Crítica - O Continental: Do Mundo de John Wick (The Continental: From the World of John Wick - Minissérie, 2023)
O início da real expansão do universo John Wick.
A franquia John Wick vem se tornando cada vez maior. Eu já analisei os quatro filmes aqui e trouxe a crítica do quarto capítulo, "John Wick 4: Baba Yaga" (2023), no dia de sua estreia, nisso obviamente eu não tinha como saber de informações que viriam uma semana depois, como que no seu primeiro final de semana atingiua bagatela de U$137 milhões de dólares e tornou-se um fenômeno adulto do cinema naquela época, que depois foi ofuscado por "Super Mario Bros. O Filme" (2023) - apesar da diferença de público alvo -, mas gerou uma baita bilheteria, com um pouco menos de U$100 milhões investidos e uma arrecadação de U$426 milhões, sendo a maior da franquia até então. Lá no texto eu já havia falado sobre a expansão de universo que surgiria e cito essa série, onde iríamos acompanhar a origem do Continental, a franquia de hotéis mais estrelada do cinema, e como o hotel de Nova York acabou nas mãos de Winston Scott, interpretado por Ian McShane nos cinemas e o único personagem, ao lado do próprio Keanu Reeves como o personagem-título dos filmes e de Lance Reddick como Charon, a aparecer em todos os longas da franquia até o momento. E cá estamos aqui para mais uma obra dessa marca, e já adianto, uma que continua sem erros, pois temos a sequência de um padrão de qualidade impressionante.
Na caótica Nova York dos anos 70, o Hotel Continental é um ambiente lotado de mistérios, segredos e gente perigosa, cujo é administrado por Cormac O'Connor (Mel Gibson). Cormac é responsável por salvar dois irmãos das ruas e transformar o mais velho, Frankie (Ben Robson), em uma figura respeitada no cenário do crime da cidade que nunca dorme. Enquanto o mais novo é o nosso querido Winston Scott (Colin Woodell), que morava em Londres sendo um trapaceiro, mas decidiu voltar para Manhattan com o objetivo de salvar o seu irmão e reconciliar a relação entre eles. Nisso, quando O'Connor decide caçar os irmãos Scott por conta de macguffins e eventos recorrentes, vemos uma trama de espionagem que vai se estendendo a personagens como KD Silva (Mishel Prada), uma detetive que busca pelos irmãos, Yen (Nhung Kate), a esposa japonesa de Frankie, os irmãos Miles (Hubert Point-Du Jour) e Lou Burton (Jessica Allain), filhos de um assassino da Alta Cúpula e donos de um dojo de kung-fu (apesar de dojo ser do karatê, eles até zoam a ignorância da Lou na série), Gene (Ray McKinnon), um sniper associado de Lou, e Charon (Ayomide Adegun), onde vemos a história de origem do concierge. Essa trama é a mais complicada de todo o universo de John Wick, mas ainda sim é bem simples e consegue gerar bons frutos graças ao potencial que esse universo apresenta e vai expandindo cada vez mais, aqui contando uma história que talvez não fosse necessária ser contada, mas que tem sua funcionalidade dentro do universo.
O seriado tem como seus showrunners Greg Coolidge e Kirk Ward e na cadeira de direção temos Albert Hughes (episódios 1 e 3), co-diretor do famoso "O Livro de Eli" (2010), e Charlotte Brändstorm (episódio 2), que foi responsável por episódios de famigeradas obras televisivas, como "The Witcher" (2019-), "The Outsider" (2020) e "Senhor dos Anéis: Os Anéis do Poder" (2022-), que não são realizadores badalados, mas que pelo menos tem alguma experiência no gênero de ação e que foram elogiados por isso (a segunda em partes). Aqui temos algo que vai para o lado mais "burocrático" de John Wick, vemos a jornada de Winston até tornar-se o chefe do Continental e como seus objetivos vão mudando ao longo da jornada. Sinceramente esperava algo mais dramático, mostrando majoritariamente os conflitos psicológicos do Winston para adentrar a esse mundo de hotéis e Alta Cúpula, mas que ainda houvesse bastante ação, até pelo subtítulo relembrar a que mundo a série pertence. Gostei do desenrolar da obra, de como esses três episódios desenvolvem o passado do chefe e como o passado dele é muito mais denso do que aparenta, desde a pobreza na infância, a relação com o irmão mais velho, a vida jovem em Londres e o retorno para Nova York. Até aí, fichinha, muito bem, porém, o principal problema é que são apresentadas várias frentes narrativas cujo umas são inúteis, outras esquecidas pelo próprio texto e outrem que só virão a fazer sentido no final.
O desenvolvimento do Winston é bem interessante, se trabalha bem em torno dessa Nova York quebrada dos anos 70, com a greve dos lixeiros e os EUA pós-Vietnã, fazendo a cidade bonita, que nunca dorme, tornar-se aquele inferno sujo e cinzento que já foi demonstrado em outras famigeradas obras, como "Taxi Driver" (1976), por exemplo. Winston é apresentado como um jovem cheio da lábia e transudo que volta de Londres (que comparada a NY àquela época era o próprio paraíso) para buscar pelo seu irmão Frankie e como essa relação é desenvolvida, praticamente toda através de flashbacks e diálogos, é bem interessante, pois você consegue entender o porquê dele ser tão amargurado e como ele ficou mais maluco ao longo dos acontecimentos desses três episódios e vemos essa caminhada até ele virar aquela figura séria e centrada que vemos na versão de Ian McShane nas telonas. Porém, Colin Woodell acaba funcionando bem no papel do jovem Winston, justamente por conseguir passar essa lábia que ele tem (e que o McShane sempre teve ao longo dos quatro filmes), ele convence demais no papel, fazendo aquelas manipulações para que se saia bem, tem um bom apoio de coadjuvantes que elevam a sua performance e tem cenas de ação maravilhosas, de bônus, no final, tem cenas de ação incríveis.
