Crítica - Robô Selvagem (The Wild Robot, 2024)

A DreamWorks como conhecemos.

Eu tenho uma relação de amor e ódio com o estúdio DreamWorks, onde ao mesmo tempo eu os amo por inúmeros clássicos das animações, como "Shrek" (2001), "Shrek 2" (2004), "Madagascar" (2005), "Kung Fu Panda" (2008), "Wallace & Gromit: A Batalha dos Vegetais" (2005), e muitos outros, e os odeio por claríssimas lavagens de dinheiro ao termos várias animações porcas e feitas de qualquer jeito com personagens desenhados para vender brinquedos, indo de uma sequência longa que veio nos anos 2010 até sequências caça-níquel ruins de grandes clássicos, como "Madagascar 3: Os Procurados" (2012) e mais recentemente, inclusive nesta temporada, "Kung Fu Panda 4" (2024), o qual foi uma grande decepção do ano e chega a dar uma grande queda na franquia geral. No entanto, quando eles querem, vem obras sensacionais, como alguns anos atrás, onde eles arriscaram em um novo estilo de animação e fizeram o sensacional "Gato de Botas 2: O Último Pedido" (2022), que foi uma das melhores animações daquele ano e deu uma hypada boa noite que o estúdio poderia entregar. E cá estamos falando sobre uma das mais tocantes e empolgantes obras deles, que consegue quebrar uma barreira de mostrar que algo artístico e bem trabalhado ainda consegue sair de lá se tiver alguém competente por trás.

ROZZUM é um modelo robótico, criado pela empresa Universal Dynamics, para servir as ordens dos humanos e ser uma espécie de faz-tudo para a população. No entanto, acaba que, devido a uma tempestade, uma das unidades de um lote encontra-se perdida no meio de uma ilha, esta que é o modelo 7134, que gosta de ser chamada de Roz (Lupita Nyong'o). Lá, inicialmente, é vista como um monstro e uma ameaça para as diversas espécies animais que vivem por ali. Contudo, tudo muda quando ela se vê na função de criar um ganso órfão recém-nascido, que ela chama de Brightbill (Kit Connor), e conta com a ajuda de Fink (Pedro Pascal), um raposo cara de pau que quer sempre ficar de buchinho cheio. O longa é dirigido por Chris Sanders, que é um cara desse mundo das animações que sabe bem trabalhar a relação entre os seus personagens e cria histórias bem emocionantes, já que ele, juntamente ao seu antigo parceiro Dean DeBlois, já nos entregaram o icônico "Lilo & Stitch" (2002) e o adorado "Como Treinar o Seu Dragão" (2010), então estamos falando de um maluco que sabe como causar impacto com suas histórias e trazer algo diferente em estética visual, onde ele já se aventurou por espaço e sci-fi e a fantasia nórdica medieval, agora ele traz um estilo de animação mais diferente, trabalhando locações de natureza e animais, e é simplesmente fantástico.

Eu gosto muito da estrutura narrativa apresentada, é bem diferenciada, e quando parece que vai cair para um lado mais clichê ou batido, logo na sequência consegue se superar e voltar a um trilho que instiga o espectador. Eu reclamo muito das animações de grandes estúdios da atualidade que parecem que eles tem medo de colocar um vilão realmente mau no longa, mas aqui temos a prova de que, se bem feito, não há problema nisso, pois a maneira que eles vão construindo a trama é muito boa, é convincente e nos dá uma sensação de conforto, um apego quase que imediato ao universo apresentado, trazendo consigo um fascínio que até choca em diversas cenas. Claro que existe adversidades, conflitos, não existe filme sem isso, existem figuras que tornam-se antagônicas em certos pontos onde tornam-se cruciais para a história e para toda a jornada de muitos personagens, existe um confronto final, mas isso é um bônus que a experiência proporciona, pois é tudo tão bem encaixado em momentos de tanto impacto, que acabam deixando quem assiste bastante satisfeito com aquilo que experienciou pelos últimos cem minutos.

É um longa que acerta muito nas camadas emocionais, usando muito do visual e da trilha para isso (falo mais disso depois), mas também é muito correto em seu texto, trazendo uma jornada de personagens críveis em situações que causam uma identificação, um afeto, mas principalmente trazem consigo um engrandecimento da história onde cada coisa dita e feita por aquelas figuras que acompanhamos façam com que fiquemos cada vez mais atentos e presos dentro daquela história. Existem todos os tipos de arco aqui: o do rejeitado, o do órfão, o do escolhido, a redenção, o diferente mas igual, o sacrifício, o treinamento, as relações que vão se criando entre aqueles seres, a fraternidade, a maternidade, tudo que vimos em milhares de animações sendo utilizados novamente, mas trabalhado de um jeito tão caprichado, tão bem cozinhado, que fica um bom gosto na boca. Que nem eu falei no último parágrafo, quando parece que vai cair nas mesmas convenções irritantes de sempre, há uma rápida recuperação e volta aos trilhos de uma trama que é muito bem encaminhada para vários pontos.

