Crítica - Um Completo Desconhecido (A Complete Unknown, 2024)

Bob Dylan e esse tal de rock 'n' roll.

Creio que um dos artistas mais retratados na telona em vida seja Bob Dylan, uma lenda do rock americano. Dylan não só já teve uma retratação ficcional mostrando várias de suas faces com o ótimo "Não Estou Lá" (2007), dirigido por Todd Haynes, há quase vinte anos atrás, com grande elenco, Christian Bale, Cate Blanchett, Heath Ledger e mais. Além de vários documentários, várias retratações dele como artista mostrando ele mesmo, como sua parceria com Martin Scorsese, que gerou dois aclamados documentários: "No Direction Home" (2005) e "Rolling Thunder Revue" (2019). Porém, agora temos uma nova obra, que pega apenas um recorte da carreira do astro e decide contar sua juventude, seu início na música, sua ascensão e suas dificuldades como uma estrela da música. Dirigido por um dos homens mais requisitados em Hollywood, James Mangold, que apesar de ter dirigido "Indiana Jones e a Relíquia do Destino" (2023), ainda sim é um cara que todo mundo quer trabalhar e que vem apresentando ideias e dirigindo filmes bastante interessantes, já estando certo no DCU de James Gunn para dirigir "Monstro do Pântano", e também com a LucasFilm para dirigir um filme sobre a origem dos Jedi em "Star Wars". E aqui temos sua primeira indicação ao Oscar na categoria de direção, mostrando que o Mangold prime está chegando. Porém, será que realmente toda esse repercussão é justa com o filme? Ou mais um exagero?

O jovem Bob Dylan (Timothée Chalamet) está começando na sua carreira musical e decide ir visitar seu ídolo, o cantor folk Woody Guthrie (Scoot McNairy), que está morrendo lentamente devido à Doença de Huntington, para apresentar uma canção que ele escreveu sobre o artista ("Song to Woody"). Porém, o amigo de Guthrie, Pete Seeger (Edward Norton), também um grande astro folk da época, se impressiona pelo talento de Dylan e decide o introduzir à cena musical do gênero em Nova York, fazendo com que ele conheça sua namorada, Sylvie Russo (Elle Fanning), cujo ele começa a namorar, e também a cantora em ascensão Joan Baez (Monica Barbaro), que começa uma relação profissional (e um pouco mais que isso) com Bob. Acompanhamos os primeiros anos de carreira de Bob, desde seu primeiro disco apenas com covers, o relacionamento com Sylvie cheio de altos e baixos, a relação dele de mentor-aluno com Pete, a picante interação com Joan, seus sucessos, como ele se tornou um fenômeno americano, alguém que lotava festivais e shows para vê-lo. Mangold pega esse pequeno recorte da carreira dele, começando mostrando toda esse ele faz tanto sucesso que fura a bolha e alcança mais pessoas, como ele se torna um astro estadunidense, com suas letras poderosas, seu estilo icônico e, depois, sua transição do folk para o rock 'n' roll, da polêmica que isso causou na época devida marginalização da guitarra elétrica e de "não ser o que ele representa".

Gostei de como o Mangold cria aqui uma história mesmo, como ele retrata Dylan como esse cara comum, com foco nos seus objetivos, que vai crescendo profissionalmente e tornando-se um dos maiores cantores de seu país, a forma com que isso é construído é feito com tanta calma e tão envolvente que parece ser, positivamente falando, mais lento do que realmente é, já que com menos da metade do filme parece que acompanhamos uma jornada, quando na verdade ainda tem muita lenha para queimar. O diretor sabe muito bem como construir uma estrutura sem seguir de fato uma óbvia de cinebiografias, é algo mais básico, é bem mais simples, é pé no chão, mas é instigante pela maneira na qual é apresentado e a passagem de tempo vai rolando, fazendo com que você se apegue com a simplicidade daquilo tudo, onde muitas vezes os planos dizem mais que os diálogos. Diria até que esta não é uma cinebiografia musical normal, não só pelo pequeno pedaço que é retratado ao invés de toda a história, mas sim pois consegue fazer com que atinja até quem não tem a mínima ideia de quem Bob Dylan. É uma retratação acessível, que consegue criar essa aura envolta do protagonista, que não o romantiza, passa longe de ser chapa branca, mas que tem êxito ao conseguir passar a grandiosidade que ele tinha naquela época e porque ele é tão falado e reconhecido até hoje.