Sobre seus coadjuvantes que eu citei, claro, temos Charon, interpretado pelo saudoso Lance Reddick nos filmes. Charon é apresentado como um filho adotivo de Cormac, um imigrante nigeriano que foi apadrinhado pelo vilão quando foi para os Estados Unidos e que busca trazer seu pai biológico da Nigéria para Nova York. O personagem fica de escanteio durante um episódio e meio, mas quando começa o real trabalho encima dele é bem interessante, pois vemos mais sobre essa origem dele, a relação com o pai biológico e o adotivo, sua sexualidade, sua motivação e a principal característica pela qual todos reconhecemos o personagem: sua lealdade. A dinâmica entre Woodell e Adegun faz jus ao que vimos nos filmes com McShane e Reddick e o início dessa relação é bem trabalhada e extremamente coerente. Outra coisa bem feita é o vilão, Cormac O'Connor, interpretado pelo grande Mel Gibson, retornando a uma franquia depois de tantos anos (e tantas polêmicas também, mas como ator, artista no geral, precisamos assumir que ele é brabo) e ele é incrível, ele tem presença, você sente a imponência e tem um artifício legal, que até remete ao próprio Mel, que é a fé, ele tem muita convicção no que ele faz e a sua religião acaba sendo uma espécie de motor, mesmo ele sendo um desgraçado, foi uma baita adição à galeria de personagens da franquia.
No entanto, a série tem alguns problemas, especialmente relacionado ao aproveitamento de coadjuvantes. A série tenta fazer questão de dar um arco para múltiplos secundários, mas quase nenhum deles funciona. Temos a detetive KD, que até a metade do episódio final era só uma parte da narrativa jogada que foi utilizada só para enfiar uma mulher gostosa na obra em uma linha que quando aparecia quebrava a imersão da principal storyline (a do Winston). Pior que ela, só seu ajudante, Mayhew (Jeremy Bobb), que é apenas um gadão guerreiro da KD, que trai a esposa e simplesmente não tem nenhuma função maior que essa. Lou é uma boa personagem, mas tem um arco bem qualquer coisa envolvendo uma treta dela com uns chineses em Chinatown, que eu pensei até inicialmente em ser algo relacionado ao Caine (personagem do Donnie Yen no quarto filme), mas não era nada também, foi só mais uma treta que no final não implica em nada para a história.
Uma coisa característica da franquia é sua parte técnica, onde temos sempre exímios trabalhos de fotografia e direção de arte, sempre nos ambientando em diferentes locais, cada um com uma estética diferente, mas sempre bonita, colorida e meio neon. Aqui é um desafio, já que tem que ser algo totalmente contrário, pois o foco é nessa Nova York totalmente suja, acinzentada nas ruas, amarronzada nos interiores, onde toma conta o céu nublado, o lixo espalhado pelas ruas e o cheiro ruim no ar, não só do fedor, mas também de desesperança. A técnica da série se sobressai ao demonstrar isso tudo, se afastando daquela quase futurista dos longas, mas mesmo assim conseguir deixar crível dentro do universo em que está situado. Outro destaque são as cenas de ação, que sim, mantém o nível dos longas - óbvio em que em uma escala menor, até por conta do orçamento, mas dentro das proporções é algo espetacular, já na prólogo da série temos uma baita cena de ação e vão tendo outras boas porradarias ao longo dos dois primeiros episódios, mas o terceiro episódio é aquela despirocada boa de se ver, com aquela ação das armas mesclada com artes marciais (o famoso gun-fu), tem uma nas escadarias do hotel que é incrível e outra envolvendo os irmãos Burton que também é ótima.
Apesar de muita burocracia para uma série desse universo, "O Continental: Do Mundo de John Wick" é uma boa série e que faz uma expansão boa deste mundo cheio de assassinos, hotéis e Alta Cúpula. Mesmo que, na minha visão, não seja necessária dentro do que se situa, é legal acompanhar a pequena trajetória do Winston até se tornar o chefe do Continental de Nova York. Um excelente vilão interpretado pelo Mel Gibson, a origem da amizade entre Winston e Charon sendo bem trabalhada com uma boa dinâmica entre os dois, uma ambientação incrível e cenas de ação maravilhosas, que acabam perdendo o peso para linhas narrativas secundárias que não agregam nada para a trama. Creio eu que seria melhor se não tivesse o rótulo de "do mundo de John Wick" e fosse apenas mais uma série comum, não precisando aguentar o peso de fazer parte de um universo de sucesso, mas ainda sim é bem bacana.
Nota - 7,5/10
Nota por episódio:
1x1: "Night 1: Brothers in Arms" - 7,5/10
1x2: "Night 2: Loyalty to the Master" - 7,0/10
1x3: "Night 3: Theatre of Pain" - 8,0/10