Eu gosto muito de como eles criam a protagonista, começando pelo visual e indo até a evolução, superando a programação e tornando-se tão viva quanto aqueles animais. A construção visual é inacreditável, primeiro pela qualidade gráfica da parada, onde cada detalhe é perceptível, cada pequena coisa é excepcionalmente bem trabalhada, dá para ver até as informações da lente de câmera que tem nos olhos dela a qualquer frame, além dos riscos, das sujeiras e as pequenas coisas que vão se acumulando naquilo a cada segundo, criando uma riqueza de detalhes muito interessante naquilo que se passou com ela. A forma como eles colocam ela para falar também é muito bem feita, que é através de suas luzes piscando e tendo sua entonação enfraquecendo e fortalecendo através da cor das luzes, o uso do vermelho quando existe uma exaustão e tudo mais. O design dos membros, sendo metálicos, mas elásticos, também é um conceito bastante interessante que eles usam, a forma como criam situações para ela usar essas habilidades, criando quase uma heroína, é tudo muito massa. Eu gosto de várias decisões visuais daqui, especialmente deixar ela bem mais próxima de algo mais palpável do que os outros personagens, ela e os outros robôs são quase num estilo 3D clássico mais aprimorado, enquanto os demais puxam para um lado que lembra mais a estética dos personagens de "Gato de Botas 2", com cenários que equilibram esse lúdico com essa coisa mais tangível, criando uma experiência visualmente única.

O desenvolvimento da personagem é muito interessante por si só, já que ter um robô, algo artificial, sem sentimentos, feito para servir a alguém, ser nulo e apenas prestativo, pegar isso, construir uma relação, construir um papel materno, um papel de amizade, criar uma sensibilidade, um questionamento, desenvolver as emoções, mas sem perder seu propósito e sua motivação original de cumprir promessas, cara, é tão bem construído, tão bem trabalhado, de uma forma tão genuína e com tanto carinho por quem está por trás, que acaba que impacta quem assiste de alguma forma. Ver essa robô evoluindo, aprendendo lentamente sobre aquele hábitat, sobre as naturezas e as tradições de cada espécie, entendendo como funciona o ambiente e tornando-se uma mãe, uma amiga, mesmo com as adversidades, com a rejeição da população daquela ilha, ela vai superando suas limitações, sua programação e tornando-se quase um símbolo daquele local de pouco em pouco, especialmente uma grande amiga para Fink e uma figura materna para Brightbill. Eu assisti ao filme no idioma original, então não tem como não falar da voz da Lupita Nyong'o nessa personagem, é um encaixe e um tipo de performance tão bem encaixada, que não dá para não destacar. Ela tem esse tom quase artificial, seguindo uma linha muito correta nessa linearidade inicial, e à medida de sua evolução, de sua vitalização, vamos vendo aos poucos como ela vai mudando um pouco o tom, acrescentando uma ou outra coisa na voz, criando um sentimento, e é de uma maneira tão sútil, bem trabalhada, encaixada nos momentos corretos, denotando suas emoções que vão surgindo, é excelente.

Acaba que é muito interessante o conceito de transformar ela numa mãe, assim criando uma excelente dinâmica com Brightbill. Essa relação é tão bem construída que dá um quentinho no coração acompanhar as etapas dessa familiaridade entre eles, é muito engraçado ver o ganso agindo como um robô, nadando todo errado, falando todo travado, e isso se entrelaça com todo o arco do personagem. É uma jornada muito bacana de se acompanhar a desse pássaro, que eu acabei de ir pesquisar e saber que traduziram o nome para Bico-Vivo, que é uma tradução bacana, então continuarei falando o nome dele em português daqui para a frente para ficar mais fácil. Bico-Vivo tem toda uma jornada, começando um órfão, crescendo e tornando-se um rejeitado, ele começa a treinar, a evoluir, a criar sua própria história e encontrando um lugar no mundo. Sua jornada cria momentos incríveis, incluindo todo o seu treinamento para vôo, resultando num momento belíssimo e marcante dos pássaros voando até Roz agarrada na árvore à beira da montanha. Kit Connor fazendo a voz eu achei bom, ele consegue fazer algo mais contido, que remete a personalidade mais fechada do personagem, ele traz essa entonação meio robotizada devido sua criação por Roz, e como ele vai superando isso, entendendo quem ele é e a sua função num ciclo dentro de sua espécie, acaba sendo bem mostrado.

