Crítica - Gato de Botas 2: O Último Pedido (Puss in Boots: The Last Wish, 2022)

DreamWorks fugindo da zona de conforto.

Em "Shrek 2" (2004), surgia o Gato de Botas (Antonio Banderas), um caçador de recompensas espanhol que é um gato usando botas. O carisma, fofura e sedução do felino viriam a torná-lo um dos personagens mais carismáticos e memoráveis da franquia, se tornando um símbolo e fazendo um trio inesquecível com o Shrek e o Burro. Sua personalidade foi tão forte que gerou um spin-off próprio, "Gato de Botas" (2011), que é legal, mas não tão memorável quanto o cânon principal. A DreamWorks vive de uma desorganização enorme, tem várias continuações que eles anunciaram e que nunca saíram, como um quarto Madagascar por exemplo, essa sequência do nosso querido protaganista quase integrou essa "black list", mas repentinamente saiu do papel, teve um trailer lançado do nada, com um estilo totalmente diferente e então começou uma campanha de marketing excessiva, que transformou o longa de uma incerteza para um sucesso absurdo em que surpreendeu a própria empresa, rendeu uma indicação merecida ao Oscar em Melhor Animação e fez um número de bilheteria gigantesca, atualmente está em primeiro lugar nas bilheterias americanas, britânicas, brasileiras e vários outros mercados internacionais. O que fez tudo isso acontecer? A extrapolação de uma fórmula que a DreamWorks precisava fazer.

A DreamWorks sempre seguiu uma certa linha narrativa em suas produções, já que foi fundada com a intenção de ser uma antítese da Disney. Com isso, seus filmes tinham protagonistas não-convencionais (um ogro, uma abelha falante, um panda do balacobaco), uma história padrão onde seus personagens começavam de um jeito, evoluía ao longo da trama e terminava melhor do que começava. Mas, isso se perdeu, quando a empresa começou a buscar somente lucros, mais ou menos na década passada, onde entregou obras como "O Poderoso Chefinho" (2017), "Trolls" (2016), "Cada Um Na Sua Casa" (2016), "As Aventuras de Peabody e Sherman" (2014), sem contar as sequências e spin-offs que não agradaram tanto quanto poderiam, como "Os Pinguins de Madagascar" (2014), "Kung Fu Panda 3" (2016) e até o próprio antecessor do nosso texto de hoje de uma certa maneira. Não eram cativantes, apesar de um certo sucesso com as crianças pela animação, o design cativante dos personagens e as cores extremamente vivas, acabou que a tal "antítese da Disney" tinha ficado igual a própria: visando o lucro acima da qualidade. Enquanto isso, a Disney em si, comandada por Bob Iger, se dividia entre lucro e qualidade e entregou animações memoráveis e de extremo sucesso, como "Operação Big Hero" (2014), "Zootopia - Essa Cidade é o Bicho" (2016) e é claro, o fenômeno "Frozen - Uma Aventura Congelante" (2013), que conquistaram tanto as crianças quanto os pais com os filmes e a campanha de marketing, coisa que a empresa da lua cheia já não conseguia mais tão bem. Até que chega um ponto de virada: Bob Iger sai da Disney e entra Bob Chapek, que simplesmente tem as piores ideias do mundo, é o responsável pela queda colossal na qualidade dos produtos Disney recentemente e mandou que "desenho é coisa de criança" sendo CEO da maior empresa de animação de todos os tempos, enquanto a DreamWorks decidiu sair da mesmice e virar uma chavinha na criatividade, principalmente em 2022, onde entrega o elogiado "Os Caras Malvados" e este que estamos falando sobre. Com estilos narrativos diferentes e uma animação que mescla o clássico 2D com o famoso design 3D das grandes animações das últimas duas décadas, a DreamWorks está mais viva do que nunca.

