Crítica - Flow (Straume, 2024)
A animação independente do gato sulista.
Todo ano surge uma animação independente que arrasa os corações dos cinéfilos, seja por uma qualidade técnica admirável ou por uma história contada de uma forma diferente das animações tradicionais mainstream estadunidenses que dominam o mercado e as salas de cinema. Ano passado tivemos "Meu Amigo Robô" (2023), uma animação espanhola que conseguiu alta repercussão, anteriormente teve uma indie americana, "Marcel the Shell with Shoes On" (2022), também dá para citar a irlandesa "Wolfwalkers" (2020) e mais uns anos para trás, a espanhola-estadunidense "Klaus" (2019) e a francesa "Perdi Meu Corpo" (2019), ambas belíssimas, ambas indicadas ao Oscar de animação e ambas originais Netflix (assistam lá quem não viu, vi ano passado e vale muito a pena mesmo). Este ano, a que conquistou corações, e creio que teve um alcance bem maior que todas essas que eu citei, foi "Flow", filme que você sabe, se leu direito, que é a crítica de hoje por aqui. Estreou no Festival de Cannes 2024, teve um burburinho em torno, arrebatou corações e conseguiu duas indicações ao Oscar em categorias importantes: Melhor Animação e Melhor Filme Internacional. No entanto, será que só a beleza de sustenta, ou esse tem algo a dizer.
Gato é um bicho solitário e que vive em uma paz, vivendo apenas em busca de comida e conforto, dormindo sempre que possível. No entanto, um dia, sua vila e seu lar são devastados por uma grande enchente, que o deixa desabrigado. Em busca de um lugar no mundo, ele acaba se juntando com outros animais de diversas espécies em um bote, tentando fugir, explorar e descobrir um novo lugar no mundo. É uma co-produção entre Letônia, França e Bélgica, mas acabou sendo nomeado ao Oscar pela Letônia, e o diretor é o letão Gints Zilbalodis, que está em seu segundo projeto de longa metragem na carreira, o primeiro sendo outra animação sem diálogos denominada "Away" (2019), onde ele fez tudo sozinho e acabou que foi um sucesso de repercussão na Europa e gerou fundos para que ele pudesse realizar este projeto, que foi rejeitado por muitos estúdios que acreditavam que era um longa que precisava de diálogos para vender para um público mais infantil, no entanto, o diretor foi contra essa abordagem, fez da maneira que ele quis e o resultado é admirável.
Zilbalodis é muito correto no que faz, criando uma experiência única, onde você cria uma real conexão emocional com aqueles personagens e tem um fascínio por aquilo tudo que você vê. A jornada do Gato é muito interessante, a gente acompanha ele sozinho, querendo ser afastado dos outros, buscando uma paz, mas acaba que isso cria aquela velha questão: liberdade ou solidão? Ao longo do filme, vamos notando o quão sozinho era o protagonista, cujo é bem medroso, receoso, não consegue interagir com os outros e sempre mantém um pé atrás devido a ser um animal mais frágil e indefeso, que era caçado rotineiramente por cães maiores que o botavam terror por ele querer simplesmente ter uma refeição para encher o bucho antes de voltar a dormir. Você vai acompanhando como ele vai mudando isso, criando uma nova casca e um novo jeito de lidar com o mundo, formando laços de amizade com vários animais pelo seu caminho, formando uma nova identidade, onde, ao final, é perceptível que a solidão já não o apetece mais, ele foi atingido pelo poder da amizade.
O diretor consegue criar uma real experiência por aqui, contando sua história de uma forma que o impacto dela é real. Você vai acompanhando a construção a cada cena, o silêncio, a trilha e a união dos personagens vão evoluindo a cada segundo e junto você vai sendo cada vez mais fisgado por aquilo que vai se construindo na sua frente. A maneira na qual ele conta essa história é sútil, sentimental, existe muito sentimento por aqui, uma emoção verdadeira que se constrói quando a naturalidade de tudo aquilo que está acontecendo é genuína. A decisão criativa de fazer um filme sem diálogos, usando apenas os reais sons que os animais emitem, acaba sendo muito correta ao criar um laço maior e mais autêntico ao vermos como a interação daqueles personagens é tão pura e sincera, onde eles vão começando a interagir e se entender cada vez mais como um grupo à medida que a exibição passa, que não tem como não se afeiçoar por aquele pequeno grupo.
Os personagens são muito bonitinhos, não só visualmente, mas como tudo que eles vão construindo acabam com que você crie um carinho por todos eles. O Gato protagonista é muito legal, é um personagem de fácil identificação, principalmente se você for ver o longa sozinho, você nem precisa ser uma pessoa solitária, mas você consegue comprar a jornada dele, de sair lentamente dessa soledade para alguém mais receptivo que sente que precisa de uma família, e ter essa experiência só acaba que te aproxima dele, pois você sai bem mais impactado pela mensagem e consegue criar uma relação melhor com ele. Sem contar os devaneios, os sonhos e os sentimentos dele, que são totalmente plausíveis dentro do contexto que ele está, e como esse contexto é o que ajuda ele a perceber que ele não pode ser mais do jeito que ele estava. Ele acabou de passar por uma tragédia, por uma enchente, e esse desastre, esse momento difícil, acaba o aproximando dos demais. Essa mensagem acaba que impacta, pois é realmente em horas como estas que precisamos de apoio, de companhia, de ter alguém com quem contar, e a forma como o filme conta isso é singela, bem construída e tocante.
