sequência de 2019 feita por algum diretor qualquer que eu não me importo, e cara, o que o Yamazaki faz aqui é uma aula de kaiju, é uma forma de retratar um personagem e seu significado para toda uma nação dentro e fora do longa, que fica praticamente impossível de não gostar, pois esta é a essência exata que acaba conquistando num longa desse tipo. Existe um equilíbrio do drama dos humanos com as cenas de ação, e aqui tem o acerto nos personagens, você realmente se importa com eles, os dramas deles são convincentes, existe uma empatia pela galera apresentada, e quando o monstro ataca não é uma espetacularização da destruição, é um filme de terror, é um bicho que dá cada vez mais medo à medida que o tempo vai passando. Existe impacto, existe temor, existe consequência, não é jogado aleatoriamente lá, você realmente fica aflito com as situações que essa galera passa para tentar sobreviver aos ataques da criatura.

Aqui tem realmente a sensação de que o Godzilla é o grande vilão, é uma ameaça enorme que torna-se um empecilho inevitável na vida de todos ali perto. Mesmo quando ele não está aparecendo, tem a presença, tem o sentimento de que qualquer hora ele pode aparecer, qualquer hora pode dar ruim e que cada um daqueles personagens ali em volta é um alvo frágil que pode ser destruído em milésimos de segundos pelo monstro. É muito semelhante ao tubarão, do, obviamente, filme "Tubarão" (1975), do Steven Spielberg, claramente uma inspiração, principalmente depois que você vê algumas referências do diretor, porque esta sensação de terror iminente é claramente inspirada pelo clássico do gênero de horror. E toda vez que aparece o bicho é um sentimento difícil de explicar, já que aqui existe uma imprevisibilidade no que ele vai e como ele vai destruir tudo (em um dos momentos, por exemplo, ele levanta um trem inteiro com a boca, isso foi muito massa de ser mostrado). Tem cenas que só vemos as pernas dele e vamos escutando os rugidos e a música, e só nisso já é amedrontador para caramba, as cenas dele completo então são de dar arrepios, tanto de espanto quanto de felicidade por ver um personagem tão icônico ser retratado de forma tão digna, especialmente a cena onde ele solta o raio atômico e vai assumindo a forma azul, nossa, é arrepiante por todos os lados, seja pelo lado nerd de assistir aquilo tão bem feito, quanto pelo lado empático com os humanos de que está tudo perdido.

Mas o que acaba tornando tudo isso especial é a retratação que o Yamazaki dá ao Godzilla metaforicamente, não apenas a retratação sensacional que ele dá como vilão em tela, mas também o porquê que ele foi criado, porque ele traz tanto medo para o povo japonês e o que ele realmente deveria significar. Godzilla é fruto da maior tragédia da história do Japão, é um país que estamos acostumados a ver notícias sobre desastres naturais que impactam bastante, como terremotos, maremotos, tufões e tudo mais, mas as bombas atômicas não são naturais, não foram geradas pelo planeta, são armas criadas por humanos para a destruição de sua espécie. Inclusive, é irônico que este longa faça sucesso no mesmo ano que "Oppenheimer" (2023), atual vencedor do Oscar de Melhor Filme, que retrata a vida do chefe desse projeto (o que não acrescenta ou diminui nenhum dos dois, é só um fato curioso mesmo). E o Godzilla é o cúmulo do sofrimento de todo um povo quanto a esse trauma, ele é destrutivo, perigoso, radiotavio, desenfreado e impiedoso, ele não dá tempo de reação, podem até se preparar contra ele, mas ele é inevitável. A cena que ele chega numa cidade pela primeira vez e simplesmente a devasta, utilizando o raio atômico e gerando uma explosão que termina dizimando o local, é uma clara alusão ao que os japoneses sofreram em 1945. Esse medo atômico sendo transportado para a figura gigantesca do Gojira é como se fosse a tempestade após a calmaria após a primeira tempestade.

