Crítica - Era Uma Vez... em Hollywood (Once Upon a Time... in Hollywood, 2019)
Um filme bastante especial!
Quentin Tarantino, depois de fazer os filmes mais loucos já vistos em Hollywood, faz o seu filme mais maduro e mais especial, uma verdadeira carta de amor ao cinema! Tarantino é um diretor com muito hype, criado pelo fator dele ter definido que em sua carreira só fará dez filmes e esse em questão é o seu nono, teoricamente o penúltimo de um dos grandes diretores (talvez o grande diretor) de sua geração. Tarantino aqui decide fazer um filme onde seu foco vai mais para a história, para a relação entre os personagens, para a ambientação do final da Era de Ouro de Hollywood e menos na bizarrice tarantinesca que nós nos acostumamos a ver em filmes como "Pulp Fiction - Tempos de Violência" (1994) e "Django Livre" (2012), por exemplo. Tarantino foca em muitas coisas, mas acima de tudo é um filme sobre o amor, sobre amor ao cinema, amor a fazer arte e o amor de dois manos: Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) e Cliff Booth (Brad Pitt).
Tarantino não abandona seu estilo mesmo sendo seu filme mais distante da loucura que ele mesmo criou (inclusive essa loucura tem um resgate muito forte no terceiro ato do filme, mas logo eu chego lá), aqui temos ainda os vários closes em pés, temos a violência característica e tal, e mesmo sendo o filme menos tarantinesco em estilo, é o filme mais Tarantino que tem, essa vibe dele divertida, essa grande carta de amor ao cinema, praticamente tudo que o Tarantino tem de referência está aqui, tem Bruce Lee, tem faroeste e western spaghetti, tem alusão ao Clint Eastwood, tem a questão dos dublês (uma área bastante respeitada pelo Tarantolas) e tem quase todos os amigos dele aqui, tem o Michael Madsen, o Kurt Russell, o próprio Brad Pitt, o Bruce Dern, a Zoë Bell, o DiCaprio, o Tim Roth (que foi cortado, mas tá creditado), da galera dele só faltou o Samuel L. Jackson, o Harvey Keitel e o Christoph Waltz, até a Uma Thurman ele conseguiu colocar através da filha dela, a Maya Hawke. A trilha sonora sessentista é a cara dele, as várias trilhas de filmes e séries daquela época que ajuda a pôr naquela época. Sem contar as autoreferências, como um dos diretores italianos que Rick trabalha se chamar Antonio Margarete.
O filme se passa em 1969, no final da Era de Ouro de Hollywood e o início da Nova Hollywood e a forma como o Tarantino nos põe naquele tempo é algo inexplicável, eu durante quase três horas me senti preso dentro da realidade artística daquela época, é incrível como ele mostra Hollywood, mas principalmente a amostragem através dos personagens. Rick Dalton é um dos atores de televisão mais bem sucedidos de seu tempo, vive nas riquezas e no glamour, tem uma casa em uma rua privada perto do epicentro comercial de Los Angeles, ele vive entre os holofotes, enquanto Cliff Booth é o dublê, ele faz o trabalho sujo e não tem o devido reconhecimento, ele vive na parte de trás de um drive-in, ou seja, a metáfora é clara, dentro da indústria, o dublê vive nos fundos, nas sombras e é lindíssima essa sequência no início que demonstra o Cliff indo para casa, saindo de toda essa Hollywood pomposa e brilhante e indo para o lado obscuro e escondido da cidade dos anjos, saindo um pouco de como L.A. é vendida como "a cidade onde os sonhos se realizam", mostrando que até lá há o lado mais marginalizado.
Eu me sinto na obrigação de fazer uma análise individual de cada um dos protagonistas, porque são personagens com tantas camadas, tão completos, que eles merecem. Segundo as premiações, o protagonista do filme é o DiCaprio, então vamos começar com Rick Dalton. Dalton é um personagem muito complexo, a gente vê que ele era um superstar da televisão, um grande ídolo da nação por interpretar o protagonista de "Bounty Law", mas vemos esse cara que é considerado tão incrível em uma decadência, não conseguindo mais tantos papéis e no final tendo que se rebaixar ao western spaghetti (ainda marginalizado em Hollywood naquela época). Eu gosto muito do Dalton porque ao longo do filme vemos esse cara em decadência querendo se provar, ele quer acreditar que ele ainda é capaz, que ele ainda é o melhor e acaba se cobrando demais, o que fica evidente quando ele diz a si mesmo a seguinte linha: "se você errar mais uma vez, eu enfio uma bala na sua boca" e ao mesmo tempo que é engraçado pela maneira que ele fala, é muito preocupante porque realmente a toda vez que ele está em tela, dá para sentir que ele se sente um bosta e quer se matar. E a atuação do DiCaprio eu considero muito injustiçada, para mim é a melhor atuação dele, porque ele consegue demonstrar sem erros toda essa complexidade do personagem, desde cenas mais simples como ele chorando e lamentando por sua decadência no ombro do Cliff até ele fora de si no camarim. Eu não vou estender mais porque o parágrafo já tá longo, mas é facilmente a atuação dele que eu mais gosto.
