Crítica - Assassino Por Acaso (Hit Man, 2024)

Uma comédia brilhante que consolida o talento de Glen Powell.

Se você é um dos que me acompanha há alguns anos, você provavelmente deve ter conhecimento do meu apreço por Richard Linklater, que realizou alguns dos filmes da minha vida, como a "Trilogia do Antes" (1995-2013) e a jornada de vida "Boyhood - Da Infância à Juventude" (2014). Eu não sou lá seu fã número um, não vi todos os seus trabalhos, já falei de vários por aqui, mas foram apenas os principais, porém, olha, esse aqui creio ser o grande sucesso dele em muito tempo, muito pela qualidade e pelo estilo de história que quer contar. Com mais uma vez seu protagonista ajudando a co-escrever o roteiro, no caso Glen Powell, uma estrela em ascensão, que cada vez mais vem conseguindo seus espaços com méritos em Hollywood, e aqui eles escrevem uma fábula baseada em Gary Johnson, um detetive disfarçado da polícia de Nova Orleans, cujo em seus disfarces como assassino de aluguel foi responsável por mais de setenta prisões. Usando isto como base, eles desenvolvem sua própria história, onde tem discussões bem maiores do que aparenta em sua camada superficial. Nisso, devo dizer, sai um dos melhores filmes da carreira do diretor, um feel good movie no qual você tem mais do que parece.

Gary Johnson (Glen Powell) é um homem comum, um professor universitário, que cozinha, cuida de seus gatos e faz um bico no departamento de polícia para ajudar em casos para capturar pessoas que contratam assassinos de aluguel para tirar a vida de alguém, através de policiais disfarçados. Quando Jasper (Austin Amélio), o principal performer do DP, é suspenso, Gary é designado para substituí-lo. Ao se tornar muito bom no que faz e ajudar em várias prisões desse tipo de caso, Johnson se consolida. Até que em um dos casos, ele acaba ajudando a jovem Madison Masters (Adria Arjona) a ter uma mudança de vida ao invés de concluir seu crime. Ele então se apaixona pela moça, porém continua utilizando o seu codinome inventado para seus encontros com a moça. Nessa louca paixão, Gary se questiona se ele está fazendo o certo ou se ele está se deixando levar pelo prazer, entrando em conflito consigo mesmo e com o bem e o mal. Cara, é levemente baseado numa história real, Gary Johnson realmente existiu, essa era realmente a profissão dele (tanto a de professor quanto o bico na polícia), mas aconteceu décadas atrás, o longa que acompanhamos é mais contemporâneo, esse cara na vida real inclusive já até morreu (F para nosso guerreiro), mas nada disso aqui aconteceu de fato, é uma história inventada para a filme.

O Linklater trabalha em obras muito calcadas em diálogos, onde seus personagens crescem através de conversações e verbalização entre as pessoas, ou monólogos, mas aqui é quase o ápice da carreira do diretor nesse quesito. Aqui tudo acontece através disso, onde ouvimos um voice over do protagonista desde o primeiro segundo, no qual ele se apresenta e em conjunto traz o assunto principal do longa. A partir daí, o realizador vai intercalando entre cenas comuns, cotidianas, lecionando do nosso protagonista, com cenas dele no trabalho na polícia, disfarçado, cenas do relacionamento que ele acaba construindo, mas entre isso, existem várias sacadas que acabam elevando o patamar da obra. Acaba que há uma discussão sobre personalidade, sobre como uma pessoa se vê, como e se ela pode mudar, o porquê dela mudar, os motivos, que geram o dilema moral entre o que é o certo e o que é o errado, e é um assunto muito bem tratado, não só através de Johnson, mas de todos os personagens.

É uma trama muito bem criada, muito bem dirigida, já que o longa começa ali comum, apresentando uma história, um personagem, e logo em sequência apresenta seu conceito principal: o do assassino. Há uma montagem incrível onde uma narração do Powell vai contando a história desse conceito, as dúvidas se é um mito e o que ele fazia trabalhando para a polícia ao se passar por um desses. Ele acaba ficando tão bom que gostam mais das personalidades que ele cria do que dele próprio, especialmente com Ron, seu alter ego quando se encontra com Madison. Acontece que é aí que há uma discussão, sobre identidade, pois o Gary a qual somos apresentados é o um bundão, um nerdola que não tem coragem de matar um mosquito e ainda é melhor amigo da ex mesmo ela tendo largado ele por outro. Quando ele se disfarça, torna-se outras pessoas, e de certa forma ele não percebe, mas existe uma influência disso nele, especialmente Ron, que acaba se fundindo com a personalidade padrão dele ao longo do filme. Essa mescla de personalidades é crucial para a evolução dele como profissional da polícia e como pessoa, tornando ele mais confiante, mais seguro, mas ao mesmo tempo o torna mais babaca.