Com isso, temos uma inusitada e maluca animação, que nunca imaginaria vindo de uma grande empresa de animação americana, não para os cinemas pelo menos, parece algo que algum desenho animado poderia fazer, mas lançar uma animação tão estilosa, bonita, fantasiosa, corajosa, é algo que realmente me surpreendeu. Primeiro, eu gosto de como o lado fantasioso desse universo de Shrek/Gato de Botas é abraçado de vez, porque claro, já haviam os elementos de todos os outros filmes, poções, dragões, magos, acordos do Rumplestilskin, a existência dos personagens em si já é fantasia, mas aqui é explorado quase como uma mitologia, abraçando a bizarrice fantasiosa e adaptando certos contos de fadas para situações diferentes. Uma premissa super simples: o nosso Gato de Botas já perdeu oito de suas nove vidas e está sendo caçado por Death (Wagner Moura), a morte em pessoa (ou em lobo), com isso, ele precisa ir até uma estrela mágica para realizar um pedido e recuperar suas nove vidas de volta, mas no caminho se depara com seu antigo par romântico, Kitty Pata-Mansa (Salma Hayek), um cão que ele apelida de Perrito (Harvey Guillén), uma versão adulta da Cachinhos Dourados (Florence Pugh), que foi adotada pelos três ursos: Mamãe Urso (Olivia Colman), Papai Urso (Ray Winstone) e o Bebê Urso (Samson Kayo); e Jack Horner (John Mulaney), que vem de uma canção famosa lá do exterior do século XVIII, "Little Jack Horner", sobre um garoto que comia torta no natal e reforçava que era um bom menino. Só por termos várias linhas narrativas paralelas, dá para ter uma percepção da loucura boa que a obra é.

A coisa que mais me surpreendeu foi a maturidade ao retratar o protagonista, já que o Gato de Botas era basicamente uma paródia do Zorro (ambos são até interpretados pela mesma pessoa), ele é o caçador de recompensas bad-ass espanhol, que chega, resolve a parada e deixa sua marca no local. Com isso, a retratação dele aqui é de um herói arrogante que é realmente brabo, mas que é ególatra e egoísta. Com ele percebendo que vai morrer e não tem mais o que fazer, ele decide fugir, mas quando descobre que pode recuperar suas nove vidas, ele não hesita e vai passar até pelas pessoas que ele gosta para que esse objetivo que seja concluído. Mas a jornada de redenção dele é muito bem trabalhada, porque a gente vê o bicho destemido e f#dão e agora ele sente que tá por um fio, porque ele não só está na sua última vida, como o próprio espírito da morte está atrás dele, com isso entra um dilema, uma filosofia, uma discussão tão acima e tão inesperada de ser abordada em um filme infantil, ainda mais da franquia do Shrek, que sempre foi reconhecida pela comédia. Vem uma baita mensagem muito bem aproveitada sobre a vida, sobre seu valor, sobre o quanto ela não pode ser terminada em momentos bobos como o nosso amado protaganista fez oito vezes, esse assunto é o equilíbrio, porque faz as crianças gostarem pela ação e comédia e os pais gostarem por tentar falar sobre assuntos mais sérios de um jeito muito sincero, tem uma cena que o Gato tem crise de ansiedade, uma pessoa de 5-10 anos não vai entender o que é isso, mas os adultos vão entender e se identificar com a situação, é muito bem pensado. Sem contar o Antonio Banderas claramente se divertindo para caramba na performance, entregando um carisma inigualável e uma mescla de sentimentos bastante interessante usando só a voz, o que é muito difícil.

Essa jornada do Gato se torna mais preciosa com o retorno da Kitty e a introdução do Perrito, dois personagens adoráveis e que agregam muito tanto ao desenvolvimento do protagonista quanto ao filme em si. Os dois tem arcos bons, a Kitty e seu passado romântico com o Gato de Botas, é bem trabalhada a relação dos dois, como eles se separaram e também é um ponto importantíssimo da trama e para o amadurecimento do personagem-título, mas não vou dar muito spoiler. O Perrito é uma preciosidade, ele é tudo que um bom coadjuvante de animação é, tem o carisma, o lado cômico sensacional, mas principalmente a pareceria e interação com o Gato de Botas, que é engraçada e emocionante ao mesmo tempo, ele ajuda o protagonista com várias questões pessoais e filosóficas e cai como uma luva. Ele é para o Gato o que o Burro é para o Shrek (ansioso para Shrek 5 com ele encontrando o Burro btw). 