Aqui existem três atos, mas de uma maneira diferente, pois vemos três partes desse início de Dylan: o começo, a ascensão e a rebeldia, ocasionando, ao final, sua liberdade. Ele é tratado como esse cara que todo mundo que olha sabe que ele é algo a mais que os demais, que ele tem uma coisa diferente, que ele não consegue se manter na mesma linha sempre. Mangold usa isso para você identificar facilmente os pontos em que ele está e como cada época de sua vida define uma diferente versão dele. A maneira na qual ele constrói seu personagem é fascinante, como eu disse no parágrafo anterior, até quem nem sabe quem é Bob Dylan fica fascinado pela figura desse cara, como as vezes o seu silêncio diz muito como um todo. O primeiro ato (ou fase) é uma excelente introdução, você já vê ali como ele já empolga quem o escuta, já coloca um olho nele devido ao seu talento, sua criatividade e sua exclusividade, ele é diferente, ele é O astro, ele é O cara, existe essa aura da genialidade encima dele, apesar de que nenhum pano é passado para nenhuma besteira, ele literalmente trai sua namorada em cena. Até porque, creio eu que o verdadeiro Bob Dylan jamais gostaria de se ver vangloriado de qualquer forma. É o que acontece aqui, ele não é retratado como uma grandiosidade, ele é um cara comum que tem a aura.

O segundo ato já vemos ele bem sucedido, tendo seu grande ápice dentro do cenário, sendo aplaudido e apagando o brilho dos demais colegas do folk, e como isso acaba afetando ele e suas relações como pessoa, não só o finalizado relacionamento que ele tinha com Sylvie, mas também sua relação profissional e romântica com Joan, seu afastamento cada vez mais do ritmo lento e da simplicidade do folk, com uma interação já menos próxima com Pete, com seu empresário Albert Grossman (Dan Fogler) entendendo o que tem nas mãos e o dando liberdade para fazer o que quiser, como ele constrói demais laços com outros músicos, como um de seus produtores, Bob Neuwirth (Will Harrison), e também com o grande Johnny Cash (Boyd Holbrook). Tudo isso acaba nos liderando para um terceiro ato extremamente satisfatório, onde não só vemos como esse espírito do rock vai tomando conta de Dylan, como ele vai ficando cada vez mais rebelde, querendo fazer as coisas do jeito dele e querendo ter sua liberdade criativa longe dessa pressão do gênero folk, é que nem é resumido no seu último diálogo com Joan, onde agora ele está livre daquele pessoal, onde agora ele quebra essas correntes e torna-se o grande artista que buscava ser.

Existem cenas insanas, especialmente o grande clímax do longa, o Festival de Newport de 1965, porém, antes de falar mais dessa, gostaria de generalizar e falar que todas as cenas de shows são excelentes. Mangold tem um ótimo senso de escala, ele sabe quando os personagens estão se apresentando num barzinho ou quando estão a frente de milhares de pessoas, a maneira como a plateia interage e faz parte dos shows é muito interessante, já que dá para sentir o envolvimento do público com a apresentação, como tem essas performances mais pequenas e contidas tem um público que faz jus àquilo, e nas cenas mais grandiosas existe também um barulho maior, uma maior aclamação, uma maior expectativa, fazendo desses momentos grandes destaques. Mas o clímax é sensacional, a grande cena do longa, que é onde Dylan vai no maior festival de folk no mundo suas músicas com guitarra elétrica, colocando ao mesmo tempo essa interação do público com os artistas, onde existe uma divisão ali, onde muitos estão curtindo e outros se sentem traídos, e a mesma treta rolando entre o staff de Bob e a organização do festival, onde fica também essa coisa da tradição contra a modernidade, numa cena de urgência onde Mangold se sobressai e cria um momento empolgante, onde culmina toda essa discussão que o longa inteiro apresenta.

Um dos grandes destaques é o próprio Timothée Chalamet interpretando o Bob Dylan, eu que sempre falei mal dele e recentemente ele vem cada vez mais queimando minha língua, e aqui é a atuação da carreira dele até então. Eu sempre dei uma zoada nele por ser inexpressivo, mas aqui acaba que a inexpressão é o motivo dele ser perfeito para interpretar o astro. Ele traz todos esses trejeitos do personagem, dele sendo mais quieto, mais calmo, ele passa essa vibe de gênio, ele tem a aura. Ele é carismático do jeito dele, ele te convence como um cara bacana que é um astro da música, ele te vende perfeitamente esse cara que as pessoas querem ouvir, você entende o porquê as pessoas querem saber dele, além dessa vibe rebelde que é incrível, que te aproxima mais dele quando você entende o que ele está querendo fazer, ele tem esse quê realmente de rockstar. Os trejeitos dele são assustadores, a maneira na qual ele encarna o cantor fisicamente e vocalmente, desde o andar dele, a forma na qual ele se porta observando os outros, o jeito que ele se apresenta no palco, até como ele assopra sua gaita é tão parecido que assombra. Sem contar a voz, porque que o Chalamet sabe cantar, quem viu o ótimo "Wonka" (2023) sabe, agora ele cantando aqui é igual, é bizarramente igual, é como se fosse o próprio Dylan remasterizado, os cacoetes, a falta de afinação muitas vezes, o tom mais desleixado, cara, é perfeito, realmente o grande papel dele por aqui.

