Crítica - Creed - Nascido Para Lutar (Creed, 2015)
Uma aula de como reinventar uma franquia.
Rocky com certeza é uma das franquias mais clássicas da história do cinema, tecnicamente foi uma das primeiras das mais famosas, um filme que usava o boxe como plano de fundo para apresentar a história de um homem comum, até que chega um ponto que vira focado na luta mesmo e continuou funcionando (menos no quinto, ali cagou). A história do nosso querido Rocky Balboa (Sylvester Stallone) chegou ao fim em 2006 ao vermos o lutador nos seus cinquenta-sessenta enfrentar um último desafio no homônimo "Rocky Balboa". Anos depois, surge a ideia de um spin-off, focado na história do filho do rival e posteriormente melhor amigo do Rocky, Apollo Creed (interpretado originalmente por Carl Weathers), aí aqui acompanhamos um filho bastardo do pugilista que nunca conheceu o pai, mas que cresceu tendo que carregar uma espécie de fardo pelo legado gigantesco, então vemos Adonis Johnson Creed (Michael B. Jordan) focado em querer fazer jus ao legado de Apollo ao mesmo tempo que quer fazer seu próprio nome.
Basicamente não tem muito que falar em questão de história, é praticamente um rip-off do primeiro Rocky, mas o diretor e co-roteirista Ryan Coogler soube como adaptar bem isso para os dias atuais sem perder a principal essência da franquia. O cinema é uma arte que evolui muito rápido, em questão técnica, em storytelling, métodos profissionais, tudo mesmo, e desde 1976 a sétima arte mudou bastante em todos esses quesitos, então ele pega muitas coisas do clássico e adapta para a realidade dos anos 2010 com técnicas refinadas do audiovisual, maior definição e trazendo um lado diferente para algo já estabelecido. Não só a arte evoluiu, como a humanidade também, com isso teve uma diminuição considerável do racismo (apesar de infelizmente ainda existir bastante) e nisso as histórias negras ganharam mais voz, o povo ganhou seu espaço e Ryan Coogler aproveitou para trazer o lado cultural para uma franquia já estabelecida, trazendo elementos como o rap enraizado na trilha sonora, as vestimentas e aparências dos personagens, os locais que frequentam, a cultura em si é trazida como um plano de fundo interessante para a história de um homem querendo seguir um legado enquanto busca criar o seu próprio.
Acompanhamos o Adonis como uma criança órfã delinquente que é adotada pela viúva de seu pai biológico e então, vemos como se desenvolve a sua história como um adulto, querendo ser um boxeador igual Apollo e Rocky (tanto que na cena que ele vê a luta entre os dois, ele faz sombra nos movimentos do Balboa). Ele vive num emprego normal, onde ele é competente, acabou de ser promovido, é rico, tem muitos privilégios, mas prefere se mudar para o subúrbio da Filadélfia e tentar a sorte como um pugilista, seguir o que está em suas veias. O filme é totalmente focado nisso, o homem buscando sua identidade própria enquanto tenta aceitar o legado de um pai que nunca conheceu, enquanto vemos ele vivendo a vida saindo com uma garota, Bianca (Tessa Thompson). Essa jornada dele é muito legal de acompanhar, ele é um personagem que você cria uma certa identificação porque você entende ele, a busca por sonho ao mesmo tempo que tenta fugir da sombra de seu próprio sobrenome, isso cria uma certa relação do espectador com a história pois é algo que muitos vivem, que é tentar se distanciar da vida de seus pais e criar suas vivências, mas todos temos de aceitar que não nos criamos sozinhos e lembrar de suas raízes e de onde viemos.
Essa questão é tratada de maneira madura, real e reflexiva, você começa a pensar e lembrar da sua própria vida vendo um filme sobre boxe (a arte é muito louca) e isso foi bastante ajudado pela performance do Michael B. Jordan, na atuação que o revelou para o público geral. Primeiro aplaudir ele pelo peso do papel, ele está assumindo o protagonismo de uma das maiores franquias do cinema com um protagonista igualmente gigante e icônico, ele não só consegue, como cria uma identidade própria e uma persona bastante marcante, sendo bom atuando no drama em especial, onde ele consegue trazer todo o peso de seguir o legado do Creed e até do Rocky de alguma forma, mas ele mais do que isso quer se provar capaz e único para si mesmo e vemos essa jornada pessoal, esse objetivo, sendo buscado por todo o longa e sendo alcançado com exito no fim. Tem a relação dele com o Rocky (que falo mais depois) e com a Bianca, que cumpre um papel bem interessante de não ser só o par romântico do Donnie, como sair disso e ter um arco próprio envolvendo também suas metas, tendo seus problemas de saúde e até com o próprio relacionamento, uma certa desconfiança, com a Tessa Thompson também mandando muito bem, conseguindo criar essa essência de personagem que é atrelada ao protaganista ao mesmo tempo em que funciona de maneira independente numa maneira individual. A relação dos dois é perfeita por isso, os dois tentam se encontrar no mundo e acabam se encontrando um no outro.