Sobre o longa em si, a vibe criada pelo Linklater é incrível. É um feel good movie, apesar de ser um assunto relativamente pesado, não temos nada de muito dramático ou pulsante, é uma comédia de crime muito bem construída, tem um sentimento de um noir cômico que é excelente, pois te envolve tanto pelo caso, pela trama, quanto pelos personagens, as atuações, ou pela direção. Você acaba se interessando de uma forma ou outra pelo rumo que essa história vai tomar, é instigante, porque quando algo parece que não vai mais se sustentar até o resto da exibição, vem outra coisa para te agarrar e atiçar ainda mais o interesse. A comédia e a parte policial são presentes durante quase todo o longa, e há um certo momento onde o romance entra na história, mas essa parte romântica não toma o longa para si, existe sim uma questão meio romcom que perdura até o final, mas o filme não torna-se outra coisa para aquilo acontecer, mantém-se na mesma vibe, no mesmo feeling, nas mesmas questões que Linklater quer abordar. Eu acho triunfal todas as cenas da faculdade com o protagonista lecionando e o que ele leciona posteriormente entrando em questão na sua própria história, denota que é uma obra muito bem planejada em todos os detalhes.

O filme vai te levando a questionamentos se aquilo que está acontecendo é certo ou errado, o julgamento moral chega ao espectador, com você se questionando se está certo ou não em gostar daqueles personagens, ou aprovar certas atitudes, ou até mesmo a aprovação do romance principal, já que a forma que ele é iniciado não é das mais convencionais e muito menos das mais éticas. E olha, rapaz, esse casal é fogoso, viu? Porque aqui tem algo que é mais escondido, mas também é primordial para o longa alcançar a qualidade que tem: o tesão. Eu falei mais disso em outros textos onde existia a discussão entorno dos filmes em questão envolvendo isso, como "Pobres Criaturas" (2023) e "Rivais" (2024), mas aqui também existe o desejo. Dá para sentir a conexão do casal formado pelo Glen Powell e pela Adria Arjona desde o primeiro contato, lá por meia-hora de exibição, onde já nos olhares e nos diálogos denota-se que vai haver uma conexão maior entre eles. Quando se desenrola esta relação, fica claro que eles são um belíssimo casal, exala química, eles tem tesão mútuo, você sente uma atração claríssima ali, tem a sedução. Isso é acentuado ao percebemos os lados da relação, onde há uma certa rebeldia na cabeça de ambos, já que ele consegue ser capaz de ter relação com alguém que seria capaz de contratar um assassino para matar alguém, enquanto ela estava pensando que estava fazendo com alguém que já tinha tirado a vida de múltiplas pessoas. Ao final, depois que tudo passou, a última cena confirma que esses dois se merecem.

Em atuação, cara, que show do Glen Powell. Ele está dominando Hollywood, já havia trabalhado anteriormente com o Linklater na animação "Apollo 10½: Aventura na Era Espacial" (2022), também participou de outras obras que o vem tornando em uma estrela mundial, como sua participação em "Top Gun: Maverick" (2022) em um dos papéis principais, quanto ter protagonizado a comédia romântica de maior sucesso da década, "Todos Menos Você" (2023), além de na próxima semana estar estreando com "Twisters" (2024), continuação do clássico dos anos 90. Nesses filmes honestamente não dá para dar muita credibilidade ao seu talento, já que num ele é um coadjuvante que é feito para ser o babaca, no outro o papel dele é ser gostoso sem camisa e beijar mulheres peitudas. Aqui existem essas áreas cinzentas faltantes, onde ele consegue entregar no drama muito bem, mas especialmente na comédia. A atuação dele é ESPETACULAR, muda ele de patamar em Hollywood, já que ele tem o desafio de interpretar várias personas dentro de um homem só, e isso ele faz com perfeição (especialmente a sátira dele ao Patrick Bateman, que é genial). Mas o principal, para mim, é criar um conflito de seu personagem com a personalidade que ele mesmo inventou (o Ron), nisso você vê que internamente o personagem está tendo sentimentos conflitantes entre fazer o certo e o que é melhor para ele, essa mudança de personalidade no personagem é algo assustador que ele faz com tanta naturalidade, em uma construção calma e eficaz, que é impossível não sair impactado de alguma forma pela performance, seja nesse lado dramático ou pela comédia em que ele detona igualmente.