Todo o elenco na realidade é bem escalado, gostaria primeiro de falar sobre seus dois relacionamentos retratados por aqui, nesse pequeno recorte, onde vemos tanto seu namoro com Sylvie (que é um pseudônimo criado devido a um pedido do verdadeiro Bob Dylan, mas é óbvio que a retratação é de sua namorada na época, Suze Rotolo, eles nem escondem muito isso, as iniciais são as mesmas), quanto seu complicado relacionamento de amantes com Joan Baez. Eu gostei bastante da Elle Fanning, acho que ela faz bem esse papel da menina que tem essa paixão pelo protagonista, que quer ter uma conexão maior com ele, que apesar de tudo ainda conseguiria ficar com ele independente do que acontecesse, mas as melhores cenas que comprovam sua bela performance é quando você só vê o rosto dela, sem ela estar falando, ela passa tudo que ela sente com primor, especialmente suas últimas duas cenas. E a Monica Barbaro, inclusive indicada ao Oscar por essa atuação, realmente merece, pois é muito interessante o contraponto que ela faz de Dylan. Ela é diferente igual a ele dentro do ramo, mas ela segue as tradições, ela se mantém na linha e ela é mais pé no chão em relação a tudo dentro da música. Ela abrilhanta a tela quando em cena, ela traz uma luz muito natural ao longa e ainda canta que nem um anjo, a voz dela é linda, eu sai daqui apaixonado por ela.

Sobre demais personagens, como eu falei no último parágrafo, é um excelente trabalho de casting, todos os personagens são bem escalados. O Edward Norton é muito bom aqui, primeiro destacar essa calvície maravilhosa que ele tem, é realmente uma bela caracterização, mas o personagem é bem legal, é um cara que vê o potencial em Dylan, ele é bem sucedido, ele tem uma visão muito clara e traz essa vibe de mentor, além da mudança dele ao longo da trama, onde ele vai criando um dilema interno sobre o que é mais importante: Bob conseguir seu próprio objetivo ou seu gênero musical atingir mais pessoas dentro da tradição? Mandou bem, uma boa indicação ao Oscar. Outro que achei bacana foi o Boyd Holbrook como Johnny Cash, primeiro que é um trabalho de caracterização sensacional, eles pegam um cara que não tem nada a ver com o cantor real e o deixa idêntico, mas a performance é bem interessante, onde ele cria essa relação com o protagonista, não aparece muito, mas é uma grande inspiração para ele e o incentiva a ir atrás do que ele quer acima do que querem para ele (também detalhe que é legal essa participação, já que o próprio Cash teve uma cinebiografia também feita pelo James Mangold há vinte anos atrás, lá interpretado pelo Joaquin Phoenix). Outros que também são massas são o Will Harrison como Neuwirth e o Dan Fogler como Albert, dois personagens do staff de Dylan, que complementam bem, tem carisma e ajudam a entender qual a real grandiosidade dessa figura à época.

Indo para questões técnicas, é impossível não falar da fotografia desse filme, e creio que nem seja o maior destaque. O movimento e angulação da câmera, a forma como ela se coloca dentre os personagens, criando uma dinâmica em diversas cenas, muitas vezes nos aproximando deles, dando destaque para detalhes importantes e criando uma aproximação ou afastamento dentro de cena, criando um sentido narrativo, especialmente momentos de palco, eu achei muito bom, também somado ao uso de luz e sombra que é feito, onde vários momentos são bem bonitos, especialmente cenas externas noturnas. O figurino é incrível, trazendo todo à tona essa moda anos 60, essa coisa mais larga, mais formal ou desleixada, dependendo do personagem, trazendo uma recriação de época bem interessante, além de vários outfits icônicos do Bob Dylan serem recriados em cena, especialmente daquele início, o sobretudo preto, aquilo é um deleite de se ver. Também gostei muito do som do longa, não só a maneira como a música é perfeitamente colocada em cena, mas como isso se mescla com todo o som ambiente, especialmente nas cenas com grandes audiências, onde era preciso mixar com perfeição toda essa loucura de música somado ao público rolando e é excelente.

Bom, uma pena que eu já postei minha lista de melhores de 2024, pois "Um Completo Desconhecido" estaria nela. Ainda não me decidi, não tive tanto tempo para refletir isto, mas se não entra dentre o top 10, com certeza é o décimo primeiro, pois me surpreendeu e eu gostei muito mais do que eu esperava gostar. Primeiro de tudo, um título perfeito, já que não só é um verso de "Like a Rolling Stone", como representa como Dylan queria se sentir apesar da fama, pegando esse duplo sentido sensacional. Bom, gosto muito do cantor, cantarolei junto várias das músicas quando apareciam em cena, é claro que isso cria um impacto, mas creio que mesmo quem não dê a mínima para Bob Dylan consiga se afeiçoar por aquela história e criar uma afetividade por essa figura, entender o fascínio que era tido na época, pois a maneira que Mangold o retrata aqui, como um rebelde, alguém cru, convicto, desafiador, um verdadeiro rockstar, é impossível não gostar. Não só pela melhor performance de Timothée Chalamet, como todo um elenco de apoio incrível, especialmente Monica Barbaro, e ainda por cima uma trama envolvente, instigante e que tem momentos que você percebe que essa não é qualquer cinebiografia, essa veio para ser um dos grandes retratos do cantor como um todo.

Nota - 8,5/10

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