O problema é que a atuação é ofuscada pelo carisma e simpatia do Brad Pitt, porque Cliff Booth é simplesmente o melhor personagem criado pelo Tarantella, ele anula todo o protagonismo do Dalton ao ponto dele ser o personagem do filme com mais presença, eu não sei se ele tem o maior tempo de tela do filme, mas ele é o que você mais sente em cena na exibição. Cliff é basicamente o nice guy, ele é o cara que todo mundo quer ser, é impossível não amar esse cara. Apesar disso, também vemos que ele é um homem complexo, há toda uma lenda que o acusa de ter matado a própria esposa, mas essa dúvida sobre ele é irrelevante para/com o personagem, a jornada dele é incrível, esse arco dele com os hippies, a relação dele com a cadela Brandy e as ações dele ao longo da trama, o cara simplesmente meteu a porrada no Bruce Lee, amassou o carro da diretora e espancou um hippie. Sem dizer ainda o que ocorre nos minutos finais, onde ele se mostra como um dos personagens mais bad-ass do cinema em muito tempo numa cena puramente Tarantino. Além do mais, a relação do Cliff e do Dalton é a melhor história de amor já contada por Tarantino, o amor de dois manos que se cuidam e vivem um pelo outro, sempre estão juntos, vivem juntos, fazem tudo juntos, eles são mais que amigos e menos que maridos, é tão lindo ver essa construção desde o primeiro minuto de filme e a evolução dela ao decorrer da narrativa.
E tem também o arco da Sharon Tate (Margot Robbie), muita gente reclama, mas para mim, esse é o arco que mais correlaciona com o cinema, além do fato de ser uma atriz, vemos ali que ela é uma daquelas que ama o que faz, se dedica ao máximo e que se sente realizada ao ver seus filmes, seus trabalhos passando no cinema e ver as pessoas curtindo o que ela faz e esse é o sentimento que todo artista quer ter ao sua obra ser mostrada para o público. Sharon é a personagem mais doce que o Tarantino já escreveu, tanto que de seus nove filmes, ela é a única personagem que não fala nenhum palavrão e a Margot Robbie sublime na atuação, é mais discreta até porque o arco dela na trama está muito distante do Cliff e do Rick e acaba se entrelaçando apenas no final, mas é uma homenagem muito linda que o Tarantino fez.
Inclusive todo ato final do filme é uma tensão do cacete, porque quem sabe da história real está ligado no que aconteceu com Sharon e seus amigos naquela fatídica noite de 9 de agosto de 1969, o brutal assassinato de Tate (grávida) mandado por Charles Manson. O Tarantino vai criando essa tensão, porque chega no final e ele vai mostrando minuto a minuto a rotina de Tate e os seus companheiros e você fica logicamente pensando que ferrou e vai ter a cena da forma mais aterrorizante possível. Só que aí, quando os caminhos da Família Manson se cruzam com os de Dalton e Cliff, é quando você se lembra que é o Tarantino e que ele ama fazer correções históricas, depois de fazer judeus queimarem nazistas em "Bastardos Inglórios" (2009) e um homem preto matar senhorios de fazendas em "Django Livre" (2012), agora vemos a revolta dos atores contra os hippies e é lindo, é satisfatório ver aqueles hippies apanhando da maneira mais violenta possível para o Cliff e a Brandy e depois ainda vermos o Rick queimando outra hippie viva com um lança-chamas. É o melhor clímax do cinema em muitos anos, se duvidar é um dos melhores de toda a história, porque não há nada que traga tanto prazer quanto hippie apanhando, é um prazer quase sexual.
Outro motivo de reclamação frequente é a retratação do Bruce Lee, nesse filme interpretado por Mike Moh, que muita gente considera desrespeitoso ao Bruce Lee verdadeiro, tem certas pessoas que consideram até racista por algum motivo, mas eu adoro a caracterização do Bruce Lee, essa áurea dele mais prepotente e competitiva que depois veio a inspirar múltiplos atletas em múltiplos esportes, sem contar que apesar disso, o Bruce Lee é uma das pessoas mais legais do filme, ele inclusive assume a culpa pelo carro amassado e se desculpa com o Cliff, eu até consigo entender quem não gosta, mas eu achei uma boa representação. Também há a representação do Charles Manson que havia uma expectativa muito grande para ver o que o Tarantolas faria com ele e no final ele é só aparece uma vez como objeto de piada, até porque esse maluco é realmente uma piada, é um dodói esquizofrênico assim como mostrado. E tem o Tex, que é o antagonista com mais participação no filme e é interpretado pelo Austin Butler, que aparece bem pouco, mas a atuação do Austin Butler é muito convincente como esse psicopata satânico, ele passa realmente essa vibe assustadora broxante, porque ele é o típico jovem psicopatinha que quer pôr medo em alguém mas não assusta nem uma mosca.
Esse filme tem tanta coisa para ser falada, em mensagem, personagem, atuação, técnica, trilha, é tudo muito bem feito, tudo muito conquistador, esse filme é uma experiência que quem ama cinema jamais se esquece. "Era Uma Vez... em Hollywood" é um dos melhores filmes de Tentin Quarantino, não sei se o melhor, mas é com certeza o mais maduro e mais acessível. A vibe que esse filme passa é completamente inexplicável, é algo que inesquecível, ver toda essa retratação de uma época Hollywood é muito agradável, muito especial. Tem personagens memoráveis, atuações marcantes e momentos que são dignos de gritaria no cinema. É o filme mais Tarantino ever, não tem jeito. Completa obra-prima!
Nota - 10/10