Também destaco a Adria Arjona, que entrega uma personagem muito interessante. Primeiro: que espetáculo de mulher, ela é perfeita, cara. É impossível não sair daqui apaixonado por ela, porque tem cada cena que olha... Que filme bom! Mas ela é ideal para esse papel, já que na primeira cena dela vemos uma mulher insegura, uma vítima, uma esposa que se sente presa dentre as exigências e cobranças surreais do marido (e, honestamente, é bizarro pensar que existem relacionamentos como este na vida real, infelizmente), em sequência vemos ela bem de vida, se reconstruindo, para logo depois ela virar uma safada, primeiro no sentido maneiro da coisa, depois no outro sentido, já que essa moça é bilutetéia da cabeça. Essa atuação é perfeita justamente por você nunca saber o próximo passo dela, você não sabe que personalidade ela vai ter na próxima cena, mesmo que ela não seja bipolar ou algo do tipo. A lição que Gary Johnson nos passa aqui é justamente essa: "Fé nas Maluca", porque as loucas são as melhores mesmo pelo visto. A personagem da Madison é capaz de esfaquear e atirar em alguém, mas é extremamente atraente e sedutora, e essa segunda parte é mais valiosa para nós homens.

Outro destaque a ser mencionado é a música, que é a melhor encaixe de trilha instrumental na carreira do Linklater. O diretor não costuma utilizar muito de trilha incidental na sua carreira, são mais as canções selecionadas de artistas que fazem um relativo sucesso, mas aqui tem um trabalho primordial do Graham Reynolds. É uma trilha de jazz, é mais "cool", que tem instrumentos de sopro mais leves, uma sensação de mistério que vem junto, como se fosse algo clássico mas moderno ao mesmo tempo, ajuda muito na construção da vibe do filme. Que também é constituída de uma montagem sensacional, eu já havia falado dela pontualmente nos parágrafos anteriores, mas aqui darei o maior destaque. É um trabalho da Sandra Adair, editora companheira do diretor há mais de trinta anos, e aqui é um dos melhores trabalhos dessa parceria, já que através da edição temos praticamente todo o longa, a pontualidade das cenas para a discussão maior, o timing das partes da faculdade, as montagens destacadas com narração, a precisão dessa edição é notável, está tudo onde melhor estaria, é muito bem encaixado e no tempo certo no geral, onde cria-se uma dinâmica gostosa de assistir e uma obra tão maleável que chega a ser boa a manipulação que pode tomar para qualquer lado.

Um dos melhores de 2024 até aqui e com certeza o melhor do primeiro semestre, "Assassino Por Acaso" é mais uma obra sensacional dirigida por Richard Linklater, e olha, aspas fortes vindas de mim, um fã inegável de Before e Boyhood, preciso pensar mais um pouco e talvez assistir de novo, mas talvez seja top 3 da carreira do diretor, acho que ele se infiltra, no mínimo um top 5. É brilhante em todos os campos que ele tenta adentrar: é uma comédia genial, tem um timing perfeito em quase todas as piadas, tiradas excepcionais; é um romance muito bem construído, com muito tesão; um filme de crime, policial, bem instigante, que você se interessa pelo caso. Sem contar a colaboração de diálogos sensacionais que constituem o longa inteiro, para mim sendo o melhor quesito do longa (inclusive creio que seja a indicação desss obra ao longo da temporada de premiações), uma direção genial do Linklater e performances brilhantes, especialmente a do Glen Powell, que muda sua forma de ser visto por Hollywood a partir de agora, é uma atuação absurda em todos os quesitos. Cara, que filme bom, é desse tipo de filme que eu gosto e nisso temos a minha primeira nota máxima de um filme de 2024, porque realmente não há nada que me faça tirar um ponto disso. É sensacional, assistam.

Nota - 10/10

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