Crítica - Garota Exemplar (Gone Girl, 2014)
"Fé nas maluca"
- Ben Affleck
David Fincher pode ser considerado o mestre moderno do suspense, um homem que, além desse, simplesmente fez "Seven - Os Sete Crimes Capitais", "Zodíaco", "O Quarto do Pânico", criou a série "Mindhunter" e tem mais vindo por aí esse ano (ou no que vem, ainda não foi confirmado a data oficial), então o cara é o diretor vivo que mais manja desse gênero, unanimidade. Fincher aqui se une à roteirista Gillian Flynn, autora do livro base e eu não li o livro, porém pelo o que eu sei, o filme tem várias adaptações enquanto ao que acontece na obra originária, então eu acho que essa oportunidade da Gillian reescrever a história com outros rumos e outras decisões é um exercício artístico muito interessante, porque todo artista tem seu momento sobre suas obras cujo pensa: "o que será que aconteceria se isso acontecesse?", "O que aconteceria se ele tivesse feito isso ao invés disso?" e etc. Acho que a adaptação feita foi um exercício interessante que gera um filme caótico e surpreendente do início ao fim, para mim é mais do que apenas um filme policial, mais que um filme sobre sociopatia, sobre relacionamento tóxico, sobre pressão parental e qualquer outro tema, para mim, principalmente, é um filme que mostra o show que faz mídia sobre uma situação séria.
A mídia é doente, todos sabemos disso e aqui Fincher faz exatamente essa crítica, porque os caras transformam, durante vinte e poucos dias, a vida dos Dunne em um reality show, praticamente (com mais valor de entretenimento que o BBB...), vemos a vida de Nick (Ben Affleck) ir da Terra ao inferno em apenas algumas horas, vemos como é fácil manipular o público que assiste programas com fins jornalísticos, vemos como pessoas desgraçadas no final, sempre acabam se dando bem e virando celebridades por motivos indignos, tipo, a Amy (Rosamund Pike) ficou famosa por desaparecer e o Nick ficou famoso por ser suspeito de matar a própria esposa, famas criadas através de boatos sensacionalistas por pessoas sensacionalistas em programas, emissoras e jornais sensacionalistas, indo de acusações de incesto até tentarem fazer o público acreditar que um homem matou sua esposa (e mesmo que ele tivesse matado, ainda não havia prova alguma para dizer com propriedade). Fincher analisa e expõe a mídia sendo completamente baixa, suja e desgraçada durante duas horas e meia de exibição.
Fincher cria contrapontos entre Nick e Amy, fazendo até uma alusão ao sexismo, pois Nick é um cara machista, que teve um pai machista, que tem atitudes machistas o filme inteiro e ele tem um complexo de superioridade enorme, enquanto Amy sempre foi pressionada por seus pais a ser perfeita, a ser exemplar, tanto que eles acabam criando uma franquia literária para fantasiar a infância perfeita que sua filha não teve e eles queriam que tivesse - acho que os pais dela podem ser considerados uma metáfora para a sociedade e a pressão que a sociedade coloca em mulheres para sempre seguirem o "padrão ideal" da sociedade da menina certinha, legal, descolada, bonita, sorridente, adorável e tal e por acaso do destino, Amy acaba por se rebelar por ser justamente ao contrário de quase tudo isso. Para mim, não há certo na história, Nick é um arrogante de quinta categoria que só se preocupa com a própria reputação e objetifica tudo e todos ao seu redor para suas próprias vontades a hora que ele quiser, enquanto Amy é uma sociopata maluca que por levar gaia e ser deixada de lado pelo marido armou um plano de mestre para tentar ferrar a vida do marido e levá-lo para a prisão com pena de morte. São o famoso casal cherno e byl.
E o que mais me impressiona no trabalho do Fincher é o domínio que ele tem sobre os atores e sobre os personagens, o cara tem onze personagens com papéis importantes dentro da trama em minhas contas e ele consegue dar background e desenvolvimento para todos eles, até os mais secundários como os pais da Amy ou o próprio Desi (Neil Patrick Harris), todo mundo sabe que o Fincher é extremamente perfeccionista, ele gosta muito de dar detalhes meticulosos em suas histórias e acho que nesses filmes onde ele necessita muito de detalhes e fator replay ele se sai muito bem, acho que, tirando os filmes mais fantasiosos e o "Mank", todos os filmes sempre tem um fator replay muito interessante (em especial, "Clube da Luta" que vendo outras vezes você percebe detalhes mínimos que não dá para pegar ao ver só uma vez), esse filme tem um fator replay interessantíssimo porque você percebe tal coisa, depois olha tal referência, sempre tem alguma coisa nos cenários que acaba por virar uma pista ou detalhe interessante ao espectador e ninguém atualmente faz melhor que o Fincher (talvez os caras dos filmes de heróis, mas aí é outra vibe, é mais fanservice mesmo).