Outro personagem bacana é o Fink, que no Brasil eu descobri que foi chamado de Astuto (aí a tradução já deu uma vacilada boa, deixava Fink mesmo). Mas, a palavra Fink, em tradução livre, significaria algo como "enganador", "fingido", que é o que uma raposa representa em meio àquele ambiente todo, é alguém traiçoeiro, salafrário, preguiçoso. Esse bicho mesmo é um embuste, que só quer comer os outros (no sentido literal da palavra mesmo), ele tenta até degustar o coitado do Bico-Vivo quando filhote a todo custo. Mas, o desenvolvimento que ele vai tendo o torna um grande personagem, começando nesse arco de mentiroso, manipulador e tornando-se ao final uma espécie de líder daquela comunidade. A evolução dele é muito da relação dele com Roz, onde cria-se uma amizade verdadeira e um laço de confiança muito forte, onde ele finalmente encontrou alguém em quem pode acreditar e contar a todo momento, sem que ele zombe ou seja zombado, ou queira encher o bucho. Ele é um alívio cômico, mas traz muito peso dramático para várias ações e vários momentos ao longo da narrativa, gerando muitas cenas emocionantes de fato. Provavelmente, deve ser minha atuação favorita do Pedro Pascal, porque o trabalho dele aqui é incrível, ele é muito bom nesse lance mais safadão, nesse tom mais irônico e debochado, mas consegue trazer bastante peso em momentos dramáticos e criar uma dinâmica interessante com todo e qualquer personagem ali apresentado, ele consegue criar um tipo de química com todos eles, ele traz muito bem esse charme que era necessário, pois ele conquista o espectador sem precisar de muito.

Na parte técnica, primeiro, gostaria de destacar o visual do longa, que é fantástico, toda essa questão de enquadramento, de movimento, a forma como eles criam vários momentos icônicos acompanhando esses personagens, especialmente com uma paleta de cores inacreditável, é lindo, é um deleite visualmente falando. Tem várias cenas que dariam wallpapers, seja em momentos da floresta, de dia, de noite, nevando, é muito incrível como eles criam uma ambientação que é viva, onde parece que eles só jogam os personagens ali no momento e funciona de tão fantástico que é, os cenários são lindos, com cores lindas, é sensacional o que eles fazem aqui. Eu já falei do estilo de animação antes, pretendo não me repetir. Agora, a trilha sonora é belíssima, como é impactante e bonita e ajuda muito na emoção do longa. A composição é de Kris Bowers, no que é o melhor projeto de sua carreira, esse cara só tinha trabalhado em Oscar bait amaldiçoado como "Green Book - O Guia" (2018) e "King Richard - Criando Campeãs" (2021), fico feliz que ele tenha tido sua redenção. É tão tocante, tão bonita, é singela, você sente o que a trilha te passa e a acompanha quase como uma personagem do longa, já que vai se mesclando muito bem dos momentos tristes, para os inspiradores, para os impactantes, os comuns, os engraçados, como essa mescla de músicas cria toda uma bela experiência, é quase sensorial, não dá para sentir o que longa quer dizer sem escutar as composições de Bowers. Ajuda também em termos duas belas músicas compostas exclusivamente para cá, ambas pela cantora Maren Morris, uma que toca durante o longa, numa cena crucial, que é "Kiss the Sky" e essa é sensacional, ajudando muito no impacto da cena que ela toca, criando um momento impactante e que marca o espectador, trazendo o sentimento que era preciso neste momento. A outra é "Even When I'm Not", que toca nos créditos, uma música lenta, mas singela, que resume perfeitamente a relação de Roz com Bico-Vivo, com Fink, mas no fim, com toda aquela ilha e aquela fauna.

Encerro falando que "Robô Selvagem" é um filme que eu assisti sem tantas expectativas, apesar de toda a aclamação, porque o pessoal hoje em dia costuma exagerar, mas aqui não há exagero, isso é um clássico moderno das animações. Ele me trouxe uma felicidade ao assistí-lo, e uma espécie de alívio, pois eu estava sentindo falta de uma animação assim para a geração atual, que seja novo, que traga algo diferente, mas que seja impactante, que tenha emoção, que tenha um sentimento que inspire por trás. Minha geração teve vários desses, meus favoritos sendo "Monstros SA", "Os Incríveis", "Ratatouille" e até o próprio "Shrek", e acaba que essa geração não tem isso, eles tem restos de outras animações do passado, com continuações, spin-offs, e o que vem de original não empolga ou acaba não chegando. Teve até "Elementos" ano passado, que bateu na trave, mas aqui o Chris Sanders fez um golaço. Emocionante do início ao fim, uma ambientação espetacular, visuais lindíssimos tanto dos cenários quanto dos personagens, uma trilha sonora impactante, músicas lindíssimas, relações muito bem construídas e personagens extremamente carismáticos, com uma robô protagonista que é apaixonante, um raposo bastante carismático e um ganso nanico bem inspirador. Eu gostei muito, é, definitivamente, a melhor animação da temporada e uma das melhores da DreamWorks.

Nota - 8,5/10

Postagens mais visitadas