Os outros personagens também são incríveis, eu honestamente gostaria de ter action figures ou pelúcias de todos eles, pois eles são tão puros, carismáticos e criam uma relação tão bacana com o Gato e entre si, que acaba passando um sentimento de conforto a quem assiste. Tem uma capivara brabíssima, Brazil reference, que é um personagem um pouco mais sábio, mais responsável e acaba sendo a cola que une todo mundo, como mostrado de maneira mais expositiva perto do final. Existe também um lêmure doidão, cleptomaníaco, que tem hiperfoco em colecionar coisas de vidro e que ele considera raras e leva suas coleções consigo, como se aquilo fosse o conforto dele mesmo, que fizesse com que ele se sentisse bem dentro de qualquer situação como aquela. Tem um cachorro golden retriever, que eu considero a raça de cachorro mais pura e carismática que existe, e esse cão daqui faz jus ao ser um personagem tão singelo, inocente e divertido, que conquista quem assiste. Por fim, tem um secretário, não um que fica atendendo telefone, mas sim uma ave, e tem vários, são quase como uma gangue dentro do longa, existe um rebelde que se afeiçoa pelo Gato e cria uma amizade com ele, e esse bicho é tão feio e esquisito, mas o traço o favorece tanto e a personalidade dele é tão massa, que subverte a repulsa que eu teria por ele se visse pessoalmente na vida real por uma feição.
A animação em si também é excelente, realmente remete a um jogo indie, algo mais experimental que busca um novo tipo de sentimento, e aqui atinge com maestria. O design e o traço dos personagens são incríveis, existe um quê ali de realismo, ao mesmo tempo de fantasia, ao mesmo tempo uma textura mais pelúcia, onde o estilo consegue dar muita expressividade e muita genuinidade naqueles personagens, você consegue entender perfeitamente o que eles sentem, como eles se sentem e como eles vão se desenvolvendo ao longo da narrativa, como essa vida que eles têm é tão real que soa muitas vezes como algo quase documental. O desenho dos cenários e a maneira na qual eles são construídos é excelente, a gente acompanha o longa todo basicamente na água, então passamos por muitas cenas aquáticas e isso traz em sua essência uma beleza visual que é verdadeiramente fascinante. Tem cenas que envolvem uma espécie de baleia, que anda à deriva por várias locações da obra, e quando você pega o significado disso, de como ela estava livre durante a enchente e como os personagens estavam se sentindo presos, e quando num status quo isso é ao contrário, mostrando diferentes formas de vida, é incrível.
Ainda existem as sequências de sonho, e essas são maravilhosas. É aqui que o visual se destaca, criando momentos memoráveis e que brilham os olhos de quem assiste por aquilo que está apresentado em cena ser tão belo, principalmente a cena das estrelas, aquilo é maravilhoso. A textura da água também é incrível, você consegue comprar a ideia daquele mar gigantesco se alastrando por várias locações e como os personagens lidam com isso, as cenas que eles vão mexendo com a água, é tudo excelente. A movimentação de câmera é outro destaque, muitos momentos são bem construídos ao vermos como a cinematografia criada ali consegue acompanhar os personagens e dar um sentimento maior de aventura e fantasia para aquilo tudo, como eles põem certos focos e vão os mostrando, com a ajuda de uma paleta bastante precisa, criam momentos de crescer as pupilas. E a trilha sonora é incrível, a música remete perfeitamente a experiência de um jogo indie, que acaba sendo confortável a maneira em que ela é encaixada no filme, ajudando a criar uma experiência quase sensorial do encanto e da magia que eles querem passar por aqui.
Apesar de não ter diálogos, "Flow" é, dentre os longas da temporada, um dos que mais tem a dizer a partir da experiência aqui criada. É fascinante, um traço belíssimo, uma animação de outro mundo e uma direção de arte impecável, que fazem um worldbuilding impressionante e criam momentos visuais marcantes e de brilhar os olhos. Através desse visual, consegue criar personagens carismáticos, não só um bom protagonista, de fácil identificação, como um elenco inteiro de coadjuvantes em que somos apresentados e colocados dentro de uma dinâmica de amizade confortável, onde é impossível não se afeiçoar por aquela galera. E com isso, surgem mensagens sobre amizades, sobre solidão, sobre liberdade, tranquilidade, status quo, medos, traumas, sonhos, desejos, receios e o principal: conforto. É muito bonito, uma grandiosa animação e que entrega muito em uma curta duração e um pequeno orçamento, mostrando o quão forte é a força do cinema e, especialmente, das animações.
Nota - 8,5/10