Todos os atores simplesmente perfeitos para seus respectivos papéis! Ben Affleck consegue captar a frieza do Nick, sua falta de emoções e sua raíz pessoal de ser um cara meio babaca (se ele não fosse a vítima no final - ou no filme quase todo - ele seria a pessoa mais fácil de odiar no mundo) ele demonstra bem a ingenuidade do Nick enquanto ao caso, ele faz bem o papel de marido ausente que começa o relacionamento como um príncipe montado em um cavalo branco e vai tornando-se misógino e agressivo ao longo do tempo (muito bem mostrado através dos flashbacks). Rosamund Pike como Amy é simplesmente um show à parte dentro do filme, ela consegue ter essa essência manipuladora, sociopata, ela é extremamente doente mas de um jeito encantador e até um pouco sexy (famosa femme fatale), ela consegue capturar a essência manipulativa da Amy ao ponto de ir de uma menina adorável e descolada até uma doida de pedra de uma forma extremamente convincente e acho que o desenvolvimento da Amy ao longo do filme depende muito dessa mudança de personalidade que a Rosamund Pike executa com perfeição ao longo da trama, uma atuação gigante!
Carrie Coon é incrível como Margo, ela faz meio que esse papel de "voz da razão" do Nick, ela manda muito nesse papel de conselheira e de irmã que xinga e discute com o irmão por ele ser realmente um imbecil mas que acima de tudo ama ele e que protegê-lo, ela vai muito bem nas cenas onde a Margo precisa explodir de alguma forma, seja de raiva, medo ou desespero, a cena que consagra sua atuação é a sua última cena. Tyler Perry está maravilhoso, ele saindo de uma zona de conforto gigante das suas comédias pastelão de fim de ano e indo fazer um drama policial, ele fazendo um advogado que é especializado em feminicidas é maravilhoso, porque ele se arrisca e faz um personagem que é muito inteligente, meticuloso e que ao mesmo tempo é um otário porque o emprego dele é livrar gente do corredor da morte e o carisma dele eleva o personagem dentro do filme e ele traz esse toque de humor ácido para a trama que deixa o filme extremamente sútil - inclusive, acho que pode-se fazer um paralelo entre Tanner ser o diabinho no ombro de Nick enquanto Margo é o anjinho e, por mais que não tenha esse papel em nenhuma cena do filme, eles agem assim com o personagem durante a trama.
Eu gosto da dupla de policiais interpretada pela Kim Dickens e pelo Patrick Fugit (inclusive o único papel da vida do Patrick Fugit depois do "Quase Famosos" - o que é irônico, porque ele é protagonista de um filme chamado "Quase Famosos" e não ficou famoso), acho que os dois fazem bem as funções dos arquétipos de seus respectivos personagens e do contraponto de sempre em uma dupla nos filmes de Fincher ser um racional e o outro emocional e o papel cumprido pelos dois dá um resultado satisfatório. E claro, não poderia deixar de destacar o gênio Neil Patrick Harris que faz o Desi e ele também sai da sua zona de conforto de comédia e musical, fazendo um personagem traumatizado, preso ao passado e totalmente maluco, ele consegue passar uma vibe muito depressiva no personagem, a frieza que ele passa é assustadora e o fato do personagem dele de você nunca saber se ele é confiável ou não, é uma ambiguidade muito boa criada pelo Fincher.
"Garota Exemplar" é obra-prima? É, eu acho que não, é um excelente filme, porém, acho que no epílogo ele se estende muito e por isso o ritmo dele no final fica meio atrapalhado, os últimos dez minutos parecem vinte e acho que o filme só não dá uma perdida total porque a Rosamund Pike segura. Mas tirando isso, é um filme grandioso, que fala sobre vários assuntos pertinentes e importantes na sociedade hoje em dia e que merece um destaque pela performance na direção absurda de Fincher em um controle gigante dos atores, da trama, dos personagens, da vibe e do ritmo do filme que é de tamanha maestria. Mais um dos filmes que eu me arrependo de ter falado mal um dia.
Nota - 9,5/10