Crítica - A Felicidade Não Se Compra (It's a Wonderful Life, 1946)
Um tutorial de como fazer um clássico atemporal
Em 1946 surgiu um dos maiores clássicos da história do cinema, que venceu o tempo e é atemporal até hoje, considerado uma das figurinhas carimbadas do Natal nos Estados Unidos, estamos falando de um dos melhores filmes já feitos e acredito que não há alguma discordância nisso, só que não é atoa que lá no seu país de origem ele é tão lembrando, pois há todo um contexto cultural do porquê dele ser tão visto e eu explicarei logo logo. Aqui acompanhamos George Bailey (James Stewart), um homem que sempre sonhou em desbravar o mundo, virar um arquiteto, passar pela Europa e vários lugares, mas, uma série de eventos em sua vida acabou fazendo com que isso nunca se concretizasse e ele acaba ficando preso em sua cidade natal o resto dos seus dias, só que quando ele começa a pensar que a vida dele é uma porcaria, ele decide cometer suicídio, só que aparece um anjo, Clarence (Henry Travers), que lhe mostra como seria a sua cidade e a vida das pessoas ao seu redor se ele nunca tivesse nascido.
Então, qual é o contexto? É que lá nos Estados Unidos o costume é a pessoa fazer 18 anos e ir embora para a faculdade e depois seguir a vida geralmente em outra cidade e a tradição natalina lá é muito forte, sendo uma época geralmente familiar, essas pessoas que saem de casa ficam bastante depressivas, tanto que a época que mais tem manifestação de depressão lá é a época de festas (Dia de Ação de Graças/Natal) e é por isso que esse filme passa na TV e tem sessões em cinemas lá tradicionalmente, para trazer um ânimo para essa galera que não pôde se reencontrar com os familiares. Então é algo que transcende a arte e vai além, se tornando algo muito maior do que foi planejado. Particularmente tenho uma história com ele também, já que antes de vê-lo eu era muito fechado, isolado, sozinho e eu sinceramente pensava que minha vida era 100% horrível em grande parte do ano, não era uma depressão tão forte quanto tá parecendo, mas era um sentimento desconfortável, aí quando eu vi esse filme, deu um estalo na minha mente (perdoem o palavreado) de que a vida é f*da e que estar vivo é algo muito louco e bem legal, então é impossível eu ser imparcial em relação a ele, literalmente mudou a minha vida e desde que eu assisti pela primeira vez há alguns anos, eu vivo bem melhor e mais saudável. É nesses momentos que se demonstra um poder dessa arte, quando a obra foi lançada, minha avó não era nascida e eu, um jovem brasileiro, teve a vida mudada por um filme norteamericano de 1946, isso é muito louco.
Na direção temos Frank Capra, diretor clássico de Hollywood de vários filmes famosos dos anos 30/40, vencedor de Oscar, um cara muito grande antigamente na indústria. E ele, que já era gigante, renomado, lança isso aqui, que o deixou maior ainda, pois ele consegue criar ao mesmo tempo uma obra que tem sua leveza, sua felicidade, seu lado familiar, ao mesmo tempo que é pesado, duro e triste, é um equilíbrio muito grande, esse conflito de climas vai se criando lentamente ao longo da exibição e quando chega no momento em que George começa a ter o seu "momento Joker", você acredita naquilo, pois você passou os últimos 90 minutos vendo aquele cara se ferrando na vida, então você compreende a loucura dele, porém estava nas pequenas coisas que vemos a influência de Bailey em toda Bedford Falls.