É nisso que vem a aula do Coogler, porque ele tem em mãos muito material enquanto tem uma bagagem pesada que vem de antes e ele consegue adaptar a história do Rocky para uma nova realidade trazendo originalidade para uma trama já contada. Ele traz os sonhos do Creed, o relacionamento amoroso, a relação paternal forte envolvendo o treinador, tudo que tinha lá nos primeiros dois clássicos e aqui ele traz a essência disso, mas sem meter um Ctrl+C-Ctrl+V no roteiro. Como disse, ele traz vários elementos até pessoais, trazendo a vivência de um homem tentando buscar a própria identidade, ele coloca algo muito pessoal no Adonis assim como o Stallone colocou no Rocky desde sempre, quando o escreveu pela primeira vez. O Coogler tem uma paixão tão grande pelo projeto e pela franquia que é até difícil descobrir que ele não é de Philly. Eu pesquisei sobre a história de Ryan e assim como Adonis ele também cresceu numa casa com pais bem sucedidos, também saiu de casa para ser um atleta e também se encontrou em querer seguir um legado no que realmente ama um pouco mais tarde na vida, então tem realmente bastante dele no personagem e na trama, então ele consegue trazer essa pessoalidade de uma maneira tão natural, além de trazer a sua própria cultura consigo, como a marcante trilha de rap por exemplo. Uma baita aula de adaptação e contextualização.
Mas mais do que simplesmente criar a própria estória, ele vai lá e pega um dos personagens mais marcantes da história do cinema, que é o Rocky, e o coloca em uma nova situação. Dessa vez vemos um Rocky verdadeiramente idoso, um tiozão basicamente, mas ele coloca mais um obstáculo na vida do nosso querido pugilista: o câncer. Com isso, Coogler extrai do Sylvester Stallone a melhor atuação de sua carreira, porque ele é realmente um ator talentoso que nunca explorou seu verdadeiro potencial dramático por ter baseado sua carreira em todo carisma dele, mas aqui ele prova que ele era realmente um ator não só bom, como excelente. Tem várias cenas que ele se destaca, ele tem algumas partes meio leves e cômicas, mas é no drama mesmo que ele se destaca, por conseguir trazer esse Rocky mais velho, machucado e vivendo por viver basicamente, mas ele ganha esse plus de mostrar todo o sofrimento de um homem doente que ao mesmo tempo quer parecer bem para o garoto que ele basicamente adota como filho. Ele tem todas as questões motivacionais ainda, ele pode ter envelhecido, mas ainda é o mesmo Rocky, que mesmo tendo perdido tudo, a esposa, o Paulie, o Apollo, o filho que se mudou, ele continua indo em frente, como diria o próprio: "always keep punching". Cara, ele é incrível e ver ele de volta é especial em tantos níveis que é indescritível.
Tecnicamente também é um espetáculo. Questão de fotografia, é genial em vários momentos, tem alguns joguinhos bastante bacanas, cenas bem feitas, o visual é simples, mas é belíssimo, além de ter a memorável cena da luta em plano sequência, que é uma das sequências mais impressionantes do cinema nos últimos dez anos. A montagem ajuda muito em criar essa experiência, saindo naturalmente de momentos envolvendo o drama pessoal dos personagens para o boxe, as edições de treinamento e tudo mais, além das lutas, em que na batalha final doze rounds são resumidos em poucos e impactantes minutos de uma maneira espetacular. Mas há um problema que tira um pouco, que é o vilão, "Pretty" Rick Conlan (Tony Bellew), que não tem nenhuma motivação, nenhum background, além de que ele é um boxeador brabo e vai ser preso por um motivo nunca deixado claro, o ator também é bem fraco e não ajuda em nada (até porque ele não é ator de verdade, é um lutador de verdade), não tem quase nenhum drama sério envolvendo ele nem nada, parece tudo meio preguiçoso.
Uma adaptação/reinvenção maravilhosa, "Creed - Nascido Para Lutar" consegue trazer originalidade para uma franquia estabelecida ao mesmo tempo em que adapta perfeitamente a essência das histórias clássicas do Rocky. É uma história sobre um homem em busca de seus objetivos e a criação de um próprio legado enquanto aceita sua descendência e seu sangue como um Creed, enquanto o boxe serve como um ponto principal, mas também um plano secundário para desenvolver nosso protagonista que é marcante e excepcionalmente carismático, além do retorno emocionante do Stallone como seu personagem mais clássico. Cara, é sensacional, é legal, é reflexivo, é tudo muito incrível.
Nota - 9,0/10