Esse temor mostrado através dos personagens humanos é o melhor exemplo de utilização da nossa espécie em obras kaiju, onde eles tem a própria história e a trama geral roda por conta deles, não são apenas peões achados pelo diretor para serem foco da destruição do bicho. Enquanto assistia, eu olhava para o protagonista Kōichi e ficava me lembrando do Aaron Taylor-Johnson lá do filme estadunidense e como a história é quase a mesma, só que aqui funciona e lá não. Por que? Porque simplesmente o Yamazaki se importa em dar o mínimo de desenvolvimento e importância para esta figura. É um militar, assim como o Taylor-Johnson lá atrás, mas esse nós vemos e sentimentos a vulnerabilidade, na primeira cena já vemos ele se machucando e ficando traumatizado. Ao longo da exibição, ele vai se machucando física e emocionalmente, ele é facilmente abalado, ele tem emoções humanas, ele não é um avatar de um ideal criado por Hollywood, é um ser humano conturbado com múltiplos fantasmas do passado e vários pensamentos do futuro. Ele consegue trazer bem essa visão de alguém com feridas de guerra, ele tem quase uma culpa de sobrevivente, ao ponto de pensar que ele já está morto e que o que ele vive é um último sonho. Acho que as vezes o ator cai um pouco no overacting, mas nada que quebre a imersão, na maior parte acaba combinando com o momento da trama.


Falando agora sobre o trabalho técnico, que foi o motivo de maior espanto geral quanto ao longa e que foi um dos grandes motivos de sua grande tração, já que foi feito com um orçamento pífio e acabou vitorioso no Oscar de efeitos visuais sobre "Resistência" (custando U$80 milhões) "Guardiões da Galáxia Vol. 3" (U$250 milhões) e "Missão: Impossível - Acerto de Contas Parte Um" (com um incrível investimento U$291 milhões - que tem um contexto, mas não é o momento para isso). Deveria ganhar? Bom, acho que pelas claras limitações fica um pouquinho abaixo dos citados (creio que fique acima de M:I pela quantidade utilizada num escopo geral de ambas produções). Porém, é inegável que é um trabalho absurdamente bem feito e bastante simbólico, já que atualmente vários filmes com investimentos gigantescos vem sendo criticados por seus efeitos, falta de capricho na pós-produção que transforma blockbusters em produtos de consumo barato, e aqui é muito bem trabalhado. O CGI do Gojira é espetacular, as camadas na pele, o corpo reptiliano, a cauda, o carregamento do raio atômico com aquela luz azul em seu corpo, é um visual mais amedrontador e um pouco mais pé no chão, de certa maneira. Existem também outros efeitos, as explosões, os objetos arremessados, os prédios destruídos, é um trabalho bem caprichado e muito bem finalizado, mesmo com limitações. É essa simbologia que acaba sendo a responsável por esse apelo para a vitória na Academia.

Ainda na técnica, é preciso destacar o trabalho técnico todo no geral, já que não são apenas os efeitos que se destacam. Eu não sou muito fã da montagem, acho que deixa mais melodramático do que deveria e do que se propõe a ser, mas tirando isso, acho que não há nenhum outro defeito, pelo menos não que me incomode. Acho toda a direção de arte espetacular, os cenários interiores, as locações, mas especialmente na área da cenografia, o design dos barcos, dos aviões, a decoração de reconstrução e destruição é muito bem feita. A fotografia mais acinzentada, pegando os dias sempre nublados, como um sentimento de calmaria após a tempestade, como falei anteriormente, além de ser bastante eficiente quanto ao Godzilla e sua relatividade com os humanos e os locais. Gosto especialmente da parte das cenas aéreas, onde o comparativo do avião com o monstro e a maneira que é gravado é excepcional. E outro destaque acaba por ser a belíssima trilha sonora, que é do Naoki Sato, onde ele pega os temas originais do Akira Ifukube e faz um rearranjo, que é do cacete, é simplesmente épico e arrepiante desde o começo, e cada vez mais vai potencializando o que acontece em cena.

No mais, não há muito o que reclamar, tirando momentos da montagem, a única coisa que eu não curti foi uma decisão narrativa que, na minha visão, anula um impacto emocional do filme que acaba motivando o protagonista diretamente. Tirando isso, "Godzilla Minus One" é realmente um filmaço, um dos melhores do ano passado com toda a certeza (ele não entra no meu top 10 por detalhes, mas é o 11°). É um filme arrepiante, cujo você se importa com aquilo que está acontecendo na tela, os humanos são legais, tem seu desenvolvimento, é bom de acompanhá-los e ver os planos para a derrota do Godzilla. Este que está em sua representação suprema no cinema, na minha opinião, já que sua presença de tela e fora dela é inacreditável de boa, você sente que ele está por ali e que ele é inevitável, existe uma tensão recorrente sobre em qual momento ele pode aparecer. Exímio trabalho técnico, boas atuações e uma direção absurda do Takashi Yamazaki, estamos diante de um jovem clássico da ficção científica. Realmente me arrependo de ter demorado tanto para assistir.

Nota - 8,5/10

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