Quanto aos antagonistas, temos Death, que para mim é um dos melhores vilões de filmes animados da história, pode parecer uma hipérbole, mas ele cumpre um papel que assusta e empolga o espectador com êxito, principalmente porque ele aparece relativamente pouco comparado à duração, mas ele está presente o tempo inteiro, você sente que ele está lá caçando o Gato de Botas mesmo quando ele não está em tela. Ele assusta de verdade, a imponência criada por uma série de questões é sentida, seja a trilha, a forma como ele é mostrado, a paleta de cores, você fica intimidado vendo aquele lobo de olhos vermelhos. Sem contar a atuação de voz do Wagner Moura, que consegue trazer esse peso e presença de um jeito memorável e icônico, é um vilão que ficará marcado por muito tempo. Tem o Jack Horner, que eu não gostei não, achei mal aproveitado, ele é o grande defeito do longa e a forma como se encerra o arco dele é meio anticlimática. Mas a Cachinhos e os Ursos são bala, até porque tem muito desenvolvimento deles e cria-se uma feição por eles, a dinâmica familiar é bem construída e até fácil de se identificar, o carisma na voz do elenco também é muito bem aproveitado e é redondinho, porque tem a apresentação, o desenvolvimento e o encerramento, foi muito bem trabalhado.

Tecnicamente falando, animação é perfeita, meio que mesclando o 3D com a pintura à mão, até meio à óleo em alguns pontos e esse estilo novo traz uma espécie de "nova vida" à uma franquia com um estilo pré-definido e de tamanho sucesso. Esse estilo que mescla a animação atual com a clássica foi utilizado já em "Os Caras Malvados" (que eu não vi, mas depois disso aqui, eu pretendo ver) e agora no Gato de Botas eu creio que ajuda muito em dar o ar fantasioso que é necessitado, porque tem muito de cores vivas, cintilantes, tem muito azul, roxo, rosa, vermelho, laranja, essa composição de cores que ficaria extremamente esquisita no 3D, fica perfeita, inclusive criando uma das animações visualmente mais bonitas e bem feitas que eu já vi, acho que é top 5 no quesito, porque é um negócio realmente belo. Também abre possibilidade narrativas para trazer algumas referências, como por exemplo, nas cenas de luta, é clara a inspiração em animes, tem um estilo muito japonês ali, ajudado pela fluidez que é trazida pela técnica, principalmente na batalha final contra o Death, que chega a ser inacreditável o que está sendo feito ali. Esse estilo já está sendo adquirido por várias empresas, inclusive pela Disney, que lançará seu filme especial de centenário da empresa com essa técnica neste ano de 2023, o que eu acho bem legal, mas espero que não seja usado demais para não enjoar rápido.

Uma grata surpresa, "Gato de Botas 2: O Último Pedido" é maduro, é empolgante e divertido, é o equilíbrio perfeito que a DreamWorks precisava para que voltasse a agradar tanto crianças quanto adultos como costumava ser nos anos 2000. A ação é sensacional, eu tenho que falar palavrão, peço desculpas, mas é F#DA PARA UM C4RALH# o aproveitamento da técnica para criar uma fluidez e uma movimentação em animação 3D poucas vezes vista anteriormente. Tem comédia realmente engraçada e agradável, tem um drama certeiro e com facilidade de identificação. Não era o que queríamos, mas é o que precisávamos. Obrigado, DreamWorks, por não se prender numa mesma fórmula e saber a hora de mudar, por saber que a qualidade é mais importante que o lucro. Sensacional.

Nota - 8,0/10

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