A construção de George Bailey é primorosa, desde o início quando vemos ele criança notamos que é uma criança que quer sempre fazer o certo, ele tem um senso natural de heroísmo e aventureiro, tendo salvado seu irmão da água congelada (perdendo a audição do ouvido esquerdo como consequência) e não entregando os remédios em seu emprego por ter percebido que o farmacêutico pôs veneno na pílula sem querer. Depois quando assistimos ele mais crescido, vemos ele quase realizando seus desejos, mas sempre batendo na trave por um acontecimento inusitado em sua família ou empresa, você vai pensando que aquele cara tá só tomando pancada da vida, mas no final quando vemos o mundo sem George, percebemos que aquelas aparentemente insignificantes na verdade foram grandes coisas para as pessoas ali perto. Como diz o Clarence em determinado momento: "é impressionante como a vida de um só homem afeta várias outras", pois há um negócio do efeito borboleta, já que salvando seu irmão quando criança, ele acabou salvando mais de 200 vidas de soldados durante a Segunda Guerra indiretamente, já que sem ele ter salvado Harry (Todd Karns), o mesmo não teria destruído os caças que estavam indo em direção aos soldados, então é uma sucessão de eventos com distâncias tão grandes que acabam deixando o espectador pensativo, pois uma atitude mínima de qualquer um pode ter salvado a vida de alguém, isso é bem doido.
Bailey acaba tendo mais primor ainda com a adição de vários personagens coadjuvantes, desde os mais cotidianos, o pessoal de uma cidade pequena onde todos se conhecem e tem amizade, desde o taxista até o policial, aí temos a galera diretamente relacionada ao personagem principal, como seu tio Billy (Thomas Mitchell), que tem um papel secundário fundamental para o desenrolar da trama, pois ele é um merdeiro e indiretamente o responde pelo pensamento suicida do sobrinho. E temos os dois principais, o par romântico, Mary (Donna Reed), e o vilão, Mr. Potter (Lionel Barrymore). Há um desenvolvimento entre a relação de George e Mary desde o início, mostrando que ela sempre gostou dele e depois de anos eles acabam se apaixonando novamente e ela é fundamental na trama, servindo como bússola moral do nosso protaganista. Enquanto Potter é um dos personagens mais detestáveis que o cinema já proporcionou, ele é o típico milionário escroto que quer fazer tudo pelo poder, ele é praticamente um mafioso não oficial, ele quer tomar o máximo de posses e dinheiro possível, a ganância dele vai piorando a cada cena, e o confronto entre ele e George é algo mais, não é só uma questão empresarial, é quase político, tanto que se não existisse George, a cidade teria o nome do vilão, então é um conflito bem interessante até o fim.
É preciso ressaltar separadamente a performance absurda de James Stewart, que na minha opinião é a melhor performance que um ator já entregou na história dos filmes, porque o que ele faz aqui é absurdo. Nas primeiras cenas dele vemos aquela aura sonhadora estralando, querendo sair, como se ele fosse explodir após viajar, a partir daí, a cada momento ainda enxergamos na cara do Jimmy essa esperança em sair, em construir suas pontes ao redor do mundo, mas ela vai decaindo aos poucos, até que chega um ponto onde ele perde a oportunidade eternamente e nitidamente fica abatido por trás de expressões falsas de felicidade, isso é muito incrível, porque você consegue ver na cara do maluco que ele tá triste por trás do sorriso. Quando ele começa a ficar triste, você sente, ele fica abatido, raivoso e a atuação dele em casa, claramente irritado e tendo que interagir contra a vontade com a esposa e os filhos, nossa, é a absurda. Na ilusão, o desespero que ele demonstra é algo que você compra facilmente, você fica desesperado junto com ele e no fim, eu nunca vi uma atuação de felicidade tão crível no cinema, porque você fica feliz junto com ele, a vibração dele ao ver que tudo voltou ao normal, nossa, é arrepiante só de pensar.
Um clássico, "A Felicidade Não Se Compra" é a representação máxima dos filmes de Natal. É um equilíbrio perfeito entre leveza e drama, que entrega um comfort movie ao mesmo tempo que entrega uma obra reflexiva e pesada. Não tem muito mais o que falar, é icônico, é atemporal e vai demorar para envelhecer, não tem nada que deixe o filme com status de "envelheceu mal" e ele é tão absurdo que já fizeram um remake nos anos 70 e ninguém lembra, porque esse é definitivo e jamais será esquecido! Um dos melhores e maiores filmes do cinema.
